Participou na série Glória, que foi a primeira série portuguesa produzida para a Netflix. Quais serão as mudanças que o streaming vai provocar na indústria do entretenimento?  

Não sei. Não sei se alguém sabe. Gostava que houvesse de alguma maneira uma reversão do que está a acontecer agora, provavelmente porque sou romântico e gosto muito da ideia de sair para ir ao cinema, de estar numa sala de cinema com muitas pessoas. Perder-se aquilo que o cinema ou o teatro têm de poder de convocar as pessoas a saírem de casa… Essa é a dimensão interessante. O facto de uma pessoa, que está cansada ao fim do dia, e toma a decisão de sair de casa apesar do cansaço porque tem a curiosidade de ir ver um espetáculo de teatro, e, se calhar, vai-se chatear por ter de ir estacionar o carro, porque vai gastar dinheiro e pensar se janta antes ou depois, como faz com os filhos, tem de resolver uma série de questões para se deslocar, isso representa o grande papel que o público tem no fomento das artes. O diálogo entre nós criadores, ao conseguirmos chamar a atenção do espectador para um determinado espetáculo ou filme, e o público que toma a decisão de o ir fazer, é nesse diálogo que reside o sentido de existirmos como atores, ou como realizadores, ou encenadores. A partir do momento em que isso é escamoteado, apaziguado pela perspetiva de as pessoas ficarem em casa, torna-se um bocado assustador.

O facto de muitas séries serem disponibilizadas nas plataformas de streaming, mesmo que também passem nos canais de televisão, tem sido importante para chegar a uma audiência maior?

Não tenho a certeza, porque há um outro lado, que é o de ser muito dispersivo. É muita informação. Não quero fazer de Velho do Restelo, mas também acho que as pessoas não devem estar só a ver filmes e séries. Acho que devem fazer outras coisas. Pode tornar-se tão apelativa e tão viciante esta coisa de ver séries que de repente deixas de ter tempo para ler, por exemplo.

Atravessamos uma fase mais entusiasmante na ficção portuguesa? Ou mudou essencialmente a forma como é promovida e destacada?

São as duas coisas. Por um lado, é muito estimulante. Há muitas histórias, histórias novas, formas de falar das coisas, e a criatividade que está por detrás disso. Por outro lado, acho que a valorização do trabalho dos atores, dos argumentistas, das equipas, seria maior se o investimento, sobretudo a nível financeiro, fosse maior. O compromisso de quem paga os projetos, de quem os financia e quer resultados, acho que se a lógica se alterasse do ponto de vista de um financiamento maior para resultados mais exigentes e que tivessem uma implicação maior em termos de público, se isso acontecesse, se esse padrão se alterasse, acho que beneficiávamos todos. Percebemos que há muitas produções que são feitas com os meios possíveis de garantir até àquele momento. Opta-se por fazer, até para assegurar empregos, mas depois não ficamos muito satisfeitos com os resultados. Temos todas as condições para fazer melhor e devemos lutar por isso. Devemos lutar por melhores cachês, projetos mais bem estruturados, mais bem pensados, com mais tempo, porque a qualidade humana e técnica está lá. Fico fascinado ao ver as equipas trabalharem, os técnicos, os câmaras, a rapidez com que de repente um diretor de fotografia se adapta às condições existentes e depois vemos o resultado e está incrível.

Além de ator, é encenador e produtor. Essas experiências são uma mais-valia quando está a representar? Dão-lhe uma perspetiva completamente diferente?

São. É compreender o todo e perceber que surgem dificuldades onde não pensávamos. Este problema da adaptação dos meios às circunstâncias, por exemplo. É muito criativo desse lado também. Como produtor sou produtor de teatro. Normalmente, sou produtor dos projetos que enceno. Sim, traz-me alguns ganhos como ator. Compreender o outro lado, compreender o que é o produtor, as dificuldades com que se debate. Às vezes, a impossibilidade de dar respostas ou soluções porque são problemas difíceis de contornar. Compreender o lado do encenador, de quem está a dirigir os atores.

Leciona na ACT em dois cursos. Que importância tem para si dar formação a jovens que querem iniciar o seu percurso na representação?

É importante por duas ou três razões. A primeira é porque quando estou a formar atores, pessoas que querem ser atores, acho que não estou só a formar atores, estou a dar ferramentas, estou a partilhar o meu ponto de vista sobre o que é o trabalho do ator, que é mais abrangente do que ser ator. É uma forma de estar que requer implicação, que requer pensamento, criatividade, questionamento, autoconhecimento. Tem uma dimensão humana, não é só uma dimensão artística. Para mim, de um ponto vista mais egoísta, estou constantemente a questionar-me a mim próprio e a repor os dados de todos os problemas que tenho como ator todos os dias, todas as dificuldades, as técnicas, o método, o que uso para mim próprio, para conseguir trabalhar e responder às exigências de uma determinada produção, de uma determinada personagem. Como é que resolvo técnica e artisticamente as questões que qualquer trabalho me apresenta, e quando estou a transmitir conhecimento, estou a reelaborar para mim próprio, a sistematizar, essas ferramentas que tenho ao dispor. É uma constante atualização do que é a arte do ator. Por outro lado, sei que nem todos os meus alunos vão ser atores. E isso, às vezes, põe-me em crise. Qual é o sentido do que estou a fazer? Se é iludir as pessoas, pois ao mesmo tempo estou a alimentar o sonho delas. Mas acho que o teatro é uma ferramenta que extravasa completamente o que é fazer o teatro. É uma ferramenta para a vida. Acredito cada vez mais nisso, na possibilidade de as pessoas, seja qual for a sua profissão, o seu modo de vida, poderem exercer alguma forma artística a nível extralaboral, como complemento da sua vida. Pode ser música, pode ser pintura, pode ser teatro. Porque toda a gente tem essa dimensão artística. Mas as pessoas autoexcluem-se, por uma questão de educação. Falta muito essa dimensão na vida de toda a gente que é serem mais do que funcionários, serem outra coisa também. A arte pode dar-lhes isso. Como professor penso muito nessa dimensão.

Quais são as principais ideias e noções que lhes tenta transmitir, e como faz a gestão das expectativas que têm?

Procuro ser muito honesto, verdadeiro, com eles. Também eu quando fui fazer uma escola de teatro tinha as minhas ilusões e as minhas fantasias, o que é bom. Lutei, fui persistente, para conseguir alcançar o que eram os meus objetivos na altura, que, basicamente, era ser ator. Mas a foram como saí dessa escola de teatro não tem nada a ver com a forma como entrei. Interessei-me por outras coisas ou por encarar o teatro de outra forma. Procuro chamá-los à responsabilidade do que é ser ator, que responsabilidade é que um ator pode ter em termos do seu papel na sociedade. O público olha para os atores, de alguma maneira, como referências e poderá querer imitar determinadas pessoas, identificando-se com certas personagens ou só com o ator em si. Isso dá responsabilidade ao ator. Acho, por exemplo, que os atores não se deviam expor tanto. Devíamos lutar para ter esse espaço mais reservado, para que um espectador quando nos vê num espetáculo ou nos vê num filme consiga ver uma personagem e não o ator. Isso seria o ideal. Tento também passar-lhes a ideia de que o teatro não é só ser ator e muito menos ser ator na televisão, ser um ator vedeta, famoso. O teatro é muito mais do que isso. Gosto de lhes dizer que é mais do que uma escola de teatro, é uma escola de humanidade. Aprendermos a interpretar o lugar do outro, que é aquilo que o ator faz, esta abertura, que no teatro é evidente que tenho de ter como ator. Mas de repente as pessoas esquecem-se disso e, por muito evidente que isto seja, projetar-nos no outro é uma ferramenta que o teatro nos dá.

Tem uma série de projetos para este ano e para o próximo. No teatro tem várias peças que vão estar em cena, como, por exemplo, Um Elétrico Chamado Desejo, que estreia em junho no CAL-Centro de Artes de Lisboa, ou As Bruxas de Salém, que vai ser reposta em setembro no Teatro Nacional São João, no Porto. O que nos pode dizer desses trabalhos?

Um Elétrico Chamado Desejo é o grande desafio que tenho pela frente. Foi um desafio do Bruno Bravo, para fazer uma personagem que está muito associada a um ator que toda a gente conhece, e, portanto, é um grande desafio. A primeira coisa que penso é que se um determinado encenador acha que posso fazer determinada personagem, então é porque devo poder. Irei encontrar, com certeza, a forma pessoal, e pessoal quer dizer própria, particular, de num determinado contexto, com um determinado grupo de atores que admiro, fazer esse espetáculo. É o grande desafio para os próximos dois meses e estou muito entusiasmado com essa ideia, muito expectante e aterrorizado (risos). Como sempre. As Bruxas de Salém é um espetáculo que foi estreado no ano passado no Teatro Nacional São João, encenado pelo Nuno Cardoso. É um texto incrível, absolutamente inquietante, filosófico, e pertinente, obviamente. É um espetáculo que vai estar em digressão.

Por vários países também.

Em alguns países. Há um plano de digressão europeu. Vai voltar ao Teatro Nacional São João, no Porto, e vai estar no Teatro São Luiz, em Lisboa. É um grupo de atores que adoro. Já trabalhei com o Nuno Cardoso em dois espetáculos anteriores. É um espetáculo de uma grande intensidade, emocional e intelectual. São muitas ideias, muito fortes, e é um espetáculo muito físico. É um prazer enorme poder fazê-lo.