Preocupado com o “desinteresse” dos jovens estudantes pela magistratura, – porque ficam sempre vagas por preencher nas candidaturas de acesso – e com o intuito de fazer crescer a atratividade da profissão, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) quer que os candidatos às magistraturas passem a receber um subsídio de compensação, em complemento ao valor da bolsa de formação já previsto (1250 euros), desde o momento em que entram no Centro de Estudos Judiciários (CEJ).

“É urgente analisar e entender as causas deste desinteresse, procurar soluções e estabelecer estratégias para inverter a tendência”, disse Paulo Lona, o novo presidente do SMMP no discurso de tomada de posse que se realizou esta quinta-feira, no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), em Lisboa.

Perante Lucília Gago, a Procuradora-Geral da República que já disse adeus ao cargo e aos procuradores, e perante o olhar atento do Diretor Nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, também em final de mandato, Paulo Lona deu honras de abertura ao tema da atratividade da profissão, mas logo mudou a agulha, parecendo ter sido introduzido à última da hora, pois tudo o que disse em seguida soou mais estruturado e com recados explícitos para o poder político. De todos os modos, chamou a atenção o facto de considerar que o aumento dos rendimentos dos candidatos à magistratura poderá resolver o problema da atratividade. Os chamados “auditores de justiça” são atualmente os “estudantes” mais bem pagos do universo ainda académico e aqueles que, no início da carreira, têm os salários mais altos, comparativamente aos médicos, por exemplo.  Porém, o certo é que a atratividade pela profissão está a baixar. Os licenciados em direito estão a optar por outros afazeres jurídicos.

O que disse Paulo Lona em seguida foi muito mais acutilante, evidenciando o mal-estar que se vive no Ministério Público (MP), até pelo modo como terminou o discurso, muito ao estilo dos movimentos revolucionários do pós-25 de Abril de 1974: “Viva o SMMP; Viva a independência do MP; Viva a autonomia dos seus magistrados; Viva a Independência do sistema de Justiça; Viva o estado de direito democrático”. Vivas do presidente para o que parece estar a perecer.

 

Recados ao poder político

O discurso do novo rosto do SMMP, o único concorrente nas eleições para os órgãos dirigentes, assegurando a continuidade do mandato anterior, de cuja direção era também titular, esteve direcionado para o poder político, num ataque sem precedentes no contexto da magistratura.

O último dos recados, direitinho para o presidente da República e para o Governo, foi talvez o mais condicionante da ação política e tem a ver com a nomeação do próximo Procurador-Geral da República (PGR), que substituirá Lucília Gago, em outubro.

Disse Paulo Lona: “Tendo em conta o perfil necessário para o cargo será natural que a escolha recaia sobre um magistrado do MP, que se encontre em exercício de funções, com grande experiência, capacidade de diálogo, capacidade de mobilização e mestria na comunicação interna e externa”.

É a segunda vez que um presidente do SMMP dá esta nota. A primeira vez foi durante o congresso da instituição realizado nos Açores no final de fevereiro, ainda com Adão Carvalho na presidência. Disse o anterior presidente: “Temos, por recomendável, a bem do Estado de direito, nestes tempos de enorme pressão e crítica sobre investigações em curso, com protagonistas e responsáveis políticos a manifestarem uma clara vontade de conformar a atuação do MP a uma espécie de tutela política, que esse processo decorra da forma mais transparência possível; com publicitação dos motivos atinentes à escolha; com conhecimento do projeto que o escolhido tem para o MP; e com respeito pelas recomendações ao nível do Conselho da Europa de que essa função, seja qual for o sistema do MP, deve recair sobre um magistrado do próprio MP, a bem da independência e autonomia desta magistratura, enquanto garante da própria independência do sistema judicial.”

A insistência no assunto revela uma preocupação de fundo que advirá dos comentários nos corredores da conspiração, segundo os quais o próximo Procurador-geral da República poderá ser um magistrado judicial, apontando-se muito concretamente o nome de Manuel Soares, o ex-presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP). O próprio já se manifestou publicamente desinteressado, mas nos corredores do PSD e do PS o nome é falado. A questão, agora, é a de saber se o Governo e o PR terão o ardimento para avançar contra a opinião do SMMP.

Logo no início do discurso Paulo Lona fez questão de salientar que representa a maioria dos procuradores. Disse: “É o único sindicato que representa os magistrados do MP, aliás a sua grande maioria (cerca de 90%), com um grande capital de prestígio, nacional e internacional”.  Nos Açores, Adão Carvalho tinha dito: “Somos hoje 1520 sócios e continuamos a crescer.” E frisou: “O SMMP tem a força que lhe é dada pelo facto de agregar a quase totalidade dos magistrados e tem sido decisivo, nas mais variadíssimas convulsões e contextos enfrentados pelo MP ao longo destes quase 50 anos de história, e estou certo que o continuará a ser nos temos futuros que se avizinham difíceis.” Paulo Lona, na senda Adão Carvalho, deixou claro que as suas palavras têm o peso de quase todos os procuradores.

 

Tempos perigosos para a justiça

Antes, porém, tinha-se ouvido um outro recado bem mais contundente. Paulo Lona começou com uma mensagem direta aos pares. “Caros colegas, o tempo que vivemos é um tempo perigoso para a justiça e para a sua independência”. Depois, acrescentou: “É fundamental que o poder político (executivo e legislativo) saiba resistir à tentação de aprovar alterações legislativas precipitadas, ao sabor de dois ou três processos mediáticos, que envolvem a classe política, condicionando a atuação independente do MP em futuros casos de criminalidade económico-financeira, em especial no combate à corrupção, e violando as recomendações europeias que vinculam Portugal.”

Quanto à corrupção, também a mensagem foi acutilante: “O combate à corrupção exige um MP independente e magistrados autónomos, bem como recursos materiais, humanos e tecnológicos.” Depois, alertou: “Se o MP, enquanto titular da ação penal, não dispõe de magistrados em número suficiente e especializados, fica comprometido o assumido combate à corrupção.” Estas palavras trouxeram à memória o início do discurso.

Paulo Lona deixou, depois, o aviso: “Esta direção do SMMP nunca aceitará reformas que contemplem soluções que: 1 – comprometam a independência do MP; 2 – descaracterizam a sua matriz constitucional e legal; 3 – comprometam a autonomia dos seus magistrados.”

E advertiu: “Estas são linhas vermelhas que para o SMMP sempre terão que ser respeitadas no debate sobre a reforma da justiça.”

Outro recado: “Nunca aceitaremos soluções legislativas que menorizem ou fragilizem a nossa instituição e consagrem soluções que não respeitem a separação de poderes no quadro de um Estado de Direito Democrático, que é parte da União Europeia e integra o Conselho da Europa.”

Os avisos surgiram também em forma de interrogações, estas, porventura, ainda mais mordazes:

“Uma primeira interrogação!   Para quando um investimento sério na Justiça? No MP?” Insistiu: “Volto a repetir – para quando um investimento sério na Justiça? No MP?”. E observou: “Faltam oficiais de justiça, de forma transversal, em todas as 23 comarcas do país, o que está a paralisar o funcionamento de alguns tribunais e serviços do MP”. Em seguida, alertou: “A situação é grave e carece de resposta urgente, a carreira dos oficiais de justiça não é atrativa, são mal pagos e sem estatuto profissional condigno aprovado.”

Eis, agora, o cerne do recado para Rita Júdice, a nova Ministra da Justiça: “É necessário que a justiça seja uma prioridade para o poder político e que o Ministério da Justiça olhe para o sistema de justiça e para os seus reais problemas com uma visão global.” Recado alargado a todo o poder político: “Até para que não fique a ideia de que a justiça só se transforma em prioridade quando se torna incómoda para o poder político, como consequência de dois ou três processos mediáticos”, disse.

 

MP mendicante

Uma segunda interrogação, sendo esta uma velha questão que também Lucília Gago abordou no referido congresso dos Açores: “Será do interesse da sociedade ter um MP de mão estendida ao poder político mendigando meios?” E sublinhou: “Um MP independente só existe verdadeiramente quando tem autonomia financeira.” Depois, a constatação ardilosa: “Uma vez que o MP português não tem essa autonomia financeira está sempre dependente do poder executivo e dos recursos financeiros que este lhe decide alocar, está obrigado a pedir os meios de que necessita, o que não é claramente a melhor solução quando sabemos que é, por vezes, sobre esse poder executivo que incidem determinadas investigações.”

Paulo Lona reconheceu também o clima de crispação no meio judiciário, tema várias aqui abordado pelo NOVO. Neste sentido, apelou ao “diálogo entre os diversos operadores da justiça – advogados, magistrados judiciais, magistrados do MP, solicitadores, notários, conservadores, agentes de execução, oficiais de justiça e elementos dos órgãos de polícia criminal”. Porque, frisou, “o descrédito a que um ator do sistema de justiça procura votar outro vai-se repercutir inevitavelmente na credibilidade do próprio sistema de justiça.”

O discurso do novo presidente do SMMP foi longo, mais do que o habitual nesta circunstância, podendo refletir sinais dos tempos que o discurso também detalha. Foi eminentemente político, de recados para os partidos com assento parlamentar, mas também abordou questões sindicais, de defesa dos interesses laborais dos magistrados.

Desde logo uma questão laboral muito importante para o interior da PGR: “É possível construir relações hierárquicas saudáveis, construtivas e dialogantes, respeitadoras das funções de cada um, que credibilizem o MP e respeitem a autonomia dos magistrados.” Recorde-se que permanece pendente uma ação no Tribunal Administrativo interposta pelo SMMP contra a PGR para se definir se os procuradores estão obrigados a acatar ordens diretas dos superiores hierárquicos sobre a orientação a dar aos processos em análise. É uma questão que está a perturbar as relações hierárquicas.

Paulo Lona recordou também a realidade dos recursos humanos: “Temos uma magistratura envelhecida, magistrados com excesso de trabalho (alguns com volume de trabalho desumano), desmotivados, com problemas de saúde, física e psíquica, cada vez mais recorrentes, com stress, sintomas depressivos e com grande desgaste profissional.” E observou: “Estas situações traduzem-se em baixas médicas, sem que existam magistrados em número suficiente nos quadros complementares para as compensar, o que leva a um crescente número de acumulações de serviço, sendo que muitas não são pagas ou apenas o são alguns anos depois de autorizadas pelo CSMP.” O SMMP comprometeu-se a “fazer o levantamento das acumulações de serviço não pagas e pugnar pelo seu célere pagamento.”

Contudo, o alerta inicial do discurso começou por estar focado nos auditores de justiça. O SMMP quer que a bolsa de formação atribuída aos estudantes seja acompanhada de um subsídio de compensação, pretendendo com isso aumentar a atratividade da profissão. De facto, um auditor de justiça tem direito a receber uma bolsa de formação de valor mensal correspondente a 50% do índice 100 (início da carreira – 2549 euros) da escala indiciária para as magistraturas. Mas, a verdade é que já nem a bolsa atrai os licenciados em direito. Recorde-se que no 39.º concurso para auditores de justiça foram abertas 52 vagas para a magistratura do MP mas apenas 43 foram preenchidas. Sabendo-se que as vagas abertas são manifestamente insuficientes para garantir, pelo menos, o preenchimento dos quadros mínimos legalmente previstos, o panorama ainda é mais grave quando as poucas vagas que veem a concurso ficam por preencher.

O cenário tem vindo a repetir-se, sinal que já não basta o prestígio nem as condições remuneratórias para que profissão se apresente atrativa. Os jovens valorizam outros fatores laborais ainda pouco considerados na administração pública, e a magistratura está a ressentir-se disso. Paulo Lona fez bem em ter começado por aqui o seu discurso de ataque cerrado ao poder político.