Serei o que me deres… que seja amor é o mote da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) para o mês de abril, que assinala a Prevenção dos Maus Tratos na Infância.

Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ, explicou ao NOVO que o cenário em Portugal é “muito semelhante” ao resto da Europa: uma em cada cinco crianças é vítima de maus tratos, baseando-se em dados recentes fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística.

A responsável identifica a negligência como principal tipologia diagnosticada pelas comissões, ou seja, “o desinteresse, a desatenção, propositada ou não, pelos cuidados básicos das crianças”, como, por exemplo, o descuido em relação aos horários de descanso e de aulas da criança, à sua alimentação adequada e ao vestuário adequado à estação do ano e às condições atmosféricas.

Esse comportamento negligente, segundo a dirigente, pode estar interligado a situações de intergeracionalidade, ou seja, os adultos “reproduzem” aquilo que viveram nas suas próprias infâncias, onde foram habituados a “sobreviver”. Por outro lado, pode estar relacionado com casos de doenças de saúde mental, em que “não há essa capacidade de atenção e de responsabilidade pelos mais novos da família, que faz com que fiquem em situações de perigo”.

Farmhouse acrescenta também o fenómeno “elevado, preocupante e transformador” da violência doméstica em Portugal.

“Estudos indicam que crianças que residem em contexto de violência doméstica têm sintomas e traumas semelhantes a crianças em contexto de guerra, com a agravante de que a ‘guerra’ se passa com as duas pessoas que são as referências para a criança, e que acabam por fazer com que a criança se sinta culpada pela violência à sua volta”, sublinha Farmhouse.

Para além disso, menciona a importância dos “invisíveis” maus tratos psicológicos, como a humilhação e a constante comparações entre irmãos ou amigos. “Temos que ter muito cuidado. Muitas vezes há uma enorme tendência para a comparação e para reforçar a ideia de que aquela criança não está a conseguir ser como o irmão, é menos amada e menos querida. Isso deixa traumas muito profundos”, complementa.

“Não são tão visíveis como os maus tratos físicos, que podem deixar e deixam marcas físicas, mas deixam marcas profundas que muitas vezes viajam para lá da infância, que ficam na idade adulta e que geram uma baixa autoestima e maior de propensão para a depressão, insegurança e ansiedade”, informa.

Assim, o mote Serei o que me deres… Que seja amor surge com o propósito de combater os maus tratos transgeracionais e aumentar a consciência dos adultos de que o seu “exemplo” pode determinar o comportamento das crianças no futuro.

“É uma tentativa de explicar que, se dermos amor às crianças, elas vão ser amor para os outros e, por isso, a importância do afeto, da atenção, da comunicação. Naturalmente que as crianças têm que ter limites, (…) mas isso é muito bem interiorizado quando há uma relação afetuosa, carinhosa, de comunicação fluída”, diz.

Farmhouse reforça a importância de valorizarmos uma relação com as crianças onde haja explicações “claras e informativas”, que são atualmente dificultadas pela intensidade das rotinas e conciliações entre trabalho, família e vida pessoal.

“Há muito o ‘não, porque não’ e o ‘não, porque eu não quero’, que fazem com que a criança não perceba bem o porquê e muitas vezes tende a desenvolver mecanismos de nos levar outra vez a fazer o que ela quer, porque, nem que seja pela exaustão, vai conseguir”, diz.

Além da casa, a responsável confirma que ainda existe muita violência nas escolas, através do bullying físico, verbal e também social. Relativamente a este último, Rosário Farmhouse enfatiza o quão traumatizante podem ser situações como o “convidarem todos para a festa de aniversário, menos aquela criança” e exclusão de encontros ou jogos entre colegas.

“Mais uma vez, à semelhança do que sofrem em casa quando são humilhadas e comparadas, o bullying, se não é atacado a tempo, pode deixar marcas profundas na autoestima da criança e é naquilo que será o seu futuro”, clarifica, assinalando a relevância da atenção dos pais e do corpo escolar para estas situações.

Por fim, adiciona que há zonas que são mais “agressivas e violentas”, do ponto de vista do espaço de rua. “Não quero com isto dizer que as crianças vítimas de maus tratos são apenas e só aquelas que vivem em contextos sociais mais desfavorecidos. Os maus tratos são transversais”, evidencia.

“Temos maus tratos gravíssimos nas classes sociais muito elevadas, que vivem em condomínios privados, em que ninguém entra, em que se protegem uns aos outros na saída de qualquer tipo de informação, em que têm médicos que passam atestados a justificar o que é injustificável, têm escolas que justificam faltas que não são justificáveis… Isso também acontece e também se tem que estar muito atento”, completa.

Rosário Farmhouse crê que a proteção das crianças é um dever e uma obrigação de todos. “A única forma de combater os maus tratos é mesmo cada um de nós perceber que tem uma missão a cumprir com as crianças à nossa volta. É não ficar indiferente e perceber que começa em cada um de nós”, conclui.

Editado por João G. Oliveira