O ator Nuno Nunes tem um ano de 2024 bastante preenchido. O público português vai poder vê-lo em diversos projetos das três vertentes da representação – teatro, cinema e televisão. O teatro está em destaque e é um tema recorrente ao longo da conversa que teve com o NOVO. Nuno Nunes não hesita em admitir que o “público se autoexclui” do teatro e que persiste a ideia “errónea” de que só quem é intelectual é que vai ao teatro.

Fala também sobre um dos seus projetos recentes na televisão que teve maior sucesso, a série Matilha, e também sobre O Teu Rosto Será o Último, um filme de Luís Filipe Rocha, baseado no livro de João Ricardo Pedro, e cuja narrativa passa por momentos importantes da história de Portugal, como são os casos da guerra colonial e do 25 de Abril.

A peça A Rainha da Beleza de Leenane esteve em cena até ao 31 de março no Teatro da Trindade, e em abril e maio vai estar em digressão por várias localidades do país. O que nos pode dizer desta peça e que significado tem para si poder fazer uma digressão com este projeto?

Poder fazer circular os espetáculos é muito importante, mas é sobretudo importante poder ter um lugar onde o espetáculo está e onde as pessoas o vão ver, e estar tempo suficiente para melhorar o espetáculo. No teatro, quando estremos um espetáculo ele está pronto até um certo ponto, mas há muitas transformações, sobretudo internas, na apropriação que os atores fazem das suas personagens, das coisas que descobrem da peça e isso só se faz com tempo. Isso é muito importante e é muito rico. Nos tempos que correm é um grande privilégio poder estar sete semanas em cena com um espetáculo. Isso é fantástico, haver teatros onde se pode morar. O lado da digressão é uma outra vertente, é chegar a públicos que de outra forma não podiam ver o espetáculo e, de alguma forma, podermos divulgar o nosso trabalho, podermos divulgar uma determinada história, com os impactos que podem ter na vida das pessoas, em termos do que aquela história reflete na vida dessas pessoas. Acho que neste caso em particular trata-se de uma peça inquietante, que tem uma dimensão familiar e passional, na qual a maior parte das pessoas que tem visto o espetáculo se reconhece, ficam perturbadas. É a chamada atualidade das peças. É uma núcleo familiar, mãe e filha, e é uma relação tóxica, uma relação que está viciada e onde a liberdade e o egoísmo estão em conflito. O sonho da realização individual da vida, da felicidade, é posto em causa por condições que não são dominadas por nenhuma parte. Mas aquilo que as pessoas procuram nas suas vidas, que é serem felizes, e as condições que criam para o serem nem sempre podem ser dominadas. É difícil, às vezes, fazermos as escolhas certas para que a nossa felicidade, ou a ideia que temos de felicidade, se realize. Esta peça mostra muito bem isso.

Esta digressão remete para uma questão importante na cultura, assim como noutras áreas, que é a descentralização. Enquanto ator, qual é a importância de poder levar este espetáculo ou outros a locais de Portugal onde não há um acesso tão regular a peças de teatro?

É muito importante. Mesmo do ponto de vista individual, e dos trabalhos que tenho vindo como encenador e como ator, está sempre nos meus objetivos, no plano de trabalho que estabeleço, fazer uma digressão, fazer itinerância. E tenho feito, tenho trabalhado em contextos muito diferentes, fora dos centros de Lisboa e Porto. Acho que o nosso país, apesar de tudo, tem hoje em dia as melhores condições que alguma vez teve para proporcionar aos diferentes públicos, em diferentes regiões do país, o usufruto do teatro, da música. Temos teatros municipais em todo o país neste momento, e teatros municipais muito bem equipados. As condições nunca foram tão boas. Depois, os problemas são outros.

Em junho estreia o filme O Teu Rosto Será o Último, baseado no livro João Ricardo Pedro. Um dos temas da obra é o tema do destino artístico da personagem principal, Duarte, mas a narrativa também acompanha momentos importantes da história de Portugal, como a guerra colonial e a revolução do 25 de Abril. O que nos pode revelar da sua personagem neste filme?

Sou o pai do miúdo, o Duarte, que tem um dom especial para a música, mais concretamente o piano. É através da minha personagem que se conta essa história da guerra colonial, do 25 de Abril e do trauma. A história desse miúdo que tem esse dom especial é contada em cima do sofrimento do pai. Há uma carga de sofrimento, uma angústia que tem a ver com o trauma da guerra colonial, que é um pouco o trauma da sociedade portuguesa. Como é que resolvemos a questão colonial depois do 25 de Abril e como essa questão é silenciada. A forma como o miúdo vive a música, o seu virtuosismo, é uma expressão da dor, do mal-estar e do trauma que ele recebe do pai. É um livro maravilhoso. O meu pai não viveu a guerra colonial porque ficou doente na véspera de ir para África. Quase morria, na verdade, mas cá. Viveu o trauma do que era a preparação militar, a violência do que eram os anos de recruta. Tenho tios que estiveram na guerra colonial, vizinhos que conheci que estiveram na guerra colonial, que se suicidaram, várias histórias de pessoas que suicidaram passados 20, 30 anos da guerra colonial. Esse passado, esse nosso trauma coletivo é pouco abordado, e este filme, de alguma forma, colmata essa falha.

É um período da história de Portugal que é muito importante, mas a guerra colonial é um tema que não é muito abordado na sociedade portuguesa, na cultura. Esse período fervilhante da história de Portugal, é um dos pontos de interesse do filme, cuja estreia será próxima do 25 de Abril?

Sim. Tudo o que no último ano se está a fazer parece enquadrar-se nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. É uma data redonda e as pessoas sinalizam de uma forma especial, o que é normal. Acho que há outra questão aqui, que é o facto de o filme ser feito pelo Luís Filipe Rocha. É alguém que tem as suas opiniões, e são opiniões que, se calhar, não seguem muito o senso comum. É um realizador que não está bem nas luzes da ribalta, digamos assim, mas que tem uma obra que espelha o antes e o depois do 25 de Abril em vários filmes que fez, e às vezes pega em questões polémicas que são importantes. Ele é da geração de cineastas herdeira do cinema novo português, que desenvolveram uma carreira no cinema português independente, com uma visão própria, e ao mesmo tempo próxima da vida das pessoas, um cinema que, ao mesmo tempo, tem um cariz popular. Popular, não no sentido de ser comercial, fácil, mas de refletir realidades que são diversas e é um cinema de um tempo de análise, de ponderação, de reflexão especial. Não é um cinema de consumo fácil e superficial. Para mim foi um privilégio poder fazer este projeto com o Luís Filipe Rocha, por ele ser quem é.

Essa reflexão no cinema, os filmes que nos fazem pensar, esse é um dos aspetos mais relevantes do cinema, e também da cultura em geral. Ficaria feliz se as pessoas pensassem e refletissem mais neste tema da guerra colonial depois de verem o filme?

Com certeza. Não sei se a cultura tem um papel, mas enquanto ator ou encenador gosto de sentir que os temas que escolho fazer, ou os filmes e as peças em que estou envolvido, sejam importantes para o público, que reflitam realidades nas quais as pessoas se reconhecem. Não é bem a ideia de passar mensagens, é mais o sentido de levantar questões, de pôr as pessoas a dar o nome às coisas, a discutir os temas. Se a cultura – o cinema, a arte – pode ser entretenimento, e também deve ser, deve sê-lo não num sentido de alienar, de esquecer, de nos separarmos da vida e dos problemas, mas num sentido de os podermos ver através de lentes diferentes. Ao ter uma experiência enquanto espectador de prazer em relação a um filme, a uma peça de teatro ou a um livro, esse prazer vem de uma identificação, de uma inquietação, do espicaçar, do diálogo, do interesse gerado por um determinado assunto. As formas artísticas, as linguagens, os estilos, as estéticas, são modos de conseguir comunicar. Isso é diferente da alienação, que é criar objetos que são meramente dissuasivos do pensamento.

Participou na série Matilha, que foi muito bem recebida pelo público. É uma série que aborda o mundo do crime, mas que ressoa junto das pessoas, nem que seja pela história de redenção e pelas más escolhas que por vezes fazemos. Esse é um dos segredos da série? A proximidade que os espectadores podem encontrar não só nas qualidades das personagens, mas também nas suas falhas e defeitos.

A série está muito bem feita na medida em que espelha, de uma forma muito despretensiosa, muito direta, essa proximidade com as histórias daquelas personagens. A precariedade do trabalho, a falta de uma perspetiva a longo prazo, o que pode ser a nossa vida e do poder que temos de escolher o nosso futuro, a questão de estarmos muito condicionados à nossa sobrevivência, e fazermos as escolhas erradas desse ponto de vista. Mas é um objeto televisivo, é um objeto que tem muita qualidade em termos de produção e dos meios de produção que temos em Portugal, e, portanto, é muito eficaz nesse aspeto. Não desbarata o tema, não o torna simplista e, ao mesmo tempo, proporciona o tal entretenimento. A televisão é aquele objeto que temos em casa, ligado, enquanto vamos à casa de banho, entramos e saímos da sala, ou estamos no quarto, é um produto. Conseguir fazer algo nesse contexto e que seja rico, com bons argumentos, bons atores, com uma boa produção, é aquilo que se espera que a televisão consiga fazer, e a Matilha, sem dúvida, responde a esses critérios todos.

O Nuno já tem muita experiência na televisão portuguesa, no cinema e no teatro. Entre estas três vertentes, qual é a favorita?

Sem dúvida, o teatro, pela sua dimensão de laboratório. O teatro é mais do que fazer teatro. O tempo dos ensaios, da preparação de uma personagem, a possibilidade de fazer experiências que sabemos que não vão estar no resultado, que não vão estar no dia da estreia, mas podermos, às vezes, divagar, perceber como nos apropriamos de uma personagem, como compreendemos melhor o papel, ou as relações. Podemos experimentar a um nível mais profundo e podemos tomar decisões depois de fazer uma série de experiências. A duração desse trabalho, as horas que estamos, às vezes, a trabalhar uma cena é incompatível com aquilo que é uma produção televisiva ou mesmo no cinema. São desafios diferentes. O cinema, por outro lado, tem todo um desafio técnico, um artesanato ligado à câmara, às luzes, a adaptação a espaços e a condições de produção que por vezes são imprevisíveis. Por melhor que um filme seja preparado, na véspera, no próprio dia, é preciso tomar decisões, adaptar, mudar. Isso é fascinante. Vive de uma espontaneidade, de uma relação de quase namoro entre o ator, o realizador e o diretor de fotografia. Tem essas características que são muito especiais. A televisão é uma vertigem. É mais industrial, tem datas mais apertadas, tem condicionantes de produção mais limitadas, porque é preciso fazer um determinado número de horas por dia de cenas. Mas a televisão agora aproxima-se muito mais daquilo que é a produção cinematográfica, felizmente para nós atores. As equipas estão muito mais oleadas. As televisões fizeram um trabalho extraordinário nos últimos anos. Houve um período em que imperava o modelo telenovela e paralelamente se faziam algumas versões de ficção, no formato série, mas que não era ainda aquilo a que assistimos neste momento. Agora, é possível ter uma equipa constituída como se fosse uma equipa de cinema e está a trabalhar em televisão. Portanto, tem uma capacidade de adaptação como eu não conhecia há 20 anos, e houve uma evolução do ponto de vista técnico: as câmaras, o som, o trabalho da direção artística. Temos equipas que foram muito bem preparadas pelos últimos 20, 30 anos da televisão. Mesmo o modelo televisivo de novela já não é a mesma coisa que se fazia há 20 anos.

Qual destas vertentes acha que é mais valorizada no meio artístico?

Isso depende. Por exemplo, um teatro com um alcance mais popular beneficia muito do reconhecimento popular dos atores. Percebemos isso e é muitas vezes benéfico do ponto de vista da produção. Conseguir montar um espetáculo teatral beneficiando desse conhecimento popular de alguns atores, sem querer dizer com isso que o espetáculo seja mais pobre. No caso d’A Rainha da Beleza de Leenane, é um texto extraordinário, é um desafio muito grande e conseguimos atrair um público que muitas vezes, noutras circunstâncias, não iria ao teatro. Isso beneficia muito da popularidade de alguns dos atores que estão na peça.

E da parte do público, qual é a vertente da representação que chama mais o público?

Sinto que o público se autoexclui muito do teatro. É o público que se autoexclui. Mesmo face ao teatro dito mais independente, mais experimental, as pessoas têm, às vezes, um preconceito sobre o que é e não vão. São atraídas por figuras mais populares, mais mediáticas e vão ver muitas vezes espetáculos que são pensados para essa massa de público mais lata. Entendo o teatro como algo menos classificado do que aquilo que as pessoas classificam logo à partida. Não temos um público teatral num sentido cultural, um público culto a nível teatral.

Vinga a ideia de que só quem é intelectual é que vai ao teatro?

Sim, está muito ligado a essa ideia. Essa ideia faz um certo sentido até um certo ponto, mas é uma ideia errónea, porque pensando em diferentes âmbitos de produção teatral, há espetáculos comerciais que são muito aborrecidos, e há espetáculos ditos intelectuais que são extremamente cativantes, estimulantes do ponto de vista do pensamento e da diversão. Essas classificações, às vezes, são muito limitativas. Hoje, estamos a assistir a uma mudança de paradigma com as plataformas de streaming. Talvez agora as pessoas pensem duas vezes antes de saírem de casa. Há uns anos se se queria ver um filme, tinha de se sair de casa. Agora antes de se tomar a decisão de ir ao cinema, as pessoas veem quais são as séries que ainda não viram. Têm-me acontecido ir ao cinema ver filmes que são para o grande público e tenho uma ou duas pessoas na sala, e isso não acontecia dessa maneira há uns anos. Estamos numa fase de transição que ainda não sei onde vai levar.

A relação do público é pior com o cinema português do que é com o teatro português?

Há um dilema terrível, que é como aproximamos o público português do cinema português. Temos realizadores incríveis, fantásticos, e gosto muito da ideia de cinema de autor. Ou seja, filmes que são objetos, às vezes, experimentais, e que podem funcionar melhor ou pior. Só percebemos, por vezes, o que um filme é passado 20 ou 30 anos. Como ator gosto de bons guiões, de cenas em que tens personagens com problemas que as pessoas identificam, e que são tratados de uma forma que pode ser filosoficamente nova, não previsível. Isso é difícil, nem toda a gente consegue fazer isso. O nosso cinema está muito associado a uma representação da realidade mais contemplativa, mais estética, e provavelmente não ofereceu, em determinados períodos da história recente, respostas que aproximassem o público desse cinema. Agora vivemos de o estereótipo do cinema português ser chato. É um problema difícil. Há alguns realizadores como, por exemplo, o Luís Filipe Rocha, que traz histórias e uma abordagem que, sem desmerecer o tratamento estético, um legado artístico que está impregnado nele, têm histórias que qualquer espectador adoraria ver e são filmes que qualquer espectador gostaria de ver. Mas há aqui um peso histórico realmente grande e que, se calhar, é maior em relação ao cinema do que em relação ao teatro.

 

Esta entrevista tem uma segunda parte que será publicada na tarde deste sábado