O livro mais recente de Carlos de Matos Gomes, intitulado Geração D, foi publicado este mês pela Porto Editora. De forma apropriada, a obra tem o subtítulo de Da Ditadura à Democracia, afinal de contas, o autor aborda aqui o Portugal do século XX e alguns dos momentos mais importantes desse período, nomeadamente a Guerra Colonial, o 25 de Abril, a instauração da democracia em Portugal e a descolonização. Momentos que marcaram uma geração, a geração de Carlos de Matos Gomes, que tem lugar relevante na narrativa desta obra.

Militar e historiador de grande reconhecimento, Capitão de Abril, a obra, a figura e a conversa com o NOVO, a propósito de Geração D, justificam amplo destaque no dia em que se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos, o Dia da Liberdade. Oportunidade para mergulhar na história de forma a compreender melhor o presente e retirar ensinamentos para o futuro.

Como foi a sua experiência durante a Guerra Colonial? Como geriu o que sentia ao ver o que se passava em África?

A questão mais determinante nem é a guerra, é o impacto com África e com a realidade de África, porque tudo aquilo que era a doutrina oficial e a ideia que o regime transmitia aos portugueses de África e do país era de uma nação do Minho a Timor, onde todos os cidadãos eram portugueses e tinham os mesmos direitos, eram iguais. Isto implicava que um cidadão do Minho fosse igual a um cidadão de Timor, e que um cidadão de Timor fosse igual a um cidadão de Moçambique, de Angola ou da Guiné. Ora, o primeiro impacto que tive aos 20 anos com África é de uma realidade completamente distinta. Era uma realidade da violência do colonialismo, da violência racista, da violência que nós vimos logo, a minha geração. Vimos logo da amurada dos navios quando eles acostavam a São Tome, depois a Luanda, depois acostavam no Lobito, ou em Lourenço Marques, na Beira. Víamos os estivadores que vinham tratar do desembarque das mercadorias e que quase nos lembravam os escravos dos filmes do Egito e da antiguidade. Impressão essa que depois se foi consolidando à medida que penetrávamos em África. A minha geração é a primeira e a última geração, a única, que conhece o interior de África, porque África era para ser bordejada no caminho para a Índia e para o Oriente. Na primeira vez, aos 20 anos, quando fui para Moçambique, fui mesmo para o último dos extremos do interior de África, junto ao lago Niassa. Aí encontrei portugueses em termos formais, mas que ainda se vestiam de cascas de árvore, não falavam nenhuma palavra de português e não tinham nenhuma relação cultural e civilizacional com Portugal. Por outro lado, eram sujeitos a uma ausência completa de direitos. Eram arrebanhados para fazerem obras públicas, eram obrigados a venderem os produtos a um determinado preço, sem o poderem negociar, caso do algodão. Portanto, é esse choque que me marcou a mim e, em boa parte, marcou a minha geração, que foi verificar uma completa dessintonia entre aquilo que era a doutrina oficial e a realidade. A partir daí é que se coloca em causa a guerra. A pergunta que fiz foi ‘o que estou a fazer aqui?’. Essa pergunta implica perguntar o que estivemos a fazer durante 400 anos em África, para ao fim desse tempo descobrirmos que todas estas pessoas, que eram uma responsabilidade do Estado português desde o século XVI, estão neste estado. O que é que fizemos? A seguir a isso coloca-se a questão: porquê esta guerra? É deste paradoxo que a minha geração se apercebe. A questão da guerra tem a ver com as suas finalidades, e não propriamente com a forma como é travada. Isso sabíamos, havia um manual do exército da guerra subversiva. Curiosamente, esse manual, que era a doutrina oficial das Forças Armadas portuguesas, era ele próprio subversivo, porque o manual entendia que a questão da guerra subversiva, da subversão, era iminentemente política e não uma questão militar. Nenhuma guerra subversiva se vence, na medida em que se pode considerar vencer, apenas com a ação militar. A ação militar é sempre um fator que permite ganhar tempo para encontrar soluções, que são sempre políticas. O que a minha geração vê, a geração dos dilemas, que tem o dilema do derrube da ditadura e da instauração da democracia, é que não havia da parte do regime nenhuma capacidade para encontrar uma solução política. O último corte que é feito é com o impedimento que o presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, impõe ao General Spínola de não estabelecer qualquer contacto com os dirigentes do PAIGC, nomeadamente através da mediação do presidente do Senegal. Estava na Guiné na altura e quando soubemos que essa possibilidade foi liminarmente cortada pelo chefe do poder político, soubemos que não havia nenhuma solução política para resolver a guerra e que não havia outra alternativa senão o derrube do regime.

O livro foi lançado em abril pela Porto Editora

Ao longo do tempo as interrogações, não só com o que acontecia em África, mas também com o que acontecia em Portugal, foram aumentando na sua cabeça?

Falando por mim e pela minha geração, a questão não é de responder a interrogações. A minha geração já nasce em rutura com o regime. Já não somos o regime. A geração que nasce logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, encontra o regime já no final, Salazar estava no final da vida. Era um regime já anacrónico, já fora do tempo. Após a Segunda Guerra Mundial há um movimento descolonizador, há movimentos de instauração das democracias liberais e representativas, portanto, era um regime anacrónico e ao mesmo tempo arcaico. Tinha mecanismos de governo que já não eram utilizados, o Estado corporativo, a relação das corporações. Isso já tinha passado. Nós não nascemos com isso, já nascemos noutro mundo. Portanto, aquele mundo para nós era já um resto. Sabíamos que íamos ter de viver num outro mundo. De facto, esse outro mundo deu-nos todas as condições de abertura. Portugal teve de se abrir ao exterior após a Segunda Guerra Mundial. Há aquela ligação da minha geração com os jovens europeus, que começa a vir em grande número a Portugal. Primeiro, os turistas franceses, depois os ingleses, que começaram a vir para o Algarve, os espanhóis que vinham para a Nazaré e para a Figueira da Foz. Isso implicou um grau de contacto muito intenso entre as juventudes portuguesas e as juventudes europeias. Essa juventude que vem aqui traz consigo a sua cultura. A minha geração é a primeira que usa jeans, é a primeira geração que utiliza ténis, é a primeira geração que vai para a praia nas férias. Essas transformações sociais têm obviamente reflexos no modo de pensar, no modo de agir e no modo de nos relacionarmos com o poder. A minha geração, mesmo os militares, entrávamos muito facilmente em conflito com os polícias. Éramos abordados por um polícia que se considerava uma autoridade, mas que, na realidade, era um pobre camponês que tinha sido transportado para Lisboa, que tinha menos do que a 4ª classe e que não conseguia estar a perceber o que se passava. É este choque que nos leva, com uma grande consciência, mas também com uma grande autoridade moral, a derrubar o regime. Aquele regime não nos representava, não era o nosso há muito tempo.

Esteve em Moçambique, Angola e na Guiné. Que diferenças viu nesses países durante a guerra?

Angola e Moçambique eram colónias diferentes, porque, primeiro, em termos geográficos estavam no sul do Equador, depois eram colónias muito grandes e eram colónias que sabíamos todos que tinham enormes potenciais de riqueza, de matérias-primas, até de recursos hídricos, de recursos florestais. Essas eram as joias da coroa que poderiam servir de negociação em qualquer modificação do regime. A Guiné era o contrário, era uma pequena colónia na costa ocidental de África, que não tinha nenhum interesse económico, que só fazia fronteira com antigas colónias francesas, ao passo que Angola fazia fronteira com uma antiga colónia belga, com a África do Sul, com uma antiga colónia alemã, fazia fronteira com a Zâmbia, que era uma antiga colónia inglesa. Moçambique fazia fronteira com a África do Sul, com o Zimbabué, ex-Rodésia do Sul, com o Malawi, e a Norte com a Tanzânia. Portanto, representavam para o Estado português valores completamente distintos. Por outro lado, a colonização delas era muito distinta. Em Angola, em 1961, quando começa a guerra havia apenas 80 mil colonos de origem europeia e em Moçambique havia cerca de 35 mil. Para termos ideia do diferencial, na altura a África do Sul tinha 3,5 milhões de colonos de origem europeia, de origem boer e de origem inglesa. Mesmo os colonos de Angola eram diferentes dos colonos de Moçambique. Moçambique foi, tradicionalmente, atribuído às chamadas companhias majestáticas. A soberania portuguesa era apenas exercida no sul. A grande maioria dos colonos de Moçambique eram quadros, com pouca ligação ao território e uma ligação muito forte à África do Sul, e que tinham um entendimento de que a guerra era algo que se travava no Norte de Moçambique e que era um assunto de Portugal, e que eram soldados portugueses que tinham de fazer essas operações no Norte. Daí o facto de a relação entre os colonos e a tropa ser uma relação fria e de distância. Em Angola, a situação era muito diferente, porque a capital, Luana, está muito perto do Norte, onde começou a guerra e onde houve muita violência. Foi em Luanda que foram recebidos os refugiados, foi em Luanda que foram recebidos os primeiros contingentes para fazer a reocupação, portanto, havia um sentimento e uma consciência da importância da presença militar, o que levava também os colonos a terem uma relação mais próxima e mais favorável com os militares, do que em Moçambique. A Guiné praticamente não tinha colonos europeus, aquilo era tão pobre que tinha era funcionários da Casa Gouveia, que era uma grande empresa da CUF, que explorava o amendoim, as madeiras, o caju e pouco mais. Isto também tornava paradoxal a questão da guerra, porque os quadros militares rodavam pelos três teatros. O que quer dizer que quando estava a combater em Angola, estava a combater com uma finalidade completamente diferente e com uma aceitação completamente diferente da sociedade local do que quando estava a combater em Moçambique. E era completamente diferente na Guiné. Nós não andávamos a defender a mesma coisa nos três teatros de guerra, embora a guerrilha conduzisse uma guerra única contra Portugal.

Em que país enfrentou mais dificuldades no teatro de guerra? Na Guiné?

A Guiné era o mais difícil e foi o fator determinante. A Guiné era um território já de si relativamente pequeno, que quando a maré sobe há um terço do território que fica debaixo de água. Depois, os dois terços que ficam de fora ficam nos pontos mais altos. Era aí que tínhamos de instalar os quartéis, as nossas bases. O que quer dizer que a guerrilha sabia precisamente onde estávamos e não tínhamos grandes possibilidades de defesa. Por outro lado, o PAIGC era o movimento de guerrilha mais bem organizado, mais bem armado e que tinha uma maior quantidade de guerrilheiros relativamente aos efetivos militares. Além disso, a população da Guiné estava dividida por 13 ou 14, há quem diga 17, etnias diferentes. Isto quer dizer que o ambiente humano da Guiné era muito diversificado, com grupos étnicos mais próximos dos portugueses e outros mais próximos do PAIGC. Isto obrigava a que as operações militares tivessem de ser conduzidas pensando sempre nas repercussões sociais e políticas. Isto obrigou-nos a pensar politicamente e a conhecer as realidades de África. Houve também uma degradação permanente da situação militar portuguesa na Guiné, que se deveu, em primeiro lugar, à evolução do PAIGC, que passou a ter melhores unidades organizadas, já tinha forças armadas de libertação, com exército e marinha. Dizia-se que já tinham possibilidade de operar aviões de reação, os MiG-17. As forças portuguesas perderam, com a introdução dos mísseis antiaéreos, o único fator de supremacia, que era a supremacia aérea. Sem a supremacia aérea já nem podíamos retirar os nossos feridos do campo de batalha. Isso traduziu-se em desmotivação, as baixas aumentaram – passámos a ter mais de dois mortos por dia, mais de quatro ou cinco feridos por dia. Já não era sustentável num corpo militar que era relativamente reduzido. É esta situação que determina que se tenha de encontrar uma solução política. Após a saída do General Spínola da Guiné, no verão de 1973, a situação na Guiné é de derrota e depois soubemos que o presidente do Conselho de Ministros tinha dito ao general que preferia uma derrota honrosa a negociar com terroristas. A situação em que nos vimos, os quadros militares no terreno, era que nos iam deixar ali como Salazar deixou em 1961 os nossos camaradas na Índia, e que iriam fazer de nós os bodes expiatórios de uma situação que não podíamos controlar porque não tínhamos meios. Foi isto que fez com que o núcleo central, onde estão as pessoas que vão determinar o 25 de Abril e o pós-25 de Abril, tenham na sua grande maioria passado pela Guiné. Passei eu, passou o Otelo Saraiva de Carvalho, passou o António Ramalho Eanes, passou o Pedro de Pezarat Correia, o Carlos Azeredo Todos esses militares, quer os spinolistas, quer os que não eram, como era o meu caso, passaram pela Guiné.

No livro aborda também a sua relação com a PIDE. Como era a relação do exército com a polícia política no contexto da Guerra Colonial?

Neste livro quis pegar nesse assunto porque é um assunto que é sempre delicado pegar, embora seja necessário explicá-lo. O regime do Estado Novo viveu em tensão permanente com as Forças Armadas. O regime foi instaurado pelas Forças Armadas no 28 de maio de 1926. Salazar vem mais tarde e há sempre uma relação de desconfiança mútua entre Salazar e os militares. Salazar vai gerindo esta tensão nunca pondo todos os ovos no mesmo cesto. Daí que algo que era essencial, e era essencial para qualquer regime, eram os sistemas de informações. Salazar ficou sempre na mão com a PIDE, e isto mantém-se durante todo o regime. Quando a Guerra Colonial começou, as Forças Armadas não tinham um serviço de informações. O serviço de informações, que tinha ligações com os serviços de informações europeus e americano, era a PIDE. Ora, a guerra vai-se travar num continente em que as colónias à volta das portuguesas ou eram francesas, ou eram inglesas, e o Congo belga que tem um peso muito grande da intervenção americana. É a PIDE que vai ter ‘antenas’ junto de embaixadas portuguesas ou junto de embaixadas de países amigos, e é também a PIDE que vai gerir o serviço de informações interno em cada uma das colónias. Isto faz com que, para as operações táticas, que é aquilo que refiro aqui no livro, quando necessito de guias, de tradutores para determinados objetivos, tenho de me socorrer das informações que a PIDE tem. Das informações que eles obtinham através de prisioneiros, de escutas, através dos seus aliados nas capitais africanas. Portanto, as Forças Armadas ficam dependentes das informações da PIDE. Quando as operações falham, a PIDE diz que falham porque as forças militares não souberam explorar as informações que lhes deram. E os militares dizem que falharam porque as informações eram más, pois foram conseguidas à custa de pancada e de tortura, e com pancada e torturam qualquer um diz o que se quer ouvir. São estas tensões que se vão refletir. Por outro lado, à medida que a minha geração chega aos postos de comando começam a surgir as chamadas desconfianças políticas, porque a minha geração é aquela em que os cadetes vão para as universidades civis, em que namoramos as estudantes universitárias, em que os nossos pais estão já envolvidos nos jogos da política. A PIDE, como corpo, apercebe-se das fraturas dentro do regime. As fraturas entre Marcello Caetano e o Presidente da República, as fraturas entre a extrema-direita e desses grupos salazaristas com a ala liberal, e começa, curiosamente, a orientar-se para as fontes de poder, para os grandes generais. Podemos dizer que em 1973 há uma PIDE em Moçambique do General Kaúlza de Arriaga, há uma PIDE em Angola do General Costa Gomes, há uma na Guiné do General Spínola, e há uma PIDE em Lisboa que andava a baloiçar, penso que Marcello Caetano eram quem dominava menos a estrutura da PIDE. São tensões políticas, e tensões sociais, geracionais.

Escreveu outros livros sobre a temática da Guerra Colonial. De que forma Geração D se distingue de obras como Nó Cego ou Os Lobos Não Usam Coleira?

O Geração D é uma panorâmica. A minha intenção é que seja o reverso do Nó Cego. O Nó Cego era um romance, uma ficção pura, de um grupo que é colocado numa situação específica, que é a realização de uma operação, e é o risco que cria os laços de coesão desse grupo. O Geração D é uma autobiografia de uma geração. O tempo da narrativa da Geração D vem desde a minha infância, os anos 50, até ao final dos anos 80. Esta obra contém as causas, no caso as causas dos dilemas, a guerra e a ditadura. Vemos a violência da ditadura, da censura, da tortura, da perseguição, das limitações dos direitos. E tem depois o que parece novo e mais arrojado, que é a interpretação de todo o período imediatamente anterior ao 25 de Abril, do 25 de Abril, de todo o período do PREC, como é que um grupo geracionalmente coeso se vai dividir em várias fações durante o verão de 1975, como se vai posicionar o 25 de Novembro com a instauração de um outro regime, o regime onde hoje vivemos, e como é que este período de pós-PREC é gerido de forma a não nos envolvermos em conflitos armados no nosso país, a não termos uma guerra civil geracional, que seria sempre a que ocorreria se não fôssemos uma geração, se não nos conhecêssemos todos, nós os militares. Isso permitiu mesmo nos momentos de maior tensão que houvesse sempre pontes e diálogos. Quis com este livro demonstrar, por um lado, os momentos em que estivemos perto das ruturas, e, por outro lado, porque não se concretizaram essas ruturas e se transformaram em consensos que hoje em dia nos permitem viver numa sociedade pacífica.

Esta obra é uma forma de fazer justiça à sua geração, às tribulações e desafios que viveu, não só a nível nacional, mas também internacional?

A justiça da história é sempre uma forma de vermos o passado. Julgo que mais do que justiça devemos fazer uma análise e, tanto quanto possível, retirar ensinamentos do passado. Isto torna-me de algum modo otimista. A sociedade portuguesa, e a minha geração é um exemplo disso, foi colocada várias vezes perante dilemas mortais, e conseguimos, enquanto sociedade, sair sempre vivos das situações mais dramáticas. A minha geração é a geração da descolonização, e a descolonização implica em termos mentais, em termos da nossa formação identitária, a rutura com 400 anos de história. E nós conseguimos fazer isso, conseguimos terminar um período imperial e colonial, conseguimos reintegrar um número significativo de pessoas que tinham optado por viver nas colónias, no Ultramar, conseguimos integrar-nos no nosso espaço civilizacional natural que é a Europa. Julgo que as gerações subsequentes deveriam pensar que Portugal pode ter soluções inovadoras para a convivência de um pequeno espaço, que é o que a Europa é hoje em dia, quase pouco relevante no mundo, e Portugal tem uma experiência muito grande em ser um pequeno espaço na Europa, mas tendo importância em termos históricos.

Durante a revolução estava na Guiné, onde desempenhou o seu papel, sempre ciente do que se ia passar em Lisboa. Como viveu a Revolução de Abril?

A Guiné foi determinante no 25 de Abril, mesmo nas operações, porque a Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas na Guiné tinha como missão realizar o plano B se o plano A, que era a ocupação do poder em Lisboa, falhasse. Se falhasse nós na Guiné ocuparíamos o poder e criaríamos uma situação completamente nova, que obrigaria o governo a alterar por completo a sua política. O núcleo da direção do Movimento dos Capitães, em Lisboa, tinha vindo da Guiné. O Otelo [Saraiva de Carvalho] quando regressa da Guiné em 1973, já vem com a missão de se ligar ao Movimento dos Capitães em Lisboa. O Salgueiro Maia quando vem no final de 1973, vem com a missão de se integrar aqui. Todos os que vinham da Guiné era para se integrarem no processo que se estava a desenvolver em Portugal. Daí que esta ligação privilegiada entre a coordenação do movimento aqui em Portugal e a coordenação do movimento na Guiné fosse uma ligação muito íntima, com trocas de informações permanentes. Nós sabíamos o que eles estavam a fazer, eles sabiam o que nós estávamos a fazer, e todos sabíamos quando é que as coisas iriam ocorrer. Tínhamos também na Guiné um conceito do que queríamos fazer relativamente à descolonização. Se a guerra era o problema principal, acabada a guerra a descolonização seria o problema que teria de ser resolvido. Iríamos impor esse conceito ao arrepio do que estava estabelecido no próprio programa da Junta de Salvação Nacional, que era a realização de eleições nos territórios, de consulta às populações. No dia 26 de abril, tomámos o poder de manhã e à tarde declarámos um cessar-fogo unilateral, tínhamos fechado a PIDE, que em Portugal a Junta tinha determinado que continuava como serviço de informações, libertámos os prisioneiros políticos primeiro do que em Lisboa, e nomeámos uma estrutura de administração e de comando das Forças Armadas, sem consulta com Lisboa. A Guiné assumiu a resolução do problema central, que passaria a ser o final da guerra e o início da descolonização. Daí que estivéssemos sempre muito atentos ao que se passava em Portugal, e daí que tenha sido na Guiné que se levantou logo desde o início a rutura entre a visão do General Spínola e a visão dos Capitães de Abril mais jovens, quer para a descolonização, quer para a própria organização do Estado e da democracia. Nós não aceitámos, como estava proposto pelo primeiro governo de Adelino da Palma Carlos, um regime presidencialista e bonapartista, centrado num Presidente da República, que seria ao mesmo tempo Presidente e chefe do governo, e que teria apenas uma assembleia representativa. Essa rutura vai-se concretizar com o 28 de setembro aqui. Todo o processo político a seguir deriva, de certo modo, destas linhas que se desenvolveram e que vêm desde a Guiné.

Este ano celebramos os 50 anos do 25 de Abril. Como está, por um lado, a sociedade portuguesa, e, por outro, a democracia portuguesa? O país foi ao encontro das suas expectativas?

Tenho sempre poucas expectativas. A Revolução tem algo que é fundamental, integrou Portugal na Europa. Para o bem e para o mal. Tudo aquilo que acontece na Europa, acontece aqui em Portugal. Não podemos ver os acontecimentos e a situação política portuguesa sem analisarmos o que está a acontecer na Europa. O que está a acontecer em Espanha, o que está a acontecer em Inglaterra, em França, em Itália. Tudo o que está a acontecer em Portugal é idêntico ao que está a acontecer na Europa. Quais são os grandes problemas que existem aqui e na Europa? A primeira grande questão é a da identidade europeia. Habituámo-nos desde a queda do Império Romano que a Europa era o centro do mundo. Fomos para o Médio Oriente nas Cruzadas, depois no século XV começámos a expandir-nos para Sul, para o Atlântico. No primeiro milénio ocupámos o Norte de África, depois ocupámos a América do Norte, a América do Sul, depois Ásia. Nós, europeus, éramos o Ocidente, éramos o Sol da Terra. A fonte da cultura e da civilização, e na nossa ótica todos os outros eram selvagens. A Segunda Guerra Mundial, a descolonização e, depois, o fim do mundo bipolar colocaram a Europa como um pequeno espaço entre grandes espaços. Mais ainda, como tem o estado social, o estado de bem-estar, como sendo muito atrativo, uma sociedade muito atrativa, para povos de outros continentes, mais pobres e pouco desenvolvidos, porque foi a Europa que explorou sempre os recursos africanos, americanos e asiáticos. Hoje em dia, sendo um polo de atração de povoações mais desfavorecidas de outros continentes, que vêm em grande quantidade, a Europa perde importância de exportador de poder intelectual, de poder militar, por um lado. Portanto, vivemos na decadência e, por outro lado, com o sentimento de que estamos a ser invadidos e diluídos noutras culturas. Isto torna muito difícil a primeira grande questão que é perceber onde falhámos. Falhámos na definição de uma cidadania. O que é hoje em dia ser cidadão da Europa? Qual é a nossa identidade? É por isso que temos movimentos racistas, de xenofobia, que são a rejeição do outro e a defesa de um casulo, que é sempre a pior solução. Mas que é algo instintivo. Racionalizar isto é entender que temos de encontrar soluções, e as soluções são sempre para fora. Esta é a primeira questão, cidadania e identidade. A outra questão é que com a evolução tecnológica, que utilidade é que vamos dar aos cidadãos? A sociedade industrial transformou os proletários agrícolas em proletários industriais. A sociedade da tecnologia diminui o emprego. O computador, o teletrabalho, as grandes bases de dados, a inteligência artificial, diminuem a utilidade dos indivíduos. Na Europa, montámos uma civilização em torno do trabalho, e não sabemos como vamos fazer esta transposição. Não sei como a sociedade vai gerir esta nova realidade da inteligência artificial, que vai fazer coisas que não imaginamos. Por isso vivemos num mundo em que a filosofia, o pensar, são fundamentais. Ter pensamento crítico. Temos de pensar.