O que é o manifesto “Por uma reforma na Justiça” e o que o desencadeou?

Numa rara iniciativa da sociedade civil, 50 personalidades subscreveram a 1 de maio, a propósito dos 50 anos da democracia, um manifesto “Por uma Reforma na Justiça — Em defesa do Estado de Direito Democrático”, em que culpam o Ministério Público pela “queda de duas maiorias parlamentares”, o acusam de “uma indevida interferência no poder político” e fazem um apelo ao governo, ao parlamento, ao Presidente da República e aos partidos políticos para que seja feita com urgência uma reforma no sector. Embora deem explicações mais genéricas sobre a defesa de um “sobressalto cívico” que introduza alterações na justiça e ponha fim à “inércia” dos agentes políticos, é inegável que a iniciativa ocorreu agora na sequência das várias polémicas recentes com o Ministério Público, sobretudo as que decorreram do processo da Madeira e da Operação Influencer.

No documento, aliás, essas referências não são esquecidas. Os subscritores criticam o partidarismo com que alguns processos têm sido vistos e comentados, centrando-se especificamente nesses dois processos: “Nesta matéria, tem prevalecido a busca do pequeno ganho partidário imediato em detrimento do interesse público, variando as posições em função da filiação partidária dos atingidos, como revelam as posições partidárias contraditórias assumidas nos referidos casos que afetaram os governos da República e da Região Autónoma da Madeira.” E atiram farpas à PGR pela condução da Operação Influencer: “A prolongada passividade perante esta iníqua realidade permitiu que tivéssemos atingido o penoso limite de ver a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os Tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador. A agravar a situação, o País continuou a assistir ao inconcebível, quando, tendo decorrido longos cinco meses entre o Primeiro Ministro se ter demitido, na sequência do comunicado da PGR, e a sua cessação de funções, o Ministério Público nem sequer se dignou informá-lo sobre o objeto do inquérito nem o convocou para qualquer diligência processual. Além de consubstanciarem uma indevida interferência no poder político, estes episódios também não são conformes às exigências do Estado de Direito Democrático.”

Foi a primeira vez que estas 50 figuras criticaram a justiça devido aos inquéritos-crime mais recentes e polémicos?

Antes deste manifesto, já várias personalidades que o subscrevem se tinham manifestado contra o Ministério Público pelo tratamento dado a António Costa nesse processo. Várias figuras já tinham criticado o MP pela demora na inquirição de Costa ou pela inclusão de um parágrafo no comunicado da Procuradoria-Geral da República no dia das buscas e detenções — que levou António Costa a apresentar a demissão e, consequentemente, levou o país a eleições. Augusto Santos Silva, socialista, ex-presidente da Assembleia da República, e um dos subscritores do manifesto, ainda em abril escreveu umas linhas na sua página do Facebook a atacar a atuação da justiça nesse processo, nomeadamente por António Costa ainda não ter sido ouvido cinco meses depois de a PGR ter informado que corria um processo contra o agora ex-primeiro-ministro no Supremo Tribunal de Justiça.

“Desde então, nada mais se sabe, tendo-se limitado a PGR a publicar outra nota sobre a distribuição de processos por equipas de magistrados. O Parlamento foi dissolvido, realizaram-se eleições e nada as autoridades competentes se dignaram esclarecer sobre a iniciativa que esteve na origem de todos esses desenvolvimentos (..). Para mim, é uma violação grosseira de princípios básicos do Estado de direito, incluindo o desrespeito pela separação de poderes, o desprezo pelo direito dos cidadãos à informação essencial para as suas escolhas cívicas e uma ofensa aos direitos fundamentais de qualquer pessoa, seja qual for a sua condição privada ou pública”, criticou o ex-presidente da AR.

Também Rui Rio, ex-presidente do PSD e subscritor do manifesto, já tinha usado as suas redes para criticar a procuradora-geral da República, Lucília Gago, no dia em que o Tribunal da Relação deitou por terra a tese da investigação e baixou as medidas de coação de alguns dos arguidos: “Um Tribunal superior a humilhar um Ministério Público, que, ao funcionar assim, envergonha o País e agride a democracia e a separação de poderes. Continuará o PR a não se arrepender de não ter querido a reforma da justiça e de orientar as suas decisões pela PGR que temos?”, dizia Rui Rio.

O que criticam os subscritores do movimento?

Além de criticarem a atuação do Ministério Público nesses dois processos concretos, as 50 figuras atiram farpas “à proliferação de escutas telefónicas prolongadas”, “buscas domiciliárias injustificadas”, “detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade”; criticam aquilo a que chamam “perturbante realidade”, com “as recorrentes quebras do segredo de justiça” e “a participação ativa de grande parte da comunicação social” que dão azo a julgamentos populares, boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais elementares direitos de muitos cidadãos, penalizando-os cruelmente para o resto das suas vidas, mesmo quando acabam judicialmente inocentados”; criticam a forma de funcionamento do próprio MP, a sua falta de escrutínio e “perfil corporativo”: “na prática, um poder sem controlo, quer externa, quer internamente, desde logo, pela assumida desresponsabilização da Procuradora-Geral da República pelas investigações”.

Lembram ainda que, “ao contrário de todos os demais poderes constitucionais, a Justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente administrada em nome do Povo”.

As 50 figuras não poupam ainda críticas ao que chamam “já habitual espetáculo mediático, nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso”. São essas circunstâncias, dizem, que “têm confundido intencionalmente a árvore com a floresta, formatando a opinião pública para a ideia de que todos os titulares de cargos públicos são iguais e que todos são corruptos até prova em contrário. Esta forma perversa de atuar, com contornos mais políticos do que judiciários, tem produzido um óbvio desgaste no regime e, por consequência, reforça o descontentamento popular e abre as portas ao populismo e à demagogia, tanto mais que muitos processos se eternizam sem conclusão ou acabam sem acusação ou sem condenação judicial”.

O que pedem exatamente os subscritores?

Os 50 dizem que compete à sociedade portuguesa “um sobressalto cívico que leve os responsáveis políticos a assumirem as suas responsabilidades” e a elegerem a reforma da justiça como uma prioridade. Por essa razão, instam o PR, a AR, o governo e os partidos “a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de uma reforma no setor da Justiça, que, respeitando integralmente a
independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial, seja inequivocamente direcionada para a resolução dos estrangulamentos e das disfunções que há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública”. Alegam ainda que essa reforma tem de ser feita sem interesses corporativos dos diversos operadores do sistema.

Que mudanças querem nas magistraturas e na investigação criminal?

O manifesto diz querer “reconduzir o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o/a procurador/a-geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho
profissional das equipas”, e “implementar mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente através de relatórios periódicos a apresentar à Assembleia da República pelos órgãos de governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões parlamentares competentes”.

Além disso, quer “instituir e fazer aplicar exigências de ponderação, rigor, proporcionalidade e concreta fundamentação, quer na abertura da investigação penal, quer no uso dos meios de investigação especialmente intrusivos como as escutas e as buscas domiciliárias, bem como na sua revisão periódica, fazendo prevalecer desde o início o princípio constitucional da presunção de inocência”; “fazer cumprir efetivamente o segredo de justiça, constitucionalmente protegido, aplicando a lei penal e as normas disciplinares contra a sua violação” e “reduzir drasticamente a morosidade dos processos judiciais, cumprindo o requisito da decisão “em prazo razoável”, nos termos da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Então e a separação de poderes?

Sobre a máxima “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”, as 50 figuras justificam que a mesma “proíbe a interferência de uma esfera na outra, mas não subtrai ao poder político democrático a sua responsabilidade na definição e execução da política de justiça. Pelo contrário, exige-se uma atitude proativa a quem, em última instância, cabe sempre a responsabilidade pelo regular funcionamento das instituições”.

Quem são as 50 figuras que subscrevem o manifesto?

Ex-presidentes da Assembleia da República, ex-líderes de PSD e CDS, antigos ministros, almirantes, generais, juízes, advogados, ex-governadores — há de tudo um pouco nesta lista.

Eis os nomes: Agostinho Abade; Alberto Costa; Álvaro Beleza; André Coelho Lima; António Barbas Homem; António Barreto; António Correia de Campos; António Monteiro; António Vitorino; Augusto Santos Silva; Carla Castro; Daniel Oliveira; Daniel Proença de Carvalho; David Justino; Diogo Feio; Eduardo Ferro Rodrigues; Fernando Melo Gomes; Fernando Negrão; Francisco Porto Fernandes; Francisco Rodrigues dos Santos; Germano Marques da Silva; Isabel Soares; João Bosco Mota Amaral; João Caupers; Jorge Marrão; José António Pinto Ribeiro; José Francisco de Faria Costa; José Luís Pinto Ramalho; José Mário Ferreira de Almeida; José Pacheco Pereira; José Vieira da Silva; Karin Wall; Leonor Beleza; Lucinda Dâmaso; Luísa Meireles; Manuel Sobrinho Simões; Maria de Lurdes Rodrigues; Maria Elisa Domingues; Maria João Antunes; Maria Manuel Leitão Marques; Miguel Sousa Tavares; Mónica Quintela; Paulo Mota Pinto; Renato Daniel; Rui Rio; Sónia Fertuzinhos; Teresa Pizarro Beleza; Teresa de Sousa; Vital Moreira; Vitor Constâncio.

Qual foi a reação do Ministério da Justiça a este manifesto?

Em comunicado, o gabinete de Rita Júdice culpou o anterior governo. “O ministério está muito preocupado com a situação em que o anterior governo deixou a Justiça. Com as greves que duram há 15 meses. Com falta de magistrados. Com a falta de oficiais de justiça, os tribunais onde chove. Com as prisões que estão degradadas.”

Dizendo estar a trabalhar “arduamente para procurar resolver estes problemas, desde o primeiro minuto”, o Ministério da Justiça diz ter havido “falta de investimento” na área nos últimos oito anos de governação socialista e que essa falha teve um impacto negativo “em todos os cidadãos e empresas”.