Quase dois anos depois de o Ministério Público ter decidido acompanhar a acusação da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) e levar a Câmara de Lisboa a julgamento devido à partilha de dados pessoais de dois manifestantes russos, começa hoje finalmente o julgamento. O Tribunal Administrativo de Lisboa irá decidir se o município lisboeta deve ou não pagar 1,25 milhões de euros por 225 infrações relacionadas com o tratamento dado aos dados pessoais de organizadores de manifestações e comícios – em vez de manter estes dados em sigilo, a autarquia então liderada por Fernando Medina enviava estas informações a entidades como a embaixada da Rússia ou o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo.

O processo conheceu vários impasses porque nos últimos meses os tribunais estiveram a discutir uma série de questões mais técnicas, desde logo qual era afinal o juízo competente para julgar o caso. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu em sede de recurso que não era um tribunal comum, mas sim o Tribunal Administrativo de Lisboa, onde o julgamento arranca hoje, pelas 10h. Mas a demora pode ter uma influência decisiva na decisão: é que muitas das infrações alegadamente cometidas pela autarquia lisboeta podem entretanto ter prescrito.

Juíza pediu escusa

Resolvida a questão de qual era o juízo competente, surgiu um novo problema: a juíza sorteada para julgar o caso pediu para ser afastada do processo por ser amiga de Cabanas Alves Dias, advogado da CNPD, entidade que em julho de 2021 fez a acusação contra a Câmara de Lisboa e aplicou uma coima superior a 1 milhão de euros. No pedido de escusa que apresentou, a juíza Ana Rita Marques descreveu que mantém “uma relação de estreita amizade” com aquele advogado há mais de 20 anos, dado que foi “colega de escola e de faculdade do seu marido”, havendo convívios frequentes entre as famílias. A magistrada explicou inclusivamente que num desses convívios chegou a discutir com o advogado da CNPD e com o seu marido, juiz num tribunal comum, qual seria o tribunal competente para a resolução destes litígios.

O presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, porém, entendeu que estes argumentos não eram suficientes para comprometer a imparcialidade da magistrada e decidiu mantê-la à frente do caso. “Percebe-se facilmente o desconforto, para a requerente, causado pela intervenção sua neste processo, porém, somos de crer que a relação de amizade entre juiz e mandatário da CNPD não constitui necessariamente fundamento de escusa”, concluiu o juiz presidente Pedro Marchão Marques.

Lista de destinatários sem controlo 

Em janeiro de 2022, a autarquia já entretanto liderada por Carlos Moedas decidiu impugnar a multa de 1,25 milhões de euros que a CNPD aplicou ao município por violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados ao “comunicar os dados pessoais dos promotores de manifestações a entidades terceiras”.

Como o NOVO adiantou na altura, a lista de destinatários dos manifestantes foi aumentando ano após ano. Estes dados eram enviados pela autarquia não só a polícias, embaixadas e consulados, mas também a igrejas como a Igreja Ortodoxa Russa, monumentos como o Panteão Nacional, locais de eventos como o Coliseu de Lisboa, e até aos assessores de imprensa da autarquia e ao então vice-presidente, Duarte Cordeiro.

Por causa disso, a CNPD acusou o município de ter agido de “forma deliberada e consciente: “O nível de violação é claramente revelado no facto de não haver um controlo mínimo do número de promotores e contactos divulgados, além do carácter reiterado com que os mesmos eram revelados aos serviços e aos próprios assessores do presidente da câmara municipal (quando não mesmo a um vereador).”

Em sua defesa, a autarquia fala em mera negligência dos funcionários, numa excessiva burocratização dos serviços, diz que não houve dolo e pede para que a coima seja reduzida de forma a que os penalizados não sejam os residentes em Lisboa.

No julgamento que hoje começa, estarão em discussão apenas questões mais técnicas, porque a câmara de Lisboa mudou de estratégia de defesa quando a liderança transitou de Fernando Medina para Carlos Moedas. Enquanto no verão antes das eleições autárquicas, o munícipio pretendia que fossem ouvidos seis funcionários da câmara, mais tarde o município decidiu que não iria apresentar uma única testemunha em tribunal. Se no tempo de Fernando Medina, a defesa passava por apontar o dedo aos funcionários do gabinete de apoio à presidência e ao encarregado de proteção de dados, que alegadamente violariam uma disposição interna e enviavam os dados pessoais de manifestantes para uma lista enorme de destinatários, no tempo de Carlos Moedas a defesa desistiu de apontar o dedo a qualquer funcionário. Preferiu, antes, argumentar que o montante da coima é essencial para desenvolver projetos de apoio aos munícipes.