Ainda se lhe notam tiques da anglofonia a que o obrigou a expressão na infância e juventude, mas mais do que em palavras é na atitude que eles mais se revelam. Como a informalidade do tratamento revelado na visita de um dos três filhos (entre os 17 e os 29 anos), que passa pel’O Madeirense, para recolher o livro encomendado ao pai. Se há quem tenha de Vasco Rato a ideia de um homem distante, é porque nunca o viu nesse papel – o que nem é de estranhar de alguém que preza a reserva da vida privada. Há uma razão para essa defesa: “A democracia não sobrevive sem privacidade, tem de haver um espaço reservado. E nos últimos 20 anos, com a explosão das redes sociais, as pessoas expõem-se voluntariamente… Acho isso corrosivo para as sociedades”, explica o professor de Relações Internacionais, provando o que diz com a ausência no Twitter, a bolha que alimenta muitos dos que se movem na sua esfera.

À mesa chegam salgadinhos ainda quentes e o habitual bolo do caco com manteiga e alho, e Vasco Rato relata que nasceu em Alcanena, por casualidade: o pai teve “problemas” com o regime de Salazar e “fixou-se ali”. “A minha família era de esquerda-esquerda, não totalitária mas meio utópica… eu continuo a ser a ovelha negra”, ri-se, antes de juntar que, aos 80 anos, o pai “está mais sensato”.

Não tem recordações desses tempos; as primeiras que traz são já do Canadá, para onde a família se mudou em 1970. “O meu pai não gostava do regime, achava que a guerra ia durar muito mais tempo e não queria que eu fosse combater…” No primeiro dia de aulas, viu-se, aos oito anos, no meio de 30 colegas e professor todos a falar inglês; ele não pescava nada. “Tive de me desenrascar. Foi interessante.” Fê-lo em três meses, cumprindo com êxito os estudos. Ainda regressou a Portugal, tinha 13 anos – identifica esse verão de 1975 como o momento em que começou a interessar-se pela política, ainda que reconheça que não tinha propriamente consciência do que se passava. Foi sol de pouca dura, um verão chegou para o pai entender que não tinha emigrado por causa de uma ditadura para voltar ao seu país subjugado por outra. E de novo pelo filho único tornou a sair.

“Para uma criança, Winnipeg era um sítio onde nada acontecia e na Europa parecia que tinham enlouquecido todos, aquelas manifestações contra o Vasco Gonçalves, as sedes do PCP incendiadas… aquilo era divertido! Foi esse verão que mais tarde me despertou o interesse pela História e me levou a escolher a formação que fiz”, conta-me, conforme chegam à mesa o bacalhau e o filete de espada grelhado, água e Coca-Cola. Explica que a aventura que se previa breve durou 15 anos, acabando por cumprir todos os estudos fora – mesmo depois da morte da mãe. Fê-lo até terminar o mestrado em Ciência Política, pela Universidade de Manitoba, e voltou ao seu país, um pouco por sentido de dever familiar um pouco por patriotismo, nos derradeiros anos da década de 80.

Recorda esse Portugal peculiar onde as regras de trânsito eram “mera sugestão” e a sociedade rígida e adversa à mudança, mantendo um Partido Comunista depois dos exemplos de falhanço comprovados no mundo. Voltaria a sair para o doutoramento em Georgetown, Washington, mas já sabendo que era em Portugal que se fixaria, ainda que mantendo à distância, até hoje, amigos dessas paragens, do curso no Canadá, do mestrado em Comunismo Comparativo – “sei imenso sobre todos esses regimes que desapareceram”, ri-se -, dos trabalhos que ia fazendo para financiar os seus gastos antes do primeiro emprego, a ensinar no primeiro curso de Relações Internacionais da Lusíada.

O currículo e a experiência vivida haviam de o levar à Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), para cuja presidência foi nomeado por Passos Coelho e onde abraçou de alma e coração a missão de aproximar as comunidades portuguesa e americana, de abrir uma janela para os portugueses nos EUA, de construir essas pontes. Foi da sua mão que saíram projetos como o que ainda traz a Portugal políticos lusodescendentes ou a criação de lóbis locais de lusodescendentes nos EUA.

“Escolhi Portugal porque gosto de viver aqui, não me arrependo nada de ter voltado, mas 40 anos depois, ainda é uma sociedade muito salazarista”, diz ele, que se identifica como liberal e de direita. Lamenta a “obsessão burocrática” que impede as pessoas de agir com independência – “as pessoas têm medo do fracasso, não querem inovar, escolher o seu caminho, deixam-se confortavelmente nas mãos da Europa e a sonhar com um D. Sebastião salvador” – e o potencial que se vai perdendo. “Portugal é como uma criança sobredotada que não vai à escola”, retrata, ainda com o distanciamento que consegue manter.

Diz que os anos de Cavaco lhe deram esperança de o país entrar num rumo de desenvolvimento, de modernidade, que infelizmente nunca viu chegar – os reformistas, como Passos Coelho, foram sempre travados. E com o passar dos anos e a última década de governação, em que tudo paralisou, a começar pelo elevador social, piorou ao ponto do atual sangramento de jovens. A emigração que não se trava porque não se dá condições para que fiquem, agravando o problema demográfico e a esperança de futuro. “Ninguém quer falar sobre temas relevantes, não se pode debater o que importa sem se cair em acusações. E admiram-se que a democracia esteja em crise.”

Hoje, Vasco sente-se em casa, mas “era capaz de viver em Londres ou Istambul”. “Acho que o melhor que fiz foi não crescer cá, isso permitiu-me ver o país com alguma distância e crítica, mas também estupefação face à falta de exigência. As gentes contentam-se com poucochinho, com líderes políticos trágicos e em manter as coisas mais ou menos como estão”, concretiza. Aponta as profundas contradições num país assente num modelo de Estado social em pré-falência e sem estratégia para justificar os ciclos políticos que estão a encurtar e as semelhanças crescentes entre PS e PSD. “E isso resulta nas votações do Chega, da IL”, diz, recordando que a História se repete em ciclos e que já vivemos um momento de tempestade perfeita, como o atual, no século XIX. “Quando não se resolvem os problemas, a realidade impõe-se; e as pessoas já perceberam que o jogo está viciado. É muito interessante isto nos 50 anos do 25 de Abril, porque a revolução trouxe a descolonização, mas não o desenvolvimento. A verdade é que Portugal não quer abrir-se ao futuro, está cristalizado, é uma sociedade de grupos corporativos que querem manter o que têm e transfere o encargo para as gerações seguintes – e isso não será viável nos próximos 20 anos.” A solução existe, sim, mas as pessoas não a querem. “Porque é preciso um conjunto de transformações que traria dor a essas corporações.”

Uma das vítimas desta paralisação, assume, são os miúdos, que estão longe de ter o ensino que mereciam. E nisso há culpas repartidas entre o público, que não cumpre os padrões de qualidade que apregoa, e o privado, que maioritariamente abdicou de oferecer uma formação de elite. Ainda assim, reconhece que há quem esteja pior. “Ao menos as nossas universidades não sofreram o ataque à liberdade de expressão que outras estão a viver. Eu hoje não daria aulas numa universidade americana”, garante, elogiando o “senso comum” nacional que ainda resiste “nas gentes portuguesas” e que “impede muita maluquice”.

Novas potências
Talvez por ter uma visão sempre meio de fora, entende o que outros não veem com clareza. “As pessoas não conseguem imaginar o improvável, não conseguiram prever o triunfo de Hitler, a revolução bolchevique, mas depois de acontecer, olhamos para trás e estavam lá os sinais todos. Hoje parece-me que essas variáveis estão de novo lá e só não vê quem não quer.” Não é só Portugal que está a falhar, é a Europa. E quando novos partidos ganharem em França ou na Alemanha – porque desde a crise de 2008 que estamos a perder e a empobrecer, enquanto EUA e China sobressaem pela inovação, pela indústria, pela tecnologia -, prevê, a forma como pensamos a Europa vai mudar. “Estou algo pessimista com o futuro, sobretudo porque não se fala de nada disto”, diz-me. “O colapso da UE é difícil de imaginar, mas é uma possibilidade.” E lembra que o projeto nos anos 90 para uma Europa que passaria em pujança e como referência os EUA é ambição que já se foi.

Pedimos cafés; vêm acompanhados de pastéis de nata e bolo de mel e Vasco Rato vai confessando que são estes os temas que hoje lhe preenchem o interesse. Sobretudo as relações entre as três grandes potências atuais, Rússia, China e EUA, e como se reconfiguram no mundo que aí vem. “É por isso que acho Donald Trump tão interessante”, explica, antecipando que o empresário pode voltar à Casa Branca. “Não se discute isto com racionalidade, julga-se como se fôssemos todos ser governados por ele, mas fala-se sem entender o contexto dos EUA. E depois há grandes surpresas, para quem vive num mundo de certezas morais absolutas. Esses que têm uma visão paternalista do mundo olham estes acontecimentos como se fossem magia”, ri-se.

Volta a falar a sério para explicar que essa vontade de entender o que aí vem o deverá levar, em breve, à Ásia. E confessa que se vê a trabalhar até morrer – mesmo porque não tem bem definidas as fronteiras entre o que é trabalho e o que faz por prazer. Agora, está a escrever dois livros em simultâneo, precisamente sobre esses temas que o têm apaixonado: um sobre Portugal entre 1974 e 1982, outro sobre a ascensão e queda da ordem liberal. “Daqui a um ano ou dois deve estar a sair”, prevê.

E no futuro, como se imagina? “Talvez a viver numa aldeia no campo – estou um bocado farto de Lisboa… Só há um problema a que sou sensível, os animais que há no campo”, ri-se.

Artigo publicado na edição do NOVO de dia 2 de dezembro