Licenciado e professor de Direito, José Miguel Júdice foi sócio fundador da sociedade de advogados PLMJ e bastonário da Ordem dos Advogados. Foi membro do Movimento Federalista e do Partido do Progresso, logo após o 25 de Abril, e chegou a estar preso em Caxias, tendo depois seguido Francisco Sá Carneiro no PSD. Reformado da advocacia e mantendo apenas participação na arbitragem, desfiliou-se do partido em 2006, com Marques Mendes na liderança, e considera-se um “eletrão livre”, usando essa liberdade no seu espaço semanal de comentário da atualidade, nomeadamente política.

Nesta semana tivemos o primeiro teste a este governo minoritário da AD… e não correu bem. Como viu este episódio da eleição do presidente da Assembleia?
Pode ver-se de duas maneiras. Uma é dizer que o ensaio geral foi mau, por isso a peça de teatro vai ser boa. A outra teoria, menos agradável, é que se prepararam mal para uma situação a que não estão habituados. O PSD e o CDS falharam, mas a responsabilidade desta crise foi de André Ventura, por razões que se entendem bem.

Luís Montenegro e Nuno Melo falharam como?
Primeiro, falharam no que eu chamo teoria da comunicação política. Perderam o controlo da comunicação. Depois, porque se deixaram enredar numa discussão semântica sobre se o que tinham feito com o líder parlamentar do Chega (CH) e aliás também com os dos restantes partidos para a escolha da mesa, era ou não um acordo. É claro que era um acordo, mas nada que ver com os acordos que PSD e CDS entenderam que não fariam com o CH.

O acordo para a mesa da Assembleia não se viraria contra a AD na lógica do “não é não”?
Eu acho é que deviam ter sido claros. Quando Ventura veio dizer que havia um acordo, deviam ter tomado de imediato a liderança da comunicação, confirmando que tinham feito acordo com o líder parlamentar do CH como com os do PS, da IL, nos termos dos quais iriam votar uma proposta de vice-presidentes que eles indicassem, esperando que votem o candidato a presidente Aguiar-Branco. Ao ficarem calados, permitiram que se consolidasse o discurso de André Ventura e perderam controlo da situação porque vários membros da AD disseram várias coisas dando a sensação de que ninguém falou com ninguém. Aparentemente, não há um guião para a comunicação e um Parlamento como este vai exigir que não se cometam erros.

Acha que tiveram medo por vários partidos à esquerda virem dizer que aquilo era o princípio do fim do “não é não”?
Mas quem tem medo compra um cão, não comete erros. Visto de fora, houve um erro verdadeiramente forte de comunicação política.

Vai ser isto o mandato inteiro?
O ponto é este: isto pode ser importante na medida em que o que isto exprime é que Ventura, confrontado com uma encruzilhada que era atuar como poder revolucionário ou apenas disruptivo – quem quer mudar as regras, ganhar poder, ser mais importante, é disruptor, tenta mover as águas paradas; quem quer destruir as regras do jogo é revolucionário –, escolhe a primeira via. Se tivesse optado pela via disruptiva, faria uma declaração dizendo que a coisa tinha começado mal, que estavam a negar algo que fora feito, mas diria também que era tempo de avançar porque o sistema político não podia estar refém destas coisas. Ao transformar um pequeno incidente num grande assunto capaz de bloquear o funcionamento do sistema parlamentar, está a dizer que as regras do jogo não são para respeitar. Isso é característico de um sistema revolucionário e foi estudado a nível internacional: quando Napoleão foi feito imperador, ele não aceitou o sistema monárquico da Europa, com todos os seus checks and balances, quis subvertê-los. Quando Lenine implantou o sistema soviético na Rússia, não aceitou a ordem internacional. São poderes revolucionários. A nível interno também acontece e é preciso ter muito cuidado quando se negoceia com um poder revolucionário, porque, não aceitando ele as regras do jogo, estará sempre apenas a tentar uma pequena vantagem; e quando lhe convier dá cabo das regras. Veja o que fez Hitler: a certa altura houve um acordo em Munique, em 1938, em que as potências democráticas, para evitar a guerra, aceitaram a exigência de uma parte da Checoslováquia maioritariamente habitada por alemães voltar ao domínio da Alemanha. E pensaram que ficava por ali: quando o primeiro-ministro (PM) inglês Chamberlain chegou a Londres, foi recebido por multidões ululantes porque os tinha salvo. Churchill disse outra coisa; disse: tinhas de optar entre a guerra ou a desonra, optaste pela desonra e terás a guerra. E foi, passado seis meses, com um pretexto qualquer, Hitler ocupou o resto da Checoslováquia e depois invadiu a Polónia… Qualquer negociação com um revolucionário não é para levar a sério porque só durará enquanto tiver interesse.

Então isto pode ser um incidente de medição de forças, mas a AD não pode confiar no CH?
Exato. A confiança quebrou-se. Quando há um poder revolucionário é preciso haver sempre alguns canais de comunicação. Com a China, era o embaixador dos EUA na Polónia quem falava com o embaixador da China. Se quebrar a confiança e os canais de comunicação e o PSD chegar à convicção de que não é possível uma evolução com o CH, vai levar muito provavelmente a eleições daqui a seis meses. Eu digo que isto não é inevitável porque pode ser uma medição de forças, como diz. Portanto, André Ventura, que é um especialista em flipflop – devia ir para a companhia Nacional de Ballet – e é um homem muito inteligente, portanto pode dizer tudo e o seu contrário e ser sempre convincente, pode agora caminhar na função disruptiva. Deu um sinal: cuidado comigo, vejam do que sou capaz, mas então entrar na tal via disruptiva. E nesse caso, durante um ou dois anos, PSD e CDS devem observá-lo. Haverá pequenos acordos pontuais, podem coincidir em soluções, mas tem de haver um incentivo final, dar ao CH a ideia de que se mudar as coisas mudam; e incentivos negativos, de que se não mudar as coisas pioram.

Uma relação pavloviana.
Pode acontecer. A questão é que é uma situação inédita na política portuguesa, porque quando o PCP desempenhava a função que o CH tem agora, o PS fazia alguns contactos com o PCP, designadamente a nível sindical. Estou convencido até que, quando o PS fez acordo com o CDS – o que foi um escândalo, porque na altura o CDS era considerado de extrema-direita –, esse governo PS com independentes do CDS coincidiu com todos os domingos à noite haver comícios de Álvaro Cunhal transmitidos na televisão. Quando o acordo acabou, essas transmissões também acabaram e eu penso que o que houve foi um acordo com o Cunhal de ter essa publicidade em troca do acordo com o CDS. A política faz-se também destas coisas – mas nunca se fez muito mais do que isso porque nessa altura o PCP era infrequentável pelos partidos democráticos. O CH está nessa situação. Mas houve uma altura em que o PCP foi pelo caminho disruptivo, deixou de defender as posições revolucionárias, e passado alguns anos teve a primeira solução, que foi um acordo de governo para a câmara de Lisboa, feito por Jorge Sampaio. E até antes disso João Soares, que nunca foi comunista, tinha defendido a integração do PCP no sistema. Portanto, o CH pode vir a integrar-se no sistema mas tem de evoluir – e não necessariamente nas suas ideologias. Se vir o que o PCP pensa, é evidente que não abdica de ser um partido revolucionário, mas não exerce a sua ação política dessa forma, é um partido meramente disruptivo, integrou-se no sistema político. É isso que o CH ainda não fez.

Mas não há aqui também alguma responsabilidade do PS, na medida em que o CH está a tentar afirmar-se e ainda a seguir essa via mais revolucionária, mas o PS também não prescindiu da afirmação da sua política a bem da eleição do presidente da AR…?
Sim, podia tê-lo feito, mas o mundo é feito de dois tipos de pessoas: as que têm ilusões e as que não as têm; e o jogo político é assim, portanto não me desilude que o PS tenha atuado como atuou. Cavaco Silva fez algo que eu criticava mas que era politicamente inteligente, que foi falar muito pouco com o PS e com o PCP mas imenso com a CGTP. Isto é, era simultaneamente o sinal de que era capaz de falar para o lado deles, mas sem lhes dar a menor ponta de importância. Isto provocava reações dos partidos, mas Cavaco Silva fazia-o enquanto ato político e quem tivesse ilusões de que ele iria tentar fortalecer o PS em relação ao PCP ficou desiludido. Mas a Cavaco nunca interessou fortalecer o PS em relação ao PCP – eu, que era comentador e do PSD nessa altura, estava, mas essa não era a opinião dele e do partido.

Que perfil de pessoas devia ter este novo governo?
Em primeiro lugar, um governo de pessoas com grande experiência política – e é difícil porque o PSD está fora do governo há muitos anos e os partidos têm uma característica péssima de mudar o pessoal político dirigente cada vez que muda o líder. Depois, uma enorme coesão: devia haver um diretor de comunicação (o CH tem isso) que dissesse o que eles podem e não podem dizer e que controlasse o que eles dizem – pode até ser um ministro, mas alguém que define a expressão externa do discurso. Também é essencial que seja um governo muito organizado, de pessoas com egos controláveis, que não se sobreponham à disciplina do governo. E deve ter em cada um dos seus membros uma luva de pelica com mão de ferro dentro – e não o contrário. Deve também ser capaz de saber o que quer mas estar permanentemente a negociar – que é difícil porque é o inverso do que é a política portuguesa, que se habituou a negociar muito pouco e estar permanentemente a fazer afirmações perentórias. Deve colocar permanentemente todos os partidos à direita e à esquerda perante o dilema: porque é que eu não apoio esta medida, em vez de dizerem como é que eu poderia apoiar isto. Portanto, é estratégia de comunicação, mas também estratégia política.

Fazendo a inversão do ónus.
Exatamente. E para isso tem de apostar em fazer propostas que não sejam tão disruptivas que deem grandes pretextos para as oposições votem contra, mas que sejam propostas que à direita e à esquerda, ou em certos casos à direita e à esquerda, seja difícil não serem aprovadas. Claro que esta estratégia é boa se for apostar numa continuidade governamental e adiar para após as presidenciais a crise política hipotética (primavera de 2026) e uma nova eleição. Se a crise for daqui a seis meses, talvez seja melhor fazer propostas que tenham que ver com aquilo que o PSD se propôs, muito firmes, que sejam derrotadas para se poder vitimizar. A dificuldade maior é que o grande especialista em vitimização já está neste mercado há quatro anos e chama-se André Ventura. Ele tem habilidade para, mesmo que lhe deem 100% do que pediu, ir chorar para as televisões dizer que está a ser mal tratado. É um calimero. Mas algumas propostas que a AD quer, e que são duras, podem ser também dificilmente recusáveis ou pelo CH ou pelo PS. Portanto, essa geometria variável é uma arte. A política não é uma ciência, sobrevive apenas se for artística, e o governo tem de ser científico na sua estratégia mas exercer com arte a sua função.

E com tudo isso, acredita que o OE2025 será aprovado?
Eu acredito em muito poucas coisas. Acredito em Deus e muitas vezes Ele desiludiu-me… Eu acho que Montenegro vai falhar muitas vezes, acho que ele esteve muito bem na campanha, com uma estratégia muito boa.

E geriu bem o silêncio?
Geriu com muita argúcia. Mas o que não fez bem foi que devia ter intervindo mais depressa no dia da eleição para a AR, foi um erro que podia ser evitado. E eu tenho muito respeito pela competência de Joaquim Miranda Sarmento, mas não devia ter sido ele a negociar estas coisas, porque tem pouca experiência política e a que tem é a de líder parlamentar em oposição a uma maioria absoluta – portanto, aprendeu a combater, não a fazer outras coisas; por outro lado ele não tem a argúcia de Hugo Soares. Eu teria posto logo Hugo Soares a tratar desta intendência, a falar com os grupos parlamentares; foi um erro não o ter feito e não ter corrigido foi outro. Um problema de falarmos muito é já não sabermos estar calados; o de nos habituarmos ao silêncio é que a certa altura temos nele imenso prazer e dificuldade em começar a falar.

Ter levado Cavaco Silva ao congresso pode revelar uma vontade de Montenegro reeditar o percurso dele e do seu governo?
Sem dúvida. Eu não conheço bem Montenegro – almoçámos duas vezes e se trocámos dez mensagens é muito –, o que sei é que definiu uma boa estratégia ao colocar Cavaco Silva no centro da sua referência política nesta altura, primeiro porque Cavaco Silva estava disponível para isso, depois porque é o maior caso de sucesso do PSD a nível de governo, terceiro porque ele foi capaz de partir de uma minoria para uma maioria, quarto, porque fez um governo claramente situado ao centro. Claro que Cavaco Silva tinha uma vantagem que Montenegro não tem: ele chegava à extrema-direita que nem sequer vota CH – não se esqueça que na maioria absoluta o CDS ficou reduzido a 4%, ele ocupou todo o espaço político.

E Montenegro se está ao centro não alcança o CH.
Exato, não tem alternativa. Ele faz a política do Cavaco, mas tem uma ala direita na oposição que Cavaco não tinha porque o CDS estava a lamber as feridas e não tinha como o contrariar. Mas foi uma boa estratégia de Montenegro: não diz que os outros líderes não sejam bons, mas Cavaco é o que lhe interessa mais.

E a estratégia de governação deve passar por abrir mais os cordões à bolsa e negociar já medidas com efeitos imediatos – polícias, professores, SNS – ou manter-se cauteloso, podendo essa contenção nas contas empenhar o futuro político?
Diz-se que as cadelas apressadas têm filhos cegos… Há preços que se pagam quando não se toma decisões adiando-as. Veja António Costa e Medina, que estavam firmemente convencidos que o governo durava até 2026 e por isso fizeram o que qualquer político faz: austeridade longe das eleições, mãos largas quando elas se aproximam. Nas câmaras as obras começam sempre um ano antes das autárquicas, para inaugurar antes de ir a votos! Neste momento, ele não pode pensar em fazer daqui a quatro anos, nem deve, porque as pessoas estão ansiosas e ele prometeu-o. Por isso, deve fazer um juízo – e Miranda Sarmento fá-lo bem – de onde estão os limites da capacidade financeira do Estado e usá-la para cumprir as promessas que anunciou sem as adiar. E nisso terá apoios à direita e à esquerda. Além disso, deve fazer algumas propostas que têm que ver com o seu eleitorado que possam ser asseguradas, como a redução de impostos. Deve pôr a funcionar uma reforma do Estado – e aparentemente tem uma boa ajuda do governo socialista, que anunciou há dias um estudo de reformulação que permitirá poupar (6 milhões) pondo o Estado a funcionar como se fosse uma holding (o que eu defendo há 40 anos). Ou seja, ele tem de mostrar que está preocupado com os problemas dos portugueses – a solução de emergência a 60 dias para a saúde, por exemplo –, que é muito eficaz e competente, que se pode confiar nele, e ao mesmo tempo tem um problema: ter de governar sem saber se seguirá uma estratégia para uma crise a dois anos ou a seis meses. Tem de ter as duas ao lume e usar conforme seja possível. É muito difícil e provavelmente no fim disto pode ir para um circo como um daqueles equilibristas que fazem o pino sobre um só dedo.

E não corremos o risco de cair de novo em problemas, dado que muito disto é despesa permanente?
Corremos. É por isso que digo que o que aí vem, na Europa, na Ucrânia vai contar… quando os ricos fazem poupanças, quem sofre são os pobres. E quando Alemanha e França vão entrar em situações de cautela com o défice – para não falar em Itália – Portugal tem a vida complicada. E Joaquim Miranda Sarmento deve fazer essa análise. Mas devem aprender com António Costa a correr riscos. Qualquer político cauteloso vê o abismo – o défice, a dívida… – a 20 metros e constrói os edifícios a 10 metros, se não pode bastar uma pequena tontura para cair. Mas Costa não fez isso, ele construiu à beira do abismo, acreditando que ia correr bem. O que é preciso aqui é um compromisso entre Miranda Sarmento, que vai sempre querer construir a 20m do abismo (será o seu papel, sendo ministro das Finanças) e Montenegro, que tem esse peso político, tem de dizer: vamos arriscar um bocado. Porque não arriscar é inevitavelmente perder. Os eleitores não percebem estas subtilezas de ser a 20m ou 10m e sendo um governo minoritário é inevitável que seja menos rigoroso em contas públicas. Claro que há limites… mas Portugal está numa boa posição nessa matéria – défice e dívida estão muito bem, as previsões de receita, o turismo está bem, o PRR vai trazer resultados – e estou convencido de que pode arriscar mais do que França ou Alemanha.

Mas além dos números há o contexto político internacional, há eleições europeias que podem alterar profundamente o Parlamento Europeu…
É verdade, mas imagine que Costa tinha feito uma reserva de uns milhares de milhões para o caso de vir aí uma pandemia… tinha sido um disparate, porque quando ela veio foi tão grave que toda a Europa foi apoiada, os que se portaram bem e mal. Montenegro tem de arriscar. Não pode ser como Fernando Nogueira, que quando foi candidato a PM mandava o programa para Cavaco, que lho devolvia com alertas de cautela por causa da entrada na moeda única. E eu disse-lhe: tu é que és o líder, porque é que fazes isso? Um líder, para ganhar, tem de arriscar. E às vezes espalha-se, é verdade, mas é a vida. Tem de chegar ao limite máximo do risco mínimo – e isso é uma arte política.

E se Montenegro, mesmo arriscando, falhar, Pedro Passos Coelho continua a ser uma possibilidade no PSD?
Pedro Passos Coelho é uma pessoa muito prestigiada em certos sectores do PSD, é uma figura importante, teve resultados e quando as coisas pioram as pessoas dão-lhe mais valor. Mas acho que se Montenegro falhar agora, a seguir vem o PS. Não tenho dúvidas, se houver eleições daqui a seis meses, é muito difícil que o CH se esbata e o PSD possa subir muito, e é muito provável que o PS possa fazer as tais promessas irrealizadas de que todos gostamos. Quando isto começou, os feiticeiros eram os chefes do mundo porque faziam chover, isso é que era importante, e quando não faziam chover cortavam-lhes a cabeça e iam buscar outro. Hoje, entre alguém que diga “eu só te vou dar miséria” e outro que diz “vou dar-te coisas maravilhosas”, mesmo que achemos que o primeiro tem razão votamos no segundo. A política é isto. E o PS vai prometer mundos e fundos – Pedro Nuno Santos não terá a menor dificuldade em fazê-lo. Portanto, se o PSD cair em seis meses é improvável que volte a ganhar.

Vamos falar de justiça. Tivemos nos últimos meses um governo de maioria absoluta a cair, um governo regional a cair, as câmaras municipais quase todas investigadas… é a justiça a funcionar ou vê algum indício de interferência entre poderes político e judicial?
Já lhe aconteceu certamente ter um aparelho a funcionar e de repente perder o controlo e não conseguir pará-lo. Funcionar em si mesmo não tem utilidade nenhuma. A justiça está a funcionar, mas está a funcionar mal e não é há dois anos. Eu quando me candidatei a bastonário o tema principal era realizar um congresso da justiça. E fizemo-lo, apesar de muitos não quererem, porque era preciso dar uma volta completa à organização do sistema judicial. Algumas dessas reformas foram feitas, foi feito um caderno de encargos assinado por unanimidade por todas as profissões jurídicas. Hoje, o sistema está a funcionar pessimamente, não tira partido das suas potencialidades e sobretudo está sem coerência, pode correr bem ou mal. Eu acho que a justiça é uma prioridade, mas nenhum partido quer meter-se nisso.

Não devia haver um pacto para a justiça?
Eu acho que sim, mas o problema é que a justiça é a última das 50 prioridades dos portugueses e a primeira de juízes, procuradores, etc. Só um partido louco é que se mete a mexer num vespeiro sem ter nada a ganhar porque os 10 milhões de portugueses não ligam nenhuma àquilo – e com tudo a perder, porque os profissionais da justiça não querem que se mexa em nada. Por isso deixam andar. É mau, era preciso grandes reformas, mas só com vontade política se farão.

Mas se só um louco se meterá nisso…
Mas há loucos felizes. Quando convidaram Churchill para PM, por pressão dos outros partidos que fizeram disso condição para formar um governo de unidade nacional, a maioria das pessoas achava que ele era um louco. O país estava com Chamberlain e Churchill era um louco, mas a seguir ganhou a guerra. Toda a gente dizia que o Sá Carneiro era um louco mas ele depois ganhou as eleições.

Pode Ventura forçar essa reforma?
Não, porque a justiça é um dos fonds de commerce do seu negócio. Para Ventura, tudo é corrupção e se assim não for ele não tem tanto negócio para vender. Ventura não está preparado para fazer parte do reformismo. A luta política deve existir entre os partidos moderados, que divergem em muito mas concordam em questões essenciais – não só a política externa, em muita coisa. O meu programa na Ordem dos Advogados foi apoiado por uma direção onde havia pessoas próximas do BE e outras do Partido Independentista dos Açores – mas estávamos de acordo naquilo que íamos propor. Isto dá trabalho, era preciso haver no governo de Montenegro um reformista-mor, que não tivesse de se preocupar com a gestão governamental e se dedicasse a pensar as reformas, que fosse um grande negociador, que estivesse permanentemente a estabelecer pontes. Esse tipo de políticos faz-nos falta – nós estamos só habituados à política confrontacional, mas é preciso quem pense no que se faz a seguir, a mais longo prazo, em consensos possíveis.

Mas concorda com a queixa de Lucília Gago de que houve interferência política na justiça?
Começo por dizer que me é praticamente impossível concordar com qualquer coisa que a PGR diga. O que ela diz não faz sentido nenhum, é uma pessoa que raia a brutalidade e a incompetência para a função para a qual foi nomeada. A culpa não é dela, é de quem a nomeou – um consenso entre o PR e o PM. Agora, interferência sempre houve e tem de haver. Quem é que define as prioridades da política criminal? A AR. Quem define as leis que vão regular o funcionamento das instituições da justiça, os procedimentos judiciais, definir os crimes e a sua medida e encontrar soluções para as empresas se relacionarem por contratos? É a política. Portanto, a minha queixa não é que há intervenção política na justiça, mas que ela não exista. Não há coragem ou vontade de intervir na justiça como tem de se fazer. Outra coisa é intervir para condicionar, mas deem-me provas disso. É claro que isso não pode acontecer, mas com ninguém. Não pode haver tentativa de condicionamento da justiça pela política, nem pelos sindicatos, pelos jornalistas, pelos padres, pelas empresas, pelos operários… Na justiça, ninguém pode intervir. E acho que há muito mais interferência dos media na justiça do que dos partidos – e é censurável.

Os media condicionam mais?
Claro! Se um juiz está preocupado com o que vem sobre ele nos jornais em função da sua decisão… há heróis que não se ralam ou até gostam que digam mal deles, mas a maioria deles são pessoas sensatas, com família, e não gostam de ser arrastados pela lama por terem tomado uma decisão que a media dominante acha que não foi a correta. Isto é uma pressão sobre a justiça. Mas os juízes também são pessoas com capacidade para criar uma carapaça que os defende de interferência externa, geralmente são independentes, respeitáveis, honestos, portanto sobrevivem a isso, mas não é bom. Não é possível garantir que nenhum juiz será abordado com um milhão de euros para decidir em favor de alguém, é preciso é que o juiz não ceda. A melhor forma de acabar com a corrupção não é visar o corruptor, é evitar que as pessoas se deixem corromper – um homem sério não fraqueja perante um corruptor. A única solução para isso é criar uma Administração Pública que seja totalmente imune à corrupção. Isso tem que ver com ganhar mais mas sobretudo com uma cultura de responsabilidade e de ética, com a valorização dos que são sérios e isso pode e deve ser feito. A luta contra a corrupção não se faz nos tribunais, faz-se na Administração Pública diariamente. Se todas as pessoas fossem tão incorruptíveis como os juízes, não havia corrupção.

Que perfil deve ter o próximo PGR?
Deve ser alguém que conheça bem o funcionamento do sistema judicial, nos seus defeitos e qualidades, que tenha experiência de vida, coragem para tomar decisões que não sejam populares.

E deve comunicar ou optar pelo silêncio, como a atual?
Eu não sei se esta opta por alguma coisa… a comunicação claro que faz parte do nosso tempo, é precisa e bem feita e sobretudo com transparência. O MP farta-se de comunicar mas fá-lo muitas vezes com pouca transparência. Portanto, deve ser alguém independente do MP mas que não seja contra ele. Eu fazia críticas aos procuradores e em determinada altura vieram dizer-me que me apoiariam se fosse eu o indicado, porque sendo alguém de fora viam-me como alguém capaz de assumir a missão (e eu recusei logo a mera ideia, porque aquilo não fazia sequer parte do meu projeto de vida). Muitas pessoas que me apoiaram na candidatura a bastonário tinham estado contra mim no tempo das crises académicas – eu era contra as greves de exames, mas consideravam-me porque viram em mim coragem, logo seria capaz de lutar por eles com coragem. A escolha de um dirigente muitas vezes tem que ver com coisas destas. Ou seja, o PGR deve ser alguém capaz de dizer não ao Estado, ao sindicato do MP, aos media, de definir prioridades, de organizar e de pensar fora da caixa.

E a justiça tem interferido na política?
É inevitável que assim seja. E mal seria que não interferisse, porque uma atividade com indícios de criminalidade não ser investigada por ter sido feita por alguém com funções públicas seria a negação de tudo em que acredito. O problema é outro: como não há hierarquia a funcionar no MP, qualquer procurador atua como se fosse um advogado – um advogado é livre (tem de defender apenas o cliente), o juiz é independente (tem de decidir com total independência), o MP é autónomo, mas cada procurador não é autónomo. E grande parte das coisas que correm mal é porque um procurador acordou para ali virado e como há medo – se não se manda buscar o senhor naquele dia e depois não for apanhado, os jornais vão dizer que a culpa é dele –, age. O chefe, com medo de ser criticado, aceita. E não há controlo, não há coordenação, não há hierarquia. Aquela frase da PGR foi um erro. Não era necessário desembarcar na Madeira em plena campanha eleitoral como se fosse o desembarque na Normandia… podiam ter feito há dois anos ou esperar um mês. É nisso que acho que a justiça não pensa bem, porque o procurador tem aquilo e quer lá saber do resto. Faz como um advogado o que acha que tem de ser feito.

Artigo publicado na edição do NOVO de sexta-feira, dia 29 de março