A inviolabilidade da vida humana, um dos argumentos invocados pela Provedora de Justiça para requerer a inconstitucionalidade da lei da morte medicamente assistida, não é um “obstáculo inultrapassável” para a despenalização, segundo decisão do Tribunal Constitucional de 2021.

No requerimento, enviado ao Tribunal Constitucional na terça-feira, Maria Lúcia Amaral refere que a regulação contida na lei “é contrária ao que consagra a Constituição no n.º 1 do seu artigo 24.º [A vida humana é inviolável] e no n.º 1 do seu artigo 26.º [A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação]”.

Em março de 2021, os juízes do Constitucional consideraram que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constitui um obstáculo inultrapassável para se despenalizar em determinadas condições a antecipação da morte medicamente assistida.

Na altura, o decreto foi declarado inconstitucional por “insuficiente densidade normativa” do artigo que estabelecia os termos para a morte medicamente assistida deixar de ser punível, na sequência de um pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Apesar de Marcelo Rebelo de Sousa não ter requerido análise ao Tribunal Constitucional sobre se o decreto violava o artigo da Lei Fundamental relativo à inviolabilidade da vida humana, os juízes do Palácio Ratton decidiram pronunciar-se sobre esta matéria naquele acórdão.

De acordo com João Caupers, presidente do Constitucional à data do acórdão, “a este respeito considerou o tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”.

“Na verdade, a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural, dos pontos de vista ético, moral e filosófico – que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe – legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos, como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa”, argumentou.

Caupers acrescentou que “tal solução impõe a instituição de um sistema legal de proteção que salvaguarde em termos materiais e procedimentais os direitos fundamentais em causa, nomeadamente o direito à vida e à autonomia pessoal de quem pede a antecipação da sua morte e de quem nela colabora” e que, “por isso mesmo, as condições em que, no quadro desse sistema, a antecipação da morte medicamente assistida é admissível têm de ser claras, precisas, antecipáveis e controláveis”.

No seu pedido de fiscalização preventiva, Marcelo Rebelo de Sousa sustentou que a norma principal daquele decreto utilizava “conceitos altamente indeterminados”, e escreveu na altura que não estava em questão “saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme a Constituição”.

A lei da eutanásia foi promulgada a 16 de maio de 2023, mas aguarda regulamentação, depois de o governo ter decidido incluir a questão no dossiê de transição para o próximo executivo.

Este processo legislativo foi concluído após vários avanços e recuos uma vez que o tema foi alvo de dois vetos políticos de Marcelo e dois vetos na sequência de inconstitucionalidades decretadas pelo Tribunal Constitucional.

“Considera-se morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”, refere a lei.

A morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente.