Benjamim edita hoje As Berlengas, quinta longa-duração e disco duplo, que pretende fazer uma reflexão política e social atual do estado do país e do mundo.

Nesta entrevista, o músico leva-nos por uma viagem às Berlengas – que são diferentes para cada pessoa que ouvir o disco –, explica o processo de construção de um álbum que começou por ser uma banda sonora para um filme que só existia na cabeça de Benjamim, mas que acabou por tornar-se realidade através do argumento de Bruno Ferreira e da coreografia desenhada por João Moreira, que acabaram, inevitavelmente, por influenciar o trabalho final.

As Berlengas estão disponíveis em formato digital e também em vinil, que conta com anotações do próprio Benjamim para guiar o ouvinte por esta fuga em direção a um mundo utópico.

Sete anos depois, as Berlengas dão finalmente à costa…
Nós é que chegámos à costa. Eu que cheguei à costa… [risos]

Como foi chegar a bom porto?
Foi um processo muito longo, feito em paralelo com muitos outros projetos, de constantes começos, arranques e paragens e arranques e paragens e dúvidas. Muitas fases, muitas ideias. O disco chegou a ter para aí 26 ou 27 músicas, mas é daqueles projetos que tinha… Sabes aquele projecto doméstico que tu tens?, tipo, um dia vais pôr prateleiras na sala, sabes que precisas e vais pôr, mas passas seis anos a dizer que vais pôr… As Berlengas é um bocado esse meu projeto, que tinha a certeza de que ia acabar, mas precisava do momento certo para fazê-lo e da disponibilidade mental e mesmo prática. Precisava de ter tempo para para me dedicar a isto.

O que motivou essa falta de disponibilidade?
Estive a produzir muitas coisas, lancei outros discos. Quando comecei a trabalhar n’As Berlengas, ainda não tinha misturado o 1986, o meu disco com o Barnaby Keen. Foi nessa altura, mais ou menos, que comecei… O disco nasce de uma espécie de rejeição do formato de canção, de estar farto da eficácia pop, do refrão, do verso, da letra, de tudo ter de ter uma letra. Apetecia-me fazer música que fosse mais livre, que não tivesse tantas amarras. E começou a aparecer assim, comecei a fazer umas coisas com a minha MPC… Houve várias faíscas que nasceram ao mesmo tempo na ideia do projeto… Se tu agarrares – seja numa guitarra, numa MPC ou no que for no instrumento que for… –, se só fizeres música por fazer música e não houver nenhum destino ou contexto, é só um exercício de retórica. Foi numa altura em que queria explorar o sampling, estava a ficar muito interessado mesmo na ideia de hip-hop… Na minha cabeça, aquilo quase que nasce como um disco de hip-hop…

E acabou uma coisa completamente diferente de hip-hop…
Sim, sendo que tem lá a marca do sampling, da MPC… Não tem rap, não tem hip-hop, não é hip-hop de todo… Comecei a ficar obcecado pelo J Dilla, por uma série de coisas, de músicas, que vieram parar um bocado aqui a este universo. Do ponto de vista artístico, não técnico e musical, há a ideia de ser uma fuga, porque, quando comecei a fazer este disco, como era um espaço de liberdade, em que não tinha de escrever letras para as canções, chegava a casa e começava a criar. E comecei a criar assim uma série de projetos de música que, para mim, faziam parte do mesmo universo. De repente, comecei a desenhar um universo… Quando começava a fazer a próxima música, já tinha um bocado a referência do universo em que estava a trabalhar. Escolhi o nome Berlengas, porque comecei a ver isto como uma fuga. Comecei a imaginar uma coisa… Era verão quando comecei a fazer isto e imaginava uma praia, imaginava a água… Era um sítio, para onde eu fugia, que fosse o mais distante do sítio onde eu estava, de estar em Lisboa, fechado em casa, a fazer música. Essa ideia das Berlengas foi uma espécie de um clique. Comecei a ir ao Google, ver imagens da ilha da Berlenga e percebi que não é nas Caraíbas, é à frente de Peniche.

Uma das minhas perguntas é mesmo essa: qual é o teu fascínio pelas Berlengas?
É mítica! Nunca tinha ido! Tudo isso, o facto de nunca ter ido, o nome ser engraçado e de ser muito portuguesa essa ideia de ter uma coisa mesmo ali… As Berlengas, às vezes tiras a foto àquilo e está completamente descontextualizado o que é, mesmo a nossa costa naquele sítio, que podia ser em qualquer lado do mundo. Ou seja, há um lado bizarro e um lado místico… Depois também comecei a estudar um bocado e a explorar o lado místico… Os romanos já tinham cartografado a Berlenga, chamavam-lhe a Ilha de Saturno… Os corsários que atacavam a ilha e os padres que viveram no convento… As histórias dos pescadores, todos os mitos dos pescadores, ser uma ilha com condições difíceis e pessoas ficavam a dormir, quando o mar estava mau, num sítio muito precário… É um sítio em que cada pedra tem um nome, porque é tão pequeno e os pescadores, para não ficarem malucos, davam nome a tudo. Comecei a ter muito interesse…

E incorporaste essa mitologia na tua música…
Sim, acho que sim. Os nomes de muitas músicas têm a ver com os locais, têm a ver com a mitologia que carregamos. O Furado Grande, a Cova do Sonho ou a Cova do Sono, tem dois nomes, até isso é engraçado… Há sítios que, depende a quem perguntares, vão dar-te um nome de maneira diferente… Incorporei, mas numa fase mais tardia, porque este projeto de fuga começa a desenvolver-se…

É muito difícil para mim fazer uma cronologia muito precisa de quando as coisas aconteceram. Mas, às tantas, já tinha muito material e comecei a imaginar uma história, tinha um alinhamento provisório, uma espécie de alinhamento… Quando começo a desenhar a história, começo a perceber que aquilo tinha um lado cinematográfico na música e que, para mim, isto era a banda sonora para um filme que só existia na minha cabeça, era o meu projeto de fuga. Era um filme pessoal. Não estou a gozar! Punha aquilo a tocar e havia imagens que me vinham à cabeça. Falei com o Bruno Ferreira, passado muito tempo, o realizador… Falei-lhe dessa ideia da banda sonora para um filme que não existia, que eu ouvia pessoas a dançar no filme… Ele lembrou-se que podíamos fazer um filme de bailado… Falámos com o João Moreira e isso foi muito importante no processo, por causa da mitologia.

A partir do momento em que falo com um coreógrafo, que tenho de desenvolver uma coreografia, com um realizador que tem de fazer um filme, eu tenho de ter uma espécie de argumento, um guião… Então, o meu exercício foi: agora que tenho ideias, algumas delas mais vagas que outras ou mais ambíguas, vou ter de coser aqui a história, vou ter de aplicar a simbologia, os nomes… Tinha uma lista com nomes, histórias, uma série de referências num caderno e foi um bocado encaixar o puzzle todo… Havia músicas que eram coisas muito específicas, outras que não eram tão específicas, havia músicas que evocavam determinadas ideias… Obviamente que uma música instrumental evoca uma ideia, está na minha cabeça, para mim é muito difícil descolar disso… Foi preciso perceber como é que esta ideia ocorre na história? Onde é que isto ocorre na história? Onde é que isto faz sentido acontecer?

Depois houve um momento muito importante, que foi o momento em que fomos à Berlenga, pela primeira vez, fazer a repérage. Agarro num gravador e gravo sons da ilha, a música, a própria música da ilha. Chego a casa, vou para o estúdio e começo a pôr sons e a samplar e a perceber… “Uau! Isto agora é mesmo as Berlengas”… Todo o diálogo que houve com o João, na coreografia, com o Bruno, isso foi tudo canalizado para dentro do disco. Isto começa como com a música, que vai multiplicando-se num filme, numa espécie de um bailado, mas, quando estamos na Berlenga a rodar o filme, as músicas não estão acabadas. Mesmo as pessoas que conhecemos durante a rodagem, as coisas que aconteceram, isso entrou dentro da música. Ou seja, há uma espécie de pescadinha de rabo na boca, é uma coisa que está a autoalimentar-se e a multiplicar-se.

Vamos tocar ao vivo o disco e vamos tocar outra maneira completamente…. Não é completamente diferente, mas de maneira livre, não é exatamente… Vai ter samples que vais reconhecer lá, mas vai ter um lado livre, momentos musicais, que podem ser espontâneos… Para mim, as Berlengas é uma espécie de organismo vivo. Há o álbum, mas, de cada vez que tocramos a música ao vivo, vai ser diferente. Não vai ser exatamente a mesma coisa. Quando acabarmos o filme, que ainda não acabámos de rodar, tenho a certeza que também vai ser influenciado pelo aquilo que nós fizemos no concerto. O Bruno vai fazer visuais para o concerto.

No final de tudo, para o ano, gostávamos de fazer uma apresentação em que fazíamos o bailado ao vivo, baseado naquilo que ao filme, que já é uma desmultiplicação do concerto original. Em todas essas fases, a ilha, a mitologia da ilha, a história, as coisas que vão acontecendo vão entrando para dentro daquilo que são As Berlengas.

As pessoas que conhecemos durante a rodagem, as coisas que aconteceram, isso entrou dentro da música. Ou seja, há uma espécie de pescadinha de rabo na boca, é uma coisa que está a autoalimentar-se e a multiplicar-se.

O filme não está acabado, mas já podemos ver algumas cenas nos videoclips dos singles. Como tem sido esse processo todo de criação, além do que já descreveste?
Um desafio, um desafio enorme. É preciso ter em consideração que isto é um projeto com um orçamento muito reduzido, que custa muito dinheiro. É um desafio logístico imenso. Somos uma equipa pequena, somos uma editora pequena. Felizmente, tenho uma agência extraordinária a trabalhar comigo, a ajudar a fazer produção, mas, epá, é sempre difícil, não é? Quando não há muito dinheiro, é difícil fazer as coisas.

Logisticamente, é mais difícil, autorizações, viagens… É que fazer este filme não é tipo irmos para um set, durante quatro dias… É ir para uma ilha que não tem água potável, tens que levar cozinheiros e toda a comida. Tudo. Não podes esquecer-te de nada, senão não tens… Se não tens água, não bebes. A eletricidade a meio da noite acaba. É todo este contexto… Se formos filmar ao topo da ilha, toda a equipa, os bailarinos, toda a gente, tem que carregar tripés e colunas… Foi um grande desafio.

Que história tens na tua cabeça que pretendes contar-nos?
O ábum e a história das Berlengas, como eu disse, é uma fuga. É quase chegar a casa, pôr os phones, entrar neste universo e de repente estou a ir. Estou a ir pelo mar até à Berlenga, que é exatamente o que acontece no primeiro vídeo que partilhámos, que é o início do filme. É o João a chegar à ilha… Ele chega à ilha motivado por desilusão, seja pessoal, seja política, seja humanista… Quando chega à ilha, estão outras pessoas para recebê-lo e elas próprias também vieram para a ilha a nado. Há um lado muito interessante no filme: não existe uma personagem principal. Toda a gente que está ali chegou à ilha. Não é uma espécie de colonização. A ilha existe, as pessoas chegaram todas e estão a viver a sua própria experiência. Não há o foco numa pessoa específica.

Quando chegam à ilha, percebem que as pessoas também estão divididas, tal como no mundo real. Ou seja, é a ideia Atrás da Barricada, que foi a segunda canção que saiu, a ideia de que hoje estamos todos fechados, seja no forte… No caso da ilha, eles fecham-se todos no forte e ficam dois cá fora, numa dança tensa, numa relação, a fronteira muito ténue entre o amor e o ódio. Não sabes se estão quase a acasalar ou se estão a lutar. Por muito que te escondas atrás da tua barricada, não te salvas do calor, só sobra a trovoada. Se o mundo acabar, acaba atrás da tua barricada também, não é? Há um lado meio apocalíptico, meio bíblico. Não te salvas do calor, um bocado das chamas do inferno, que, no fundo, também são as chamas de se calhar 60 graus no Rio de Janeiro, de seca e verões extremos e de mudanças climáticas… Há muita ciência a discutir por trás disso, mas que vem impor mudanças no nosso modo de vida, na maneira que conhecemos o mundo, como isso se desdobra em movimentos, em ideologias, diria quase fascistas, não é?, repressivas ou uma polarização… Depende da perspetiva em que estás, é sempre polarizado, não interessa se é de acordo com o que tu pensas ou não. Há um lado politicamente muito actual no disco. Aliás, há a cena da guerra, A Rendição é uma canção que já foi escrita depois da invasão da Ucrânia, por exemplo, e aplica-se exatamente à invasão da Faixa de Gaza, agora, por Israel. A ideia de que, depois de uma pandemia… Aliás, o início da música é: Recentemente vimos cinzas renascer, os dias… Como é que é? Os dias parecem ser piores… Nós imaginávamos que íamos sair da pandemia e, olha, agora é que vai ser…

Por muito que te escondas atrás da tua barricada, não te salvas do calor, só sobra a trovoada. Se o mundo acabar, acaba atrás da tua barricada também, não é? Há um lado meio apocalíptico, meio bíblico.

Ia ficar tudo bem…
E de repente, pumba! Levas com a guerra, de repente, entra-te a guerra em casa 24 horas por dia… Os primeiros dias, as primeiras semanas foram alucinantes! Ligavas o telejornal e não havia mais nenhuma notícia, era tipo guerra em direto, assim uma cena… E como é que isso nos afetou, como é que isso afeta… Hoje estamos a viver esse trauma ainda, não é? Todos os dias estamos a ouvir falar, seja na Palestina, seja na Rússia, seja onde for… E agora, nos Estados Unidos, as eleições americanas, o que está a acontecer em Portugal, todas essas coisas… A ideia da pós-verdade, já não interessa a verdade… Isto é do ponto de vista político, do ponto de vista da polarização e a ideia de que vamos todos assar, não é? Um dia derretemos, a canção diz isso especificamente.

Ao mesmo tempo, também tem um lado que é político, mas é pessoal também, o eixo temporal entre a ideia de estares preso ao passado ou decidires encarar o futuro. É uma encruzilhada que acho que é universal, acho que toda a gente, em certo momento, toma esse tipo de decisões. Ou seja, ou ficas muito preso àquilo que tens ou dás passos em frente e tentas melhorar coisas que não estão bem na tua vida. Isso entra na história d’As Berlengas.

Tu ainda não viste o vinil, não é? Acho que no vinil e no Bandcamp vai estar… No Bandcamp já está. Não sei se no YouTube, na parte das letras, também não está lá escrito. Se leres o livro do disco, existe uma espécie de condução entre músicas que fala sobre isto. Em todos estes temas está presente a ideia de regressar ao passado… Eu sou uma pessoa tendencialmente nostálgica, eu próprio gozo com a minha própria nostalgia, a ideia de estar sempre a reviver o passado. Também há um lado, até mais na forma, mas na música também, que é um bocado da crítica à forma como vivemos hoje em dia, em que tudo é um reels de quinze segundos de Instagram e a nossa atenção… Seja na forma como consumimos música, arte, notícias…

Isto é do ponto de vista político, do ponto de vista da polarização e a ideia de que vamos todos assar, não é?

Ou até como nos relacionamos…
Como nos relacionamos! Tudo. Quis lançar um álbum duplo. É longo demais, eu sei que é longo demais. É suposto ser longo demais e gostava que as pessoas dessem uma oportunidade para ouvir do início ao fim. Não tem que ser na primeira vez. Acho que é um disco engraçado também de ouvir do meio para a frente… Se te fartares da primeira parte, começas só a ouvir do meio, ouvir só secções, mas que exista um momento em que consiga perceber a coisa toda do início ao fim. Há uma música que é o Rochedo (Ilhéu Maldito), que é uma música que está lá quase no fim, tu achas que já vais chegar ao final do disco, que o disco vai acabar, e levas ali com aquilo, que é uma cena mais árida, com uma melodia meio marada, que está sempre a repetir e que vai adicionando mais melodias maradas por cima e aquilo é suposto ser uma confusão mental meio chata para a tua cabeça. E isto é uma piada, não é?

Estou a falar aqui de questões políticas e questões existenciais… e luto! O disco tem luto, há a Constelação Alice, é uma canção de luto. Todas essas dimensões, tudo isso está, ao mesmo tempo, carregado de ironia e humor… Eu acho que é um disco positivo e, no final, a penúltima canção diz Eu não vou na descida, à partida… Em princípio [risos]. Vai tudo ficar fixe. Pá, eu sei que parece que está tudo lixado, e está, mas, à partida, vamos safar-nos, porque o amor é a cena ainda mais importante. Por muito corny e pirosa que esta ideia seja, é cada vez mais importante… Às vezes, uma coisa tão simples como um abraço, um aperto de mão ou falares com alguém, uma aproximação… É essencial – independentemente de discordarmos, termos ideias diferentes – despolarizar um bocado e também ter esperança… Como há um lado, hoje em dia, de o discurso estar tão polarizado, não há um discurso de esperança… O futuro foi cancelado, não há uma perspetiva clara de como vamos olhar para o futuro.

Este álbum tem uma sonoridade muito eletrónica, quase psicadélica. É mesmo para refletir, para fazer essa reflexão que tu fazes do dia de hoje? Foi deliberado?
Ser tão psicadélico? Sim! A ilha é uma fuga, é um espaço mental. As Berlengas só existem na minha cabeça.

São as tuas Berlengas…
São as minhas Berlengas. Por isso é que não é a Berlenga… Se fores falar com alguém de Peniche, eles corrigem logo e dizem a Berlenga. São as Berlengas, é um arquipélago. Para mim, são as ilhas… São habitadas por estas pessoas que somos todos nós. É uma fuga que tem um lado angustiante e, ao mesmo tempo, tem um lado super fixe. Estás na praia… Até surrealista. Estavas a dizer eletrónica e surrealista… Sim, a ideia é mesmo ser surrealista. Quando ouves o som da ilha, nunca ouves o som da ilha como ela é, ouves sempre com noise de um sintetizador, com um delay, com um efeito qualquer. Há sempre uma manipulação qualquer, porque eu não quero nunca que as pessoas confundam aquilo que é a Berlenga com aquilo que são As Berlengas enquanto espaço mental, enquanto espaço imaginário. É engraçado, porque há pessoas que têm uma relação ou que vão passar férias para Peniche ou para o Baleal desde putos… Aliás, uma amiga minha foi feita no parque de campismo… [risos] Receber mensagens de pessoas que estão em Peniche e tiram fotos ou fazem vídeos… Isso é muito engraçado, pois cada um tem a sua Berlenga.

O Futuro Foi Cancelado foi inspirado nos Kraftwerk…
Sim. Quer dizer, inspirei-me num livro sobre os Kraftwerk, que tinha essa frase…

Vai muito ao encontro desta visão um bocado derrotista da realidade, mas, como dizes, terminas com uma visão mais otimista de que as coisas vão afinal correr bem. Onde queres levar-nos com esta viagem às Berlengas? Seja um sítio simbólico, metafórico, utópico?
Quero levar muitos sítios. Sim, quero levar a uma utopia… Utópico é uma boa expressão. Acho que a utopia é uma coisa de que precisamos urgentemente hoje em dia. A própria conceção do disco é utópica. Fazer um disco, hoje em dia, um disco duplo com um filme, só foi possível fazer porque enterrei-me completamente em dívidas a fazer este disco… [risos] Isto é verdade, estou a dizer isto com a maior sinceridade possível. Acho que a arte tem que ser utópica… Comecei por falar nestas questões políticas e existenciais, mas este este disco não é um disco sombrio, não é um disco negro… É uma fuga. A arte não pode ser panfletária e não quero que seja um disco panfletário. É um disco com ideias, mas quero que as pessoas, quando ouçam este disco, se levem para um sítio mais surreal, lá está, daí a sonoridade ser mais surreal, e que, ao mesmo tempo, se deixem contagiar por ideias de amor, por exemplo.

A arte não pode ser panfletária e não quero que seja um disco panfletário. É um disco com ideias, mas quero que as pessoas se levem para um sítio mais surreal

Vontade de mudar as coisas?
Sim! De mudar as coisas, de não estar tão stressado, não estar tão zangado, ou simplesmente viajar… Estava a lembrar-me de uma coisa que aconteceu, não tem nada a ver com este disco, mas com a canção Terra Firme… Alguém que é uma pessoa com uma visão claramente diferente da minha sobre imigração, por exemplo… Quando essa pessoa disse que adorava a canção e a canção era sobre a vida dela e não sei o quê…, eu comentei que a canção é sobre refugiados que vêm em barcos. Estás a ver? Elas querem o mesmo que tu queres, tu identificas-te e, para mim, é importante essa ideia… É a tua Berlenga, tu identificas-te com uma mensagem. Não é um manifesto político. Não existe um manifesto político.

O Futuro Foi Cancelado aparece, no contexto do disco, numa altura em que ele vai ao Furado Grande… Para ir especificamente ao argumento da história do disco, o Furado Grande é um túnel que atravessa uma parte da ilha… Vens de Peniche, chegas à parte do forte – isto tudo em minúsculo – e tens uma gruta que, se atravessares, não é muito grande, vai dar a um sítio que é a Cova do Sonho. E eu imaginei o Furado Grande, no meu disco, como uma viagem ao passado… Chega à ilha, Atrás da Barricada, percebe que está tudo lixado, uns estão dentro do forte, eu estou cá fora, há uma divisão, uma desilusão, um lamento… E, a seguir, a cabeça vai para o passado, ou seja, começas a pensar na tua vida. O que era a minha vida antes de estar na ilha? Antigamente, lá fora, no mundo real? Entras neste túnel e aquilo começa com uns sons que te levam, parece que parece que estás a conduzir dentro de um túnel. Depois a música diz Da bad trip emocional a uma nova ordem temporal, porque eu quero ver mais à frente. Eu estou aqui no passado, mas eu quero descobrir o meu futuro e chegar ao destino. Depois ouves uns sons em reverse, que basicamente são discos que eu tinha de vinil, discos que produzi de outros artistas…

Que é o teu próprio passado…
Que é o meu próprio passado. Sou eu a pôr o meu próprio passado na música outra vez. Aquilo é uma espécie de um cozinhado do meu passado e, quando chega ao presente, percebe que o futuro foi cancelado. Aquela ideia de futuro…

Atravessas o Furado Grande e chegas à Cova do Sonho. É aí que o futuro é cancelado?
O futuro é cancelado logo a seguir. Não, o Futuro Foi Cancelado a seguir ao Furado Grande, e só depois é que vem a Cova do Sonho

Queria perceber o encadeamento…
Às vezes até eu fico confuso, mas sim, é isso… [risos] Ele basicamente quando ele aterra no presente…

Que é o Futuro Foi Cancelado…
Que é o Futuro Foi Cancelado… É no presente que ele percebe que o futuro tinha sido cancelado. Isto acontece num contexto específico da história. É uma canção muito irónica, até. Agora, tanto faz, nem isso interessa. As pessoas levam demasiado a sério determinadas coisas… Eu gosto de pizza de ananás e toda a gente odeia e é um sacrilégio teres ananás na pizza. Isso diverte-me, dá-me mais pica. Se eu vir um italiano, vou logo dizer que adoro pizza com ananás…

Por a falar nisso, partes o esparguete?
Não, não, não, não, não, não…

Eu parto, também irrita muita gente… [risos]
Sim, sim, sim, sim, sim! [risos] Mas é isso! Cada um faz aquilo que quiser. Acho que me desviei da pergunta que fizeste originalmente… Mas isto para dizer que existe uma história muito específica, aquilo não é largar uma bomba sobre o futuro…

Tu guias-nos pelo presente que está todo lixado, como disseste há bocado, percebes que o futuro está cancelado, mas depois temos a Cova do Sonho, que é aquela nota positiva com que queres terminar mais ou menos a mensagem que queres transmitir…
A Cova do Sonho é uma canção que diz Tu sabes bem que eu estou a tentar, tu sabes bem... É o primeiro momento de viragem no disco. Ou seja, o futuro foi cancelado,  que m****, estamos lixados. Depois ainda há o Carreiro da Moxinga, em que anda tudo à pancada… Moxinga quer dizer à pancada. É um momento de tensão na ilha em que existe uma espécie de uma luta. E depois a Cova do Sonho é acordar na Cova do Sonho. Imaginava isso. Estão a escalar uma parede e ele diz Sabes bem que eu estou a tentar, estou a tentar, eles estão a tentar chegar ao topo de uma colina e eles dizem “Vamos trabalhar aqui um bocado em conjunto”…

A história vai evoluindo… Ele vai à Praia!, que é o momento em que, no filme, estão todos na praia a fazer um jogo e a ideia da canção é basicamente estares um bocado encalhado entre o passado e o futuro. Esse momento é que fala mesmo dessa ideia de não saber se estou preso a esta ideia de nostalgia daquilo que era a minha vida e destas pessoas. Eu sei que tenho que me soltar disto para conseguir olhar para o futuro. E isto tem um bocado de conservadorismo também, não é?, se fizer uma leitura política…

A canção a seguir é A Grande Libertação, volta a ideia do passado e do futuro… No disco, isso está muito explícito. A canção diz Volta para trás, volta para trás… Há uma personagem que vem do mar e diz Volta para trás, volta para trás. É o passado a chamar, é quase uma epopeia, não é? É quase as sereias do mar a chamar, a reclamar pelo teu corpo. Volta, volta! Só que a personagem que está na praia não quer, quer libertar-se do passado e olhar para o futuro.

Esta reflexão política que fazes do estado atual sai no mês em que se celebram 50 anos do 25 de Abril…

Não é de propósito. Se calhar, cosmicamente, é de propósito. Faz muito sentido… O meu último disco chamava-se Vias de Extinção e saiu no meio da pandemia, mas já se chamava Vias de Extinção. O meu primeiro álbum, enquanto Walter Benjamin, chamava-se The National Crisis e a seguir tivemos uma crise financeira brutal. Se calhar, sou eu que trago má sorte, mas não pensei lançar em abril, no mês dos 50 anos do 25 de Abril. Eu sou uma pessoa que todos os anos desce a Avenida da Liberdade para celebrar essa data, que é uma das datas mais bonitas da nossa história, se não a mais bonita. Obviamente que para mim faz todo o sentido.

Qual é o teu ponto de vista daquilo que se está a passar hoje em Portugal, política e socialmente?

Olho com preocupação para o que está a acontecer… Acho que a alternância democrática é saudável e importante. Digo isto muitas vezes, e é verdade: o único regime em que as pessoas são todas de esquerda ou são todas de direita é nas ditaduras. Numa democracia, as pessoas são de esquerda, são de direita, são de centro-esquerda, são mais à direita… Acho normal e saudável. A democracia é exactamente o sistema que consegue acomodar todas essas sensibilidades de uma maneira funcional, sem haver violência, e chegarmos a um acordo sobre a maneira como vivemos, enquanto sociedade, que tem muitas sensibilidades diferentes, mais conservadoras, menos conservadoras.

Agora, obviamente que olho com preocupação para o aparecimento de um partido populista, que nem sequer é de extrema-direita… São tipo uns nazis saloios. É a melhor maneira de dizer. Tudo é terrível, esteticamente péssimo. Não há ponta por onde se pegue. Uma pessoa que diz uma coisa num dia, outra coisa noutro e as pessoas votam nele… Não percebo, mas também acho que não me cabe a mim perceber. Eu não sou sectário. A grande virtude da democracia, ao contrário da ditadura, é que tivemos uma ditadura de extrema-direita que não convivia com a esquerda. E tivemos um processo revolucionário que, apesar de turbulento, desembocou num sistema democrático que nunca perseguiu os antigos membros da PID, não houve vinganças… Claro que houve um PREC, claro que houve excessos, foi processo conturbado, é impossível isso não acontecer. Não há nenhuma revolução nem nenhuma mudança de sistema em que alguém não saia prejudicado ou se sinta injustiçado. A própria minha própria família viveu o processo de descolonização de uma forma dura, mas é estares num tempo da história que é o que é. Não é culpa de ninguém.

Obviamente que olho com preocupação para o aparecimento de um partido populista, que nem sequer é de extrema-direita… São tipo uns nazis saloios

Porque sentiste a necessidade de fazer uma versão “anotada” deste disco?
Porque não há nenhum momento no disco em que as pessoas vão ouvir a minha voz e a minha voz não esteja processada de uma maneira. Isto não é um disco normal de canções. A minha voz fala sempre por uma personagem, mesmo que seja eu, na minha consciência, ou uma multiplicação de Deus na minha cabeça. Quero que as pessoas percebam que há diálogos no disco, que há personagens diferentes que dizem cenas diferentes e que há uma história. As pessoas que comprarem o vinil podem vão ter mais umas peças para completar o puzzle…

Que não é só um disco e só um filme…
Sim, não é só uma ideia. Existe uma lógica, não é ao calhas.

Foste dizendo aqui nesta conversa que a ida às Berlengas foi uma forma de escapismo…
Sim, o disco foi uma forma de escapismo!

Foi só deste panorama político, social… Ou houve alguma coisa na tua vida de que também quiseste fugir?
Na altura em que comecei, sim, mas não quando acabei. Tive várias abordagens em relação ao disco ao longo dos anos, não é? Hoje sou uma pessoa completamente diferente e a minha vida é completamente diferente do que o que era quando comecei a fazer disco. Quando comecei a fazer disco, estava solteiro. Aconteceram uma série de coisas, não só na minha vida, mas na vida de pessoas à minha volta, porque algumas delas foram um bocado difíceis de processar e isto foi um bocado a minha maneira de processar a coisa. Não é só político, de todo, tem um lado pessoal fortíssimo. Houve uma espécie de salto… Quando digo escapismo, quero que as pessoas viajem e que sintam a fuga. Não é um disco moralista, de todo. Não pretendo ser moralista. Não pretendo que as pessoas vão lá ouvir uma mensagem… Não quero doutrinar ninguém em política, não é nada disso. Acho que a arte tem de ter essa função de fuga, mas, ao mesmo tempo, tem de dar-te algo para pensar. Há um lado filosófico, vá lá, no disco, mas há um lado de pessoal, emocional. Se não houvesse, não fazia sentido. Não fazia sentido fazer só um disco político, tem de haver um lado emocional. E esse lado emocional para mim é o mais importante.

A arte tem de ter essa função de fuga, mas, ao mesmo tempo, tem de dar-te algo para pensar. Há um lado filosófico, vá lá, no disco, mas há um lado de pessoal, emocional. Se não houvesse, não fazia sentido

Conseguiste encontrar o que procuravas?
Sim, foi acabar o disco… [risos] Nada da minha vida foi resolvido através de uma canção ou uma música deste disco. Só quis desabafar ou falar sobre determinada coisa. É a minha maneira de falar sobre determinada coisa, dar uma opinião sobre alguma coisa ou apenas refletir… Tal como há bocado falei na Constelação Alice, deixar uma marca. Fiz uma constelação para alguém que, para mim, vai existir sempre. Essa constelação vai sempre existir e podes vê-la a partir das Berlengas. Se fores às Berlengas, vais ver a constelação Alice. Fazer isso foi importante para mim. Mas, do ponto de vista prático, resolvi a minha vida na minha vida. Eu não confundo aquilo que é a minha música com a minha vida real, apesar de elas estarem muito ligadas. Mas não são a mesma coisa.

Lançaste os primeiros singles na primeira sexta-feira de fevereiro e março e o álbum sai na primeira sexta-feira de abril. Algum fascínio pela primeira sexta-feira dos meses?
Não! Achámos que era coerente ser mês a mês e o primeiro single só não foi na primeira sexta de janeiro por causa de um compromisso que tínhamos na editora de lançar single da Beatriz Pessoa. Não foi um acaso, foi pensado, mas porque dava o espaço de um mês entre cada música.

Como disseste, é um disco muito longo. É um disco duplo, tem vinte canções, mas era suposto ter 26 ou 27, como disseste no início. Tiraste essas seis ou sete canções? Incorporaste-as noutras? Misturaste-as?
Se calhar alguns bocados foram parar a secções de músicas, outros até tive pena de tirar, mas eu próprio queria que o disco fosse demasiado longo, mas eu próprio não podia ficar aborrecido com o disco. Quando chega, chega. Sei que a minha tolerância é maior do que para 99,9% das pessoas que vão ouvir o disco. A minha tolerância muito maior porque fui eu que fiz o disco, mas até até eu tenho um limite… [risos]

Estás satisfeito com o trabalho final?
Estou. Estou. Estou muito satisfeito. Vou estar mais satisfeito ainda quando estivermos a tocar esta ao vivo.