O pequeno doseador que controla a quantidade de whisky que sai da garrafa é uma patente portuguesa. Mas a maioria das invenções portuguesas, bem como as marcas e desenhos criados sobretudo por pequenas e médias empresas (PME), corre o risco de ser copiada ou apropriada. Em causa está a enorme falta de expressão da propriedade intelectual (PI), um mercado ainda muito incipiente em Portugal.

Se os EUA arrancaram nisto há 150 anos, sendo o maior (em valor) e mais maduro mercado do mundo, a China, que se estreou há 40 anos neste caminho, já representa metade do número de marcas e patentes a nível global e avança a toda a velocidade. Além de ser hoje o país que mais patentes lança, tem em curso um plano estratégico de desenvolvimento a 15 anos que apresenta como meta chegar a 2035 como líder global da propriedade intelectual. “A Ásia toda está a crescer muito; os grandes players são ocidentais, mas as maiores necessidades estão nos países asiáticos, que reúnem já 60 das 100 maiores inovadoras, com destaque para o Japão, que sozinho representa 36.” A explicação é de Gustavo Lopes da Silva, CFO da RCF, empresa quase centenária que se dedica precisamente a esta área. O especialista dá mais cor ao retrato, revelando uma ligação profunda entre o perfil económico dos países e as suas áreas com maior proteção: “Nos EUA e China são sobretudo patentes e marcas de eletrónica, na Alemanha equipment goods (o que se compreende pela indústria, nomeadamente automóvel) e em Portugal dominam as farmacêuticas.”

Gustavo Lopes da Silva, CFO da RCF

Mas há um abismo no peso da propriedade intelectual de qualquer desses países por comparação com o nosso: “Em Portugal, só 7% das PME protegem os seus direitos”, sejam marcas, patentes ou desenho e modelo. E o que pode acontecer sem essa proteção? “Um cliente nosso que não registou a marca e a levou para o Brasil foi obrigado a prescindir da sua utilização.” Os problemas aparecem sobretudo com empresas com perfil de startup, que muitas vezes não sabem que têm de se proteger ou como fazê-lo, que não têm dinheiro e acham que podem avançar nesses processos sozinhas e/ou mais à frente.

Gustavo não recomenda. “Aconselharia que fossem logo no início ter com um especialista em PI, assim que entendam ter algo patenteável ou que seja digno de proteção”, diz o responsável da RCF, que trabalha muito em digital hubs e fóruns de startups e aponta o desconhecimento como um dos maiores fatores de desproteção do que se cria em solo português. E nisso também aponta o dedo ao sector, com o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) à cabeça. “O sector funciona em circuito fechado, longe das empresas; a economia não entende o que é a PI e o que esta pode fazer pela economia, mas os próprios operadores são antiquados, não têm estratégia nem estimulam o desenvolvimento da propriedade intelectual.”

Do lado das empresas, a dimensão é um dos fatores de afastamento: “As PME, sobretudo familiares, veem a PI como custo e não como a oportunidade que existe de valorizar o seu portefólio.” De acordo com Gustavo Lopes da Silva, países como o Reino Unido já fazem avaliações muito completas dos direitos de propriedade intelectual em projetos de due dilligence comerciais; em Portugal, não há nada disto, desvalorizando-se por vezes aquilo que tem mais potencial. “Por exemplo, as massas e farinhas Espiga e Branca de Neve têm grande parte do valor na marca, não na fábrica”, concretiza.

A regulação europeia veio dificultar as coisas às empresas nacionais. Gustavo explica que a “marca europeia” – um registo que se faça em Portugal pode ser válido em toda a UE a 27 – existe há cerca de 20 anos, mas a Patente Europeia com Efeito Unitário pode trazer maiores obstáculos, na medida em que, tendo Portugal ratificado o acordo (ao contrário de Espanha, por exemplo), qualquer problema que surja deixa de poder ser resolvido aqui e tem de se litigar em espaço europeu, o que torna os processos mais complexos e muito mais dispendiosos.

“Espanha, a quarta maior economia europeia, optou por ficar de fora para proteger as suas empresas. Esta medida vai beneficiar as maiores economias e trazer problemas às mais pequenas, como Portugal”, acredita o especialista.

Proteger e criar valor
Mas afinal como funciona a propriedade intelectual? Gustavo Lopes da Silva explica que há três dimensões: a marca, a patente e o desenho e modelo. No momento em que se quer criar uma marca, esta tem de ser registada no INPI, para sua proteção e salvaguarda de que ainda não existe nas geografias onde vai estar ativa. “Estando presente em vários mercados e geografias, a Navigator procurou-nos precisamente porque sentiu necessidade de proteger as suas marcas a nível global”, exemplifica o CFO da RCF. “Mas há também quem nos procure para garantir a proteção de invenções, como é o caso do grupo Amorim, com quem trabalhamos em todo o tipo de inovação, protegendo mecanismos, desenhos ou processos.” Por fim, há os desenhos e modelos, que se materializam, por exemplo, na sola vermelha característica dos stilettos Louboutin.

Tipicamente, o processo inicia-se quando uma empresa, empreendedor ou inventor procura a ajuda de uma empresa como a RCF para se proteger numa destas três áreas, mas também acontece de forma reativa, quando surgem problemas. “Muitas vezes, os empreendedores acham que podem eles próprios tratar da PI, mas tirando as maiores empresas, que têm este tipo de especialização dentro de portas, há trâmites específicos e uma tecnicidade e especialização que apenas este tipo de empresas conseguem garantir” – ou os agentes oficiais da propriedade intelectual e comissários de patentes que estão registados no INPI. Também há quem procure escritórios de advogados com este tipo de especialização, mas Gustavo lembra que muitas vezes aí não existe massa crítica para matérias mais técnicas como a especificidade das patentes, acabando por subcontratar esse serviço a estruturas como a RCF. “A redação de uma patente, para ser bem construída, tem de ser feita por um engenheiro mecânico ou químico”, explica.

E quanto pode custar o processo? O CFO da empresa fundada em 1929 e que tem mais de 85% do negócio fora do país não hesita em afirmar que muito menos do que não levar a sério a propriedade intelectual, mesmo com o recente success fee que a RCF introduziu, garantindo uma parte do pagamento proporcional ao êxito do processo para a valorização da marca, desenho ou patente. “Os fees nesta área são baixos, são tabelados e não cobrados à hora, como acontece com as sociedades de advogados. Uma proteção de marca pode custar 500 a 2 mil euros, dependendo das jurisdições em que está a proteção; uma patente poderá ir aos 4 mil euros no processo completo (ano e meio). Mas se uma empresa não se proteger pode ir à falência.”

Só um terço dos pedidos se converte em patentes
Na proteção de patentes, dar os passos certos e a tempo também é determinante, mas a maioria das empresas e empreendedores ainda não o faz. Mesmo onde há mais indústria e inovação, muitos estão ainda alheados da necessidade de protegerem as suas criações. E a partir do momento em que algo se torna público – para o que basta uma publicação, mesmo num site com poucas visualizações – já não se pode proteger sob patente.

Para Gustavo Lopes da Silva, seria por isso importante dar gás ao sector da propriedade intelectual em Portugal e para isso seria relevante dar um empurrão, nomeadamente com incentivos do PRR. “Hoje o que existe é muito parco e complexo, com uma empresa a poder aceder a cerca de 1.700 euros por ano para temas de propriedade intelectual”, diz. É por isso que desvaloriza notícias de que os pedidos de patentes em Portugal triplicaram em dez anos. “No norte do país, onde há grande capacidade industrial e inventiva, quase nada está protegido. Um pedido de patente e sua concessão é um processo que pode levar até 18 meses, sendo depois a utilização válida por 20 anos, mas obrigando a validação anual. Neste momento, o rácio de conversão entre patentes pedidas e concedidas é de 36%, ou seja, só cerca de um terço do que se pede é aprovado. E depois, no que respeita à utilização das patentes, empresas como a Bial, a Navigator ou a Amorim conseguem fazê-la na sua plenitude, mas a maioria das PME e startups que abrem estes processos não.”

O responsável da RCF vê por isso grande potencial de crescimento no sector da propriedade intelectual. E sublinha que essa aposta pode verdadeiramente ajudar a valorizar o país, a economia portuguesa e o tecido empresarial nacional. “O que aqui se faz tem qualidade e inovação, mas tem de ser protegido e valorizado.”

Artigo publicado na edição do NOVO de sexta-feira, dia 29 de março