Depois de o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco,  ter incendiado o debate entre políticos e magistrados, quando sugeriu a ida da procuradora-geral da República ao parlamento para explicar os processos que influenciaram a política, surgiu agora um manifesto subscrito por 50 personalidades a atacar o Ministério Público (MP) e a pedir reformas no sistema de justiça que funcionou como combustível para atear ainda mais as chamas da discórdia. No que à justiça diz respeito, Portugal está a arder.

Comentando o denominado  “Manifesto dos 50”, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) diz que mais do que uma reforma à medida de casos concretos, a justiça necessita que sejam valorizadas as carreiras de quem nela trabalha e reforçados os meios de acesso para todos aos tribunais.

“A ASJP acredita, como demonstra a história mais ou menos recente, e até recente, que alterações legislativas feitas à medida de casos concretos, não dão bom resultado. O mesmo sucederá se tais alterações legislativas forem feitas com preconceito sobre a atuação das magistraturas.”

Foi neste tom crítico e de discordância que a ASJP, em comunicado, rebateu o manifesto “por uma reforma da Justiça — em defesa do Estado de direito democrático”, subscrito por 50 personalidades com os mais variados perfis profissionais e convicções políticas. O manifesto fala em falta de transparência e de escrutínio público do sistema judiciário, de abusos recorrentes do MP na investigação penal, sobretudo contra agentes políticos, de violação das garantias constitucionais quanto à restrição da liberdade individual e de julgamentos públicos em substituição do julgamento judicial.

Sobre o “défice de mecanismos de avaliação interna” e a “falta de mecanismos de escrutínio externo” – também referidos no manifesto –, a ASJP lembra que o “poder político já indica membros para o Conselho Superior da Magistratura, para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e para o Conselho Superior do Ministério Público, aí acompanhando a atuação da Justiça, dos Juízes e dos Procuradores, nomeadamente avaliando-os e exercendo ação disciplinar”. Neste sentido, reforça; “O Sistema de Justiça usa os mecanismos previstos na Lei, emanada do Poder Legislativo.” E avisa: “Os processos judiciais resolvem-se na Justiça, sendo as eventuais divergências processuais resolvidas através dos recursos.”

Para a ASJP, o problema da justiça não será tanto o da falta de transparência ou de escrutínio, mas sim o de investimento no sistema. Diz: “A tarefa de credibilização e melhoria do sistema de justiça, que a todos compete, impõe que o poder político se preocupe verdadeiramente com a dignificação e valorização das carreiras dos magistrados e funcionários judiciais, o recrutamento e formação de magistrados, as assessorias, o acesso à Justiça, a eficácia e celeridade processuais, a monitorização do impacto da produção legislativa e a componente logística dos tribunais, como sejam as instalações e o sistema informático, entre outros.”

E sublinha: “É notória a falta de juízes e procuradores, a fuga de talentos para outras profissões por falta de atratividade da judicatura, a falta de funcionários judiciais e a degradação de vários tribunais”, concluindo: “Não se pode exigir resultados sem investimento na resolução dos principais problemas do sistema de justiça.”

Manifestando-se disponível para colaborar na “reforma da Justiça” e reconhecendo a legitimidade do “Manifesto do 50” como “sobressalto cívico”, a ASJP reforça o que tem vindo a defender num contexto de Pacto para a Justiça:  “Faz sentido a criação de uma comissão ou grupo de trabalho, no âmbito da Assembleia da República, que, na base de um compromisso comum, válido para além do horizonte da legislatura do momento, congregasse as principais forças políticas, as profissões jurídicas, as academias e todos os saberes relevantes, fizesse o levantamento dos problemas e apresentasse uma proposta transversal de reforma para implementação a médio prazo.”

Pois, sublinha, “reconhecendo legitimidade à iniciativa, enquanto ato de cidadania, importa distinguir, no âmbito da reforma da Justiça, o que é essencial do que é acessório, o que deve permanecer e o que pode ou deve mudar”.

A ASJP, situando o contexto histórico, afirma: “Cumpriu-se Abril quando se estabeleceu definitivamente a independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público.” E realça: “Estes valores não podem ser postos em causa, seja pela via da alteração dos estatutos das magistraturas, seja pela via da funcionalização dos magistrados, seja pelo maior controlo político sobre a atuação da Justiça.”

 

Ministério Público

Para o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), o “Manifesto dos 50” “assenta em preconceitos sobre a atividade do MP e em juízos de valor” sobre dois processos” em investigação.

“Mais uma vez, confirmando receios manifestados pelo SMMP, procura-se forçar alterações legislativas a reboque de dois processos concretos, atacando o papel legal e constitucional do MP, a sua autonomia e, por essa via, o próprio sistema de justiça, ignorando as recomendações europeias nesta matéria”, referiu Paulo Lona, numa resposta por escrito à Lusa.

O dirigente do SMMP lembrou um estudo recente que demonstrou “existir uma falta de confiança generalizada nas instituições democráticas e não uma falta de confiança específica no MP”.

“O que é importante é credibilizar as instituições num Estado de direito democrático e não atacar a independência do sistema de justiça, nomeadamente através da autonomia do MP. Não existe sistema de justiça independente sem autonomia do MP. E sem um sistema de justiça independente não temos um verdadeiro estado de direito democrático. A independência da justiça e a autonomia do MP também são conquistas de Abril e da democracia”, realçou.

 

Ministério da Justiça

O Ministério da Justiça (MJ), reagindo ao manifesto sem se pronunciar sobre a iniciativa, disse estar “muito preocupado” com a situação em que o governo do PS deixou a área, destacando as greves no sector, a falta de magistrados e funcionários judiciais e as más condições dos tribunais. O MJ destacou também a degradação das prisões e considerou que houve “falta de investimento” na justiça nos últimos oito anos, com impacto negativo “em todos os cidadãos e as empresas”.

 

PS

Questionado pelos jornalistas, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, disse que os socialistas receberam “de bom grado” o documento, “escrito por individualidades de reconhecido mérito nacional, altamente respeitadas, com uma grande experiência de vida, de diferentes quadrantes políticos”.

“E é importante que nós tenhamos todos consciência de que não existe nenhuma área da vida humana e da sociedade portuguesa que esteja acima do escrutínio, acima da crítica”, defendeu, concluindo: “A justiça, obviamente, é uma área também de avaliação e de escrutínio. Nenhum agente judicial está acima da avaliação e de escrutínio e, por isso, é de bom grado que nós recebemos esse manifesto”, argumentou, considerando que esta “iniciativa da sociedade civil deve suscitar debate”.

 

Chega

O presidente do Chega, André Ventura, aconselhou os subscritores do manifesto a “lerem um bocadinho mais” e a “levarem a sério a separação de poderes”, recusando limitar o MP e as polícias.

“Aconselhava o doutor Ferro Rodrigues, doutor Augusto Santos Silva, o doutor Rui Rio, que também vi o seu nome neste manifesto, a lerem um bocadinho mais e a levarem a sério a separação de poderes”, afirmou André Ventura.

 

IL

O presidente da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, mostrou-se favorável a uma reflexão sobre a justiça desde que não aconteça a propósito de casos concretos e considerou que o manifesto divulgado não acrescenta muito.

“É um exercício de liberdade, mas não creio que daí venha nenhuma novidade, nenhuma mudança, por via desse manifesto, essencial na justiça. A justiça precisa, de facto, de ser pensada, é necessário fazê-lo, não creio que esse manifesto acrescente muito a essa intenção”, defendeu, realçando: “Os problemas da justiça são outros, têm a ver com a sua própria organização, sobretudo também com os meios e com medidas, com medidas direcionadas na área da justiça administrativa e da justiça criminal que permitam uma maior celeridade dos processos”, disse, indicando que a IL tem “propostas concretas” nestas áreas. Para Rui Rocha, não é “estando sempre e constantemente a atacar a justiça e a suscitar questões relativas à justiça” que se cria o “contexto necessário para uma discussão como deve ser”.

 

PCP

O secretário-geral do PCP entende que “as mudanças são necessárias, o problema é o tempo que já se perdeu”. “Mais vale tarde do que nunca, mas escusávamos de ter chegado ao que chegámos”, criticou Paulo Raimundo, assegurando o compromisso do PCP “para melhorias na justiça, para que sirva a todos”.

 

Manifesto dos 50

Os signatários do “Manifesto dos 50” “instam o Presidente da República, a Assembleia da República e o governo, bem como todos os partidos políticos nacionais, a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de uma reforma no sector da justiça que, respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial, seja inequivocamente direcionada para a resolução dos estrangulamentos e das disfunções que há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública”.

Assinam a petição, entre outros, os ex-presidentes do parlamento Augusto Santos Silva, Ferro Rodrigues e Mota Amaral, os anteriores líderes do PSD e do CDS Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos, os ex-ministros Leonor Beleza, David Justino, Fernando Negrão, António Vitorino, José Vieira da Silva, António Barreto, Correia de Campos, Alberto Costa, Pinto Ribeiro e Maria de Lurdes Rodrigues e o ex-presidente do Tribunal Constitucional João Caupers.

O almirante Melo Gomes e o general Pinto Ramalho, o ex-governador do Banco de Portugal Vitor Constâncio e a juíza conselheira Teresa Pizarro Beleza subscrevem o documento, tal como Isabel Soares, Manuel Sobrinho Simões, Álvaro Beleza e os sociais-democratas Paulo Mota Pinto, André Coelho Lima e Pacheco Pereira.

No texto considera-se que “a Justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente administrada em nome do Povo”, e que “o sentimento de impunidade que a ineficácia do sistema, por si só, já transmite para a sociedade é, assim, agravado pelo défice dos mecanismos de avaliação interna existentes e pela falta de mecanismos de escrutínio externo descomprometido com o próprio aparelho judiciário”.