Na Comarca de Lisboa Norte, com sede no Tribunal de Loures, foi nomeada a 1 de fevereiro uma administradora judiciária sem os requisitos legais para o exercício do cargo. Mas, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) entende que a juiz-presidente, responsável pelo despacho de nomeação, agiu “no âmbito das suas competências legais”. O Ministério Público (MP) diz que existem ilegalidades na decisão, sem, no entanto, suscitar a impugnação do despacho.

Anabela Rocha, a juiz-presidente que assinou a nomeação, justificou a decisão com a experiência de Sónia Mascarenhas, a funcionária escolhida, porque desde há três meses que exercia o cargo em regime de substituição, e por ser da sua confiança pessoal.

A Procuradora -Geral Adjunta, coordenadora da Comarca de Lisboa-Norte, logo manifestou a discordância porque, conforme afirmou em parecer a que o NOVO teve acesso, “a nomeação não reúne os requisitos legais estatuídos nos termos dos art.ºs 104 e 107 da LOSJ e o art.º 14 e seguintes do Decreto-lei 49/2014 de 27 de março.”

O Conselho Superior da Magistratura (CSM), contactado pelo NOVO, garante que “nenhuma questão se coloca quanto à legitimidade ou legalidade” porque – assegurou – a nomeação foi feita no “âmbito das competências legais” da magistrada.  Porém, constatou o NOVO, a 16 de abril, por decisão assumida em Plenário, o mesmo CSM resolveu não renovar a comissão de serviço à juiz-presidente, nomeando para aquele cargo, na Comarca de Lisboa Norte, a juíza de direito Sara Pina Cabral.

O CSM, entidade responsável pela gestão e fiscalização dos juízes, esclareceu ainda ao NOVO, que Anabela Rocha “se encontra em funções, cargo que ocupará até à data da tomada de posse da nova juíza presidente”. Depois da tomada de posse, matizou, “as decisões relativamente a esta matéria serão da responsabilidade da nova juíza presidente da comarca.”

Esta última explicação é relevante porque no despacho de nomeação, a que o NOVO teve acesso, Anabela Rocha diz expressamente: “Além disso, a pessoa a eleger deverá merecer o juízo de confiança pessoal e profissional, formulado pelo juiz-presidente, que o nomeia e lhe confere posse, e dirige a comarca (artigos 94.º, n.º 2, al. a), e 104.º, n.º 3, da L.O.S.J.)”. Mais abaixo, no mesmo despacho, esclarece que conhece bem a nomeada, o modo como trabalha e se empenha, afirmando: “Tendo, assim, granjeado a minha confiança pessoal e profissional”.

A importância da confiança pessoal é reconhecida pela própria juiz-presidente, suscitando a questão de saber se a 1 de fevereiro já teria conhecimento de que a 16 de abril o CSM iria afastá-la do cargo.  O NOVO colocou a pergunta ao CSM, à qual respondeu: “A nomeação da administradora judiciária ocorreu numa altura em que ainda não tinha conhecimento de que a comissão de serviço não seria renovada.” Acrescenta, depois, que Anabela Rocha “mantém a confiança manifestada na fundamentação da nomeação.” Resta agora saber se a nova juiz-presidente, após a tomada de posse, irá igualmente suscitar a questão da confiança pessoal. Se o fizer terá, naturalmente, de nomear outra pessoa.

Questão de legalidade

Contudo, não se trata apenas de uma questão de confiança pessoal. Trata-se, sobretudo, de uma questão de legalidade – que o CSM não admite.

Maria de Lurdes Rodrigues Correia, a magistrada coordenadora do MP naquela comarca, no parecer elaborado, é perentória: “Manifestamos […] a nossa total oposição à recondução da funcionária Sónia Mascarenhas ao exercício das funções de Administradora Judiciária da Comarca de Lisboa Norte, desde logo porque a mesma não reúne os requisitos legais estatuídos nos termos dos art.ºs 104 e 107 da LOSJ e art.º 14 e seguintes do Decreto-lei 49/2014 de 27 de março.” Ao que o NOVO apurou, a magistrada, embora perentória no reconhecimento da ilegalidade, nenhuma outra ação suscitou para que a nomeação fosse considerada nula.

Sendo o MP, à luz da Constituição, o garante da legalidade, questionamos a Procuradoria-geral da República (PGR) sobre este assunto, mas não obtivemos resposta até ao momento de publicação deste texto.

Havendo, ao mesmo tempo, uma tomada de posição do CSM que desconhece qualquer ilegalidade, e conhecendo a posição do MP, que admite a ilegalidade, mas sem agir, quisemos saber o que pensa sobre esta matéria o Sindicato dos Oficiais de Justiça (SOJ).

Esta entidade sindical é igualmente perentória: “a nomeação da administradora judiciária é ilegal por não cumprir todos os critérios previstos na lei”.

Carlos Almeida, presidente do SOJ, em declarações ao NOVO, diz não ter dúvidas de que a nomeação da juiz-presidente viola as normas vigentes pelo que deverá ser considerada ilegal. “Os magistrados deveriam ser os primeiros a cumprir o que está estipulado legalmente”, defendeu, considerando também “estranho” que a Procuradora-Geral Adjunta, Maria de Lurdes Correia, não tenha suscitado a impugnação da decisão. “A fundamentação que apresentou ao sindicato, depois de questionada, assentou numa apreciação sobre as pessoas e não na legalidade”, revelou-nos Carlos Almeida, advertindo:  “À luz da Constituição da República Portuguesa, cumpre ao Ministério Público defender a legalidade.”

A resposta de Carlos Almeida foi esclarecedora: a magistrada não suscitou a ilegalidade da nomeação porque em causa estará um parecer sobre a pessoa a ser nomeada e não sobre a legalidade da nomeação. No entanto, conforme o NOVO pôde constatar, é a própria magistrada que reconhece, no parecer, a ilegalidade em causa.

 

Contexto estranho

Desde há três meses que se arrastava a questão da nomeação de um novo administrador judiciário para a Comarca de Lisboa Norte.

Seguindo os trâmites normais, a Direção Geral da Administração da Justiça (DGAJ) indicou cinco nomes, todos reunindo os requisitos legais, para que a juiz-presidente pudesse escolher um, depois de, conforme manda a lei,  ouvir o MP.

Os requisitos legais incluem: Ser oficial de justiça; ser detentor da categoria de Secretário de Justiça; ter pelo menos 15 anos de serviço; ter formação académica na área do direito; e ter frequentado um curso de formação específico no Centro de Estudos Judiciários (CEJ); além disso, a pessoa a eleger deverá merecer o juízo de confiança pessoal e profissional formulado pelo juiz-presidente que o nomeia e lhe confere posse.

Dos cinco propostos, a magistrada do MP apontou um. Trata-se de Victor Manuel Duarte Mendes, 66 anos, tem duas licenciaturas, uma em engenharia técnica agraria e outra em Direito, e foi aprovado no curso de formação especifico para o exercício de funções de administrador judiciário do CEJ, além de ter nove anos de experiência como administrador Judiciário. “O candidato apresenta um curriculum irrepreensível e apreciável”, escreveu a Procuradora-Geral Adjunta.

Ao que o NOVO apurou, o candidato escolhido pelo MP tinha estado na Comarca de Viseu e saiu porque o juiz-presidente emitiu um despacho com a decisão de lhe não renovar a comissão de serviço. Segundo as fontes do NOVO, não é usual a não renovação de uma comissão de serviço ser motivo de despacho específico. Não foi possível apurar as razões do juiz-presidente da Comarca de Viseu.

A ainda juiz-presidente da Comarca de Lisboa Norte, não duvidou das qualidades dos candidatos propostos pela DGAJ, mas salientou que nenhum deles conhece a realidade da comarca. “Nenhum dos candidatos exerce, ou alguma vez exerceu funções nesta comarca, que assim não conhecem (a não ser pela mera leitura dos textos legais e dos relatórios da comarca). Denotaram, portanto, desconhecimento do concreto funcionamento e particularidades desta comarca, ignorando totalmente a sua forma de organização, os seus recursos humanos e materiais e as suas instalações”, disse a juíza, admitindo, no entanto, ter já trabalhado com Victor Mendes.

Escreveu Anabela Rocha: “O afirmado não é afastado pelo facto de a signatária, no decurso da sua carreira, ter conhecido pessoalmente o candidato Victor Mendes, uma vez que, como a própria, o candidato ter exercido funções no então tribunal de Vila Franca de Xira, agora integrante do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte”. E destacou: “É de sublinhar a larga experiência do candidato Victor
Mendes, bem como a postura adequada apresentada pelo mesmo em sede de entrevista.”

O critério de fundo para a magistrada afastar os candidatos da DGAJ foi tão somente “o (des)conhecimento do concreto funcionamento e particularidades da comarca e a (in)existência da relação fiduciária com o juiz-presidente e a magistrada do Ministério Público Coordenadora”, escreveu.

Sobrava ainda a possibilidade de Anabela Rocha solicitar à DGAJ outros candidatos que, além de reunirem os requisitos legais, pudessem ter também algum conhecimento sobre aquela comarca. Mas, antes mesmo que tal pudesse acontecer, a magistrada logo esclareceu: “Também não se revela adequado recorrer a qualquer outro dos oficiais de justiça que se encontram aprovados nos cursos de formação específicos para o exercício do cargo de Administrador Judiciário e que estão disponíveis para exercer tal função nesta comarca porque padecem das mesmas limitações dos candidatos indicados, como acima se expôs”.

Assim , sendo, e porque – escreveu – “a comarca não pode estar desprovida de um administrador judiciário”, Anabela Rocha decidiu optar por Sónia Mascarenhas que, embora não sendo Secretária de Justiça, como manda a lei, exerceu o cargo na qualidade substituta durante três anos, e embora não tenha frequentado a formação do CEJ, como também manda a lei, exercia naquela comarca, desde o dia 2 de novembro de 2023, o cargo de administradora judiciária na qualidade de substitua, “tendo assim granjeado a minha confiança pessoal e profissional”, escreveu.

A juiz-presidente tomou a decisão contando que ficasse pelo menos mais três anos à frente da comarca. Mas, o CSM, sem nunca revelar os motivos, afastou-a daquele lugar. Ao NOVO apenas garantiu que a magistrada agiu “no âmbito das suas competências legais”. É um facto que a decisão de nomear um administrador judiciário é da competência do juiz-presidente. Mas a questão que se coloca é de saber se no exercício das suas competências legais teve em conta os requisitos legais que enforma a decisão. A magistrada do MP disse que não foram cumpridos esses requisitos porque a pessoa nomeada nem detém a categoria de Secretária de Justiça, nem frequentou a formação do CEJ. A “batata quente” passa agora para a próxima juiz-presidente Sara Pina Cabral que, seguramente, já terá orientações do CSM sobre como resolver a questão.

Ao que o NOVO apurou, em várias outras comarcas estão nomeados administradores judiciários que não cumprem os requisitos legais, tendo sido escolhidos por decisão do juiz-presidente, como se normas não existissem, ou como fossem eles os “senhores das normas”.