Em acórdão datado de 21 de março, dia em que o Luís Montenegro recebeu a missão de formar Governo e de se apresentar no Parlamento como Primeiro-Ministro, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) invoca uma promessa não cumprida do Governo de António Costa, relativa à extinção de carreiras na função pública, para justificar uma decisão, contrária à dos dois tribunais inferiores (dupla conforme),  que vai permitir que qualquer técnico superior da carreira geral, contratado pelo sistema prisional, possa exercer as  funções específicas de Técnico Superior de Reinserção Social (TSRS) e de Técnico Superior de Reeducação (TSR), com direito a receber os mesmos suplementos de risco (ónus de função), ainda que não estejam integrados naquela carreira especial. Esta decisão do STA, ao arrepio da duas decisões anteriores – do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) e do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA-Sul) ­– terá como consequência o “esvaziamento do conteúdo das funções de TSRS e TSR, o que na prática – diz o Sindicato dos Técnicos da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais  (SINDGRSP) – significa a extinção daquelas carreiras. Aliás, sublinha o sindicato, o STA, no acórdão, admite isso mesmo ao referir que as carreiras “subsistentes” (não revistas, como é o caso dos TSRS e dos TSR), “são carreiras que serão extintas e os respectivos trabalhadores integrados nas carreiras gerais”, algo que – sublinha o STA – “estava até previsto no ponto 1.11.1. do Programa do XXIII Governo Constitucional”.

Esta decisão provocou a indignação geral no seio do SINDGRSP. Miguel Gonçalves, o presidente da entidade, em declarações ao NOVO, alude que a aquela alínea do programa do Governo de Costa, que até está de saída, é uma promessa nunca executada. “Há agora um novo Governo que poderá ter outro entendimento, não se compreendendo como é que o STA, invocando uma intenção governamental nunca levada a sério, contraria dois tribunais que, no mesmo sentido, haviam chegado à conclusão que as funções legalmente atribuídas aos TSRS e aos TSR só por estes poderiam ser desempenhadas e, em consequência, só a estes poderia ser atribuído o ónus de função”, explicou.

Este imbróglio iniciou-se em 2021 quando a DGRSP lançou um concurso de recrutamento para Técnico Superior (TS), integrados da carreira geral, anunciando ao mesmo tempo o direito de os recrutados poderem usufruir do ónus de função – suplemento pelo risco inerente à atividade. O SINDGRSP contestou, dizendo que o ónus de função é específico para quem integra as carreiras especiais de TSR e TSRS – carreiras não revistas em 2008 por, devido à sua complexidade, se ter revelado impossível a transição dos respectivos trabalhadores para as novas carreiras.

O TACL deu razão ao sindicato reconhecendo que “o ónus de função atribuído aos TSRS e aos TSR, pelo n.° 6 do artigo 67.° do Decreto-Lei n.° 204-A/2001, de 26 de julho, tem como ratio, conforme resulta do preâmbulo do Decreto-Lei, um ressarcimento devido pelo exercício de funções de assessoria a decisões judiciárias, execução de penas e medidas tutelares, institucionais e não institucionais, o contacto permanente com delinquentes, jovens e adultos, e a necessidade de fazer face a ocorrências imprevisíveis no quadro global do sistema de prevenção e combate à criminalidade em que a DGRSP se insere.”

O mesmo tribunal de primeira instância reconheceu que todas aquela funções, descritas no preâmbulo do Decreto-Lei, correspondem a atribuições exclusivas dos TSRS e dos TSR, pelo que o suplemento de ónus de função só a estes pode ser pago, para compensar a responsabilidade na realização de relatórios que irão apoiar decisões dos tribunais que poderão limitar a liberdade e garantias do cidadão, como ser preso ou ser internado num centro educativo.” Aquele tribunal de primeira instância concluiu que “um técnico superior da carreira geral poder exercer estas funções, e receber o suplemento em questão, redundaria num esvaziamento do conteúdo funcional das carreiras de TSRS e de TRS”.

Após o TACL ter concluído daquela forma, a DGRSP interpôs recurso para o TAC-Sul, alegando  que “as carreiras dos TSRS e de TRS são carreiras gerais não revistas e não carreiras especiais, o que significa que são carreiras subsistentes”. Por outro lado, alegou também que “não é a carreira a que pertencem os trabalhadores, mas as funções que desempenham, que deve ser considerada para efeitos de atribuição do suplemento de ónus de função, pelo que a interpretação efetuada de limitar e restringir o seu recebimento ao TSRS e TSR não tem qualquer apego no Decreto-Lei n.°204-A/2001”.

O TCA-Sul apreciou o recursos e concluiu no sentido de manter a anterior decisão do TACL, ou seja, que os TSRSe os TSR integram uma carreira especial, com funções bem definidas na lei e que só eles podem, nos termos da mesma legislação, auferir do ónus de função – que corresponde a 15% do ordenado. Os dois tribunais entenderam que atribuir as mesmas funções e o mesmo suplemento aos TS da carreira geral seria esvaziar de funções os TSRSe os TSR, o que significaria, na prática, extinguir estas carreiras.  Além de que, no entender daqueles dois tribunais, constituiria uma ilegalidade alguém na DGRSP receber os ónus de função que não os TRSR ou os TSR  – os Técnicos Profissionais de Reinserção Social (TPRS) colocados nos Centros Educativos e pulseiras electrónicas não foram referidos neste caso, mas também recebem o suplemento.

Ora, a ilegalidade revelada pelos tribunais do foro administrativo  é uma prática comum na DGRSP. De facto, centenas de TS da carreira geral desempenham neste momento funções de TSRS e de TSR, alguns deles oriundos de áreas académicas pouco compatíveis com a missão de reinserção social em que a prevalência é dada aos psicólogos e assistentes sociais. Ao mesmo  tempo que desempenham aquelas funções recebem também  o ónus de função.

A dupla conforme fez estremecer os TS da carreira geral, pois, ao que o NOVO apurou, a atribuição ilegal do ónus abrange cerca de 250 técnicos: cerca de 100 entrados em maio, no último concurso, sendo mais complicada a situação dos demais 150, admitindo-se que alguns já o recebam desde 2001. Além de terem de devolver o dinheiro, também os atos próprios que praticaram, e que são da competência da carreira especial de TSRS e TSR, poderão ser declarados nulos, nomeadamente os relatórios sociais de arguidos elaborados para os tribunais – documentos que ajudam os juízes a definir as sentenças, abrindo-se a possibilidade de esses julgamentos virem a ser declarados também nulos.

Perante este imbróglio, a DGRSP recorreu para o STA cuja conclusão terá causado alívio em muitos TS da carreira geral. O STA seguiu as teses da DGRSP, segundo as quais “o suplemento é sabiamente designado de suplemento de ónus de função e não é um suplemento exclusivo de qualquer carreira, como pretende o TCA – Sul”.

O STA seguiu as teses  da DGRSP invocando também o programa do Governo que acaba de ir embora, segundo o qual as carreiras não revistas seriam para integrar na carreira geral, o que nunca se concretizou. Esta decisão causa algum alívio na  DGRSP na medida em que os TS da carreira geral já podem, assim, colmatar, legalmente, as faltas dos TSRS e dos TRS. No entanto, lembra Miguel Gonçalves, se um dia estes fizerem greve terão sempre alguém de outra carreira que legalmente poderá exercer as suas funções. “Na prática, perdemos os direito à greve”, frisou. Por outro lado, reconhece que o STA esvaziou o conteúdo funcional   dos TSRS e dos TSR, o que, no seu entender, é ilegal.  Por isso, revelou, o SINDGRSP vai recorrer para o Tribunal Constitucional.

Artigo publicado na edição do NOVO que foi para as  bancas no sábado, dia 23 de março