Em abril assinala-se o Mês da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância. A este propósito, o NOVO procurou perceber qual é o retrato atual deste tema no país e a situação dentro das casas que acolhem as crianças e jovens vítimas de situações de risco.

“É importante destacar que há uma espécie de tendência, quando estamos a educar uma criança, de alertá-la para as formas de violência fora do contexto familiar”, expllica ao NOVO Carla Ferreira, Assessora Técnica da Direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). “Mas o facto é que a maior parte das situações que são reportadas – quer formalmente, às autoridades policiais e à justiça, quer também a entidades como a APAV ou organismos como a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens – são situações de violência dentro do contexto familiar”, declara.

“Portanto a casa, que deveria ser um local seguro, deixa de o ser para um número muito significativo de crianças e jovens”, adicionando que há imensas vítimas de variadas formas de violência, em diferentes idades e contextos.

Refere o espaço online também tem sido uma “fonte de preocupação para as famílias e para o próprio contexto educativo e de outras atividades em que as crianças estão envolvidas”, explica. Nomeadamente, menciona o cyberbullying e as situações de aliciamento, ou seja, em que as crianças são aliciadas a manterem algum tipo de contacto sexual (como a partilha de imagens ou troca de mensagens), seja presencial ou online, com outras pessoas, quer alegadamente adultas ou até da mesma idade.

Carla Ferreira é também gestora técnica do CARE – Crianças e Jovens Vítimas de Violência Sexual, projeto da APAV que, desde 2016, procura oferecer tanto apoio às vítimas e às suas famílias, quanto também formas de prevenção junto das próprias crianças e jovens em situações de violência sexual, assim como formação e capacitação das famílias e das comunidades para que estejam “cada vez mais atentas e possam auxiliar potenciais situações de violência de que tenham conhecimento”.

Casas de acolhimento

Esta violência dentro de casa leva à ativação de recursos como as casas de acolhimento. De acordo com a Portaria n.º 450/2023, de 22 de dezembro, estas habitações destinam-se às “crianças e jovens a quem sejam aplicadas as medidas de promoção e proteção de acolhimento residencial ou de confiança a instituição com vista a adoção”, por forma a “concretizar os seus projetos de vida”, a sua “proteção” e a “promoção dos seus direitos”.

Fátima Serrano, diretora da Casa de Acolhimento da Encosta, declarou ao NOVO que as principais causas que levam a que as crianças e jovens tenham de ir para esta residência é a negligência parental, os problemas de saúde mental e o alcoolismo nas famílias. Serrano é secretária-geral da Associação Portuguesa para o Direito da Criança e da Familia – CrescerSer, que reúne seis casas de acolhimento, abrigando 86 crianças diariamente.

“Os miúdos entram na casa com grande sentimento de culpa, visto que eles acham que o que há de errado nas suas famílias está relacionado com eles, sendo que as casas responsabilizam-se por tentar tirar esse sentimento”, explica ao NOVO Marisa Ferreira, presidente da direção da Fundação Maria Droste, onde estão incluídas três casas de acolhimento e apartamentos de autonomia.

A responsável informa que experiência da fundação vai ao encontro com os resultados nacionais do relatório CASA 2022, apontando também a negligência parental como causa principal, seguido de uma elevada percentagem de abuso sexual e maus-tratos físicos. O relatório CASA, publicado em 2022 pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, retratou as tendências dos anos anteriores no que à situação das crianças e jovens em acolhimento diz respeito.

“O dia do acolhimento é o dia que os miúdos mais se lembram”

Outro grande desafio é confiarem nos adultos, visto que viveram num ambiente de violência e abuso por parte dos adultos que supostamente seriam os seus cuidadores. “Há uma patologia do vínculo e dificuldade em criar relações de confiança”, diz Marisa Ferreira. “Investimos muito na relação, numa primeira abordagem, porque sem relação nós não conseguimos trabalhar, de facto, nas outras questões”.

Assim, a presidente de direção defende que o acolhimento residencial deve ter um complemento terapêutico, tendo em conta os jovens adolescentes que clamam por uma resposta diferenciada às situações emocionais e traumas que carregam consigo, de maneira a “travar o ciclo” e impedir que esses comportamentos se voltem a repetir dentro das suas futuras famílias.

“Parece que, quando se dá o acolhimento, a criança deixa de ser uma preocupação, sendo que o acolhimento é uma situação traumática para a criança”, comenta. “O dia do acolhimento é o dia que os miúdos mais se lembram, precisamente por ser um dia bastante marcante nas suas vidas, e por isso precisam ter uma série de serviços alinhados, como consultas de psicologia, escola, assim como na parte juridica.”

É necessário “cuidar de quem cuida”

Acrescenta que, apesar de haver uma maior preocupação das políticas sociais em relação a este tema, ainda estamos num processo evolutivo. “Há instituições e resposta que ainda não conseguem satisfazer o acolhimento como resposta terapêutica e não meramente residencial, que pode ter a ver com pouco investimento, para que possa dar quantidade e qualidade nos recursos humanos”, diz.

A este respeito, Serrano confessa que a maior dificuldade é o recrutamento de pessoal, devido aos ordenados serem “muito baixos”. “Nota-se um grande desgaste nas equipas, é necessário muita formação, supervisão e, cada vez mais, temos de ter a preocupação de ‘cuidar de quem cuida’”.

“Da relação nasce a luz”

Com o lema “da relação nasce a luz”, a associação Candeia procura, há mais de 30 anos, complementar o trabalho feito pelas casas de acolhimento residencial, através da dinamização de atividades lúdicas com estas com crianças e jovens, tendo em vista  “criar relações estáveis e duradouras para crianças que passaram por situações de rutura e instabilidade social muito grande”, refere ao NOVO Miguel Simões Correia, presidente de direção.

Atualmente, a associação acompanha cerca de 30 casas de acolhimento e mais de 200 jovens, ultrapassando os 100 voluntários repartidos por 150 atividades durante o ano, que visam criar momentos em que possam “ser criança ou jovem sem ter preocupações excessivas para lá daquilo que seria bom para o seu desenvolvimento” e que seja uma “vivência muito mais leve”.

Simões Correia é também coordenador do projeto Amigos P’ra Vida, que procura aprofundar a relação que algumas crianças e jovens criam com certas figuras de referência, como animadores ou famílias voluntárias “com o perfil adequado e a disponibilidade para lhes dar apoio”.

“É preciso perceber que o acolhimento não é composto por crianças órfãs, estas são poucas. Muitas vezes o que acontece é que são famílias que não têm capacidade de dar resposta às necessidades das crianças. Portanto, o maior motivo de retirada de 70% das crianças jovens é a negligência”, declara. O responsável, mestrando em Direito Social, explica que a negligência é mais fácil de ser provada em tribunal, mas por detrás dela podem haver outros problemas, tais como a violência sexual.

Estes jovens regressam aos lares de origem?

Marisa Ferreira refere que a grande maioria das miúdas acolhidas não quer regressar aos lares de onde vieram, optando por ingressar em processos de autonomia durante a sua transição para a vida adulta. “Quando experimentam outros padrões de relacionamento, como o que vivenciam aqui na nossa casa, já não querem voltar às suas famílias pois percebem que não é saudável e nem aquilo que seria esperado, para além de que têm ajuda por parte da casa, assim como outros jovens que têm auxilio das suas familias”.

Refere também que “estas famílias, quando os miúdos chegam com 15 e 16 anos, não têm motivação nem capacidade de mudar os comportamentos, já muito enraizados”, atribuindo a culpa aos filhos adolecentes, por se encontrarem numa fase de vida naturalmente “problemática”, referindo até um certo “alívio” por não terem que lidar com os mesmos.

A experiência de Fátima Serrano é diferente: os jovens acolhidos geralmente regressam às suas famílias de origem. “Tentamos fazer um trabalho muito próximo com as famílias e os jovens acolhidos. São empoderados de competências pessoais e sociais, de forma a ajudar os progenitores em pequenas mudanças”, descreve.

“A parentalidade também se aprende e se constrói”

“A maioria das crianças e jovens que saem do acolhimento voltam para junto da família biológica. E, portanto, isso mostra o quanto é que procuram preservar o vínculo biológico, mas, por outro lado, mostra-nos também que estas crianças, em vários casos, não precisam de outra resposta de inserção familiar, precisam é que se trabalhe com a família biológica”, aponta Simões Correia, reforçando o quão importante é dar recursos e apoio à família no sentido de “desenvolverem as competências ligadas à parentalidade”, trabalho ainda muito deficitário no país.

“A parentalidade é dado como algo que é natural e inato, e isso não é bem assim. A parentalidade também se aprende e se constrói. Temos de apostar em programas de parentalidade e de prevenção da violência, também com a capacitação para a identificação precoce de sinais de violência”, acrescenta Simões Correia.

O escasso acolhimento familiar 

Lamenta ainda que 97% do acolhimento em Portugal seja residencial, contra escassos 3% de acolhimento familiar (números que retira do relatório CASA), caracterizado por ser a colocação da criança ou jovem em um meio familiar estável, de caráter temporário, com o pressuposto de regresso à família de origem, segundo o Guia Prático Acolhimento Familiar de Crianças e Jovens, formulado pelo Instituto da Segurança Social. “E isso é um grande problema”, alerta Simões Correia, uma vez que o preferível seria sempre o modelo familiar por oferecer aos jovens uma vida mais “saudável”.

“A nossa sociedade está muito pouco sensibilizada para este modelo e para esta necessidade, e isso resulta em uma taxa de acolhimento residencial muito elevada”, lamenta. “É a taxa de acolhimento residencial mais alta de toda a Europa”, de acordo com o relatório Pathways to Better Protection: Taking stock of the situation of children in alternative care in Europe and Central Asia, desenvolvido pela UNICEF, onde foram analisados 42 países, incluindo Ásia Central.

Serrano adiciona que o aumento da pobreza tem tido reflexo nas infraestruturas para a primeira infância, equivalente ao período dos primeiros anos de vida. “Enquanto não houver uma política concertada ao nível da primeria infância, vamos continuar a ter as nossas crianças a viverem maus-tratos e sujeitas a muitos tipos de violência”, complementa.

“Estes miúdos precisam de respostas urgentes”

Uma parte da solução, em comum acordo pelas responsáveis das casas de acolhimento, passa pelo mesmo: maior financiamento para os recursos humanos, conjugado com uma maior celeridade na parte jurídica (de maneira a que as crianças não estejam tanto tempo expostas àquela realidade quando se podem adiantar as respostas) e maior acompanhamento às famílias no terreno, tanto na prevenção (para evitar o acolhimento nos casos em que for possível e também para tentar perceber melhor a realidade familiar), quanto na aplicação do acolhimento de forma mais rápida quando não há outra alternativa. “Estes miúdos precisam de respostas urgentes”, sublinha Marisa Ferreira.

Miguel Simões Correia enfatiza que estas crianças e jovens são uma minoria particularmente vulnerável, sem capacidade organizativa e de auto-representação política, pelo que devem ser uma classe “especialmente cuidada”, cujos direitos devem ser particularmente protegidos “porque não têm capacidade de se fazer ouvir por si só.”

“É importante que quem pode decidir devolva a estas crianças a sua voz, que as oiça e que elas sejam tidas em conta em todas as questões que lhes são relativas”, conclui Simões Correia, em referência à participação da criança e dos jovens nos seus próprios processos judiciais.

E haverá realmente alguma forma de se prevenir os maus-tratos na infância?

“Nós não vamos (seria utópico dizê-lo) conseguir erradicar todas as situações de violência contra as crianças, porque temos múltiplas, em múltiplos contextos”, discorre Carla Ferreira. “Mas o facto é que, se tivermos a consciência de que os maus-tratos podem ser reais e que são situações universais – de que não acontecem apenas a crianças que estão numa situação de uma família mais pobre, mais desfavorecida ou que estão em contextos de vida muito diferentes do nosso, e que todas as crianças e jovens podem ser vítimas de um crime -, certamente estaremos aptos a, pelo menos, não só diminuir a frequência, mas também a diminuir o potencial impacto, porque nós teríamos pessoas adultas e crianças mais capacitadas a pedir ajuda, à mínima suspeita ou acontecimento”, diz.

Alerta, por fim, que a consciencialização é um passo “muito significativo” para a prevenção, numa perspetiva de estarmos atentos e, simultaneamente, darmos às próprias crianças ferramentas para identificar as situações e recorrerem a pessoas adultas da sua confiança para se precisarem de ajuda.

“Eles dão todos os sinais e nós é que não vemos. Tentamos agir para “apagar fogos” e não nos preocupamos tanto com a prevenção, o que é muito cultural”, complementa Marisa Ferreira.

Citando as chamadas “palmadas educativas”, a responsável da APAV chama igualmente a atenção para a importância de termos uma sociedade que não permita qualquer tipo de violência. “Não tolerarmos a violência também é um passo na diminuição da sua frequência”, conclui Carla Ferreira.

Editado por João G. Oliveira