Professor universitário, licenciado em Direito e doutorado pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, onde obteve os prémios para melhor tese de Doutoramento e investigador do Departamento de Direito, foi ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, com a tutela da Comunicação Social, do Desenvolvimento Regional e das Autarquias Locais, no governo de Pedro Passos Coelho. Miguel Poiares Maduro é vice-presidente da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social e dean da Católica Global School of Law.

Vamos começar por Portugal. Temos um ano a arrancar com três eleições em seis meses: as regionais nos Açores logo em fevereiro, legislativas em março e europeias em junho. Será o ano de todas as decisões ou da indecisão total?
Será seguramente um ano marcado por essas eleições, e não é claro – as sondagens indiciam isso – que dessas eleições, em particular das legislativas mas também nos Açores, saiam soluções estáveis e, portanto, que não venhamos a ter ainda mais eleições para além das três previstas. Mas eu não dramatizaria isso em excesso. Nós vivemos aqui obcecados com uma estabilidade política que confundimos muitas vezes com estabilidade parlamentar – que muitas vezes nem sequer corresponde a uma estabilidade política, porque não se traduz em estabilidade de políticas públicas. Importante é – e vemo-lo em muitos países europeus – o valor da estabilidade das políticas públicas, ou seja, ter princípios estruturantes que garantam alguma continuidade ao longo do tempo. Isso é muito importante para a ação dos atores económicos, para que as políticas públicas possam ter eficácia e possam ser avaliadas adequadamente e possam ser revistas se necessário. E isso não depende de estabilidade parlamentar, necessitaria de uma cultura política diferente.

Mas tendo em conta os últimos oito anos, em que não se construiu políticas públicas, não se desenhou projetos de médio prazo sequer, e com o peso que o Estado tem na economia, não é mais problemático para Portugal do que para países como Itália ou Bélgica?
Sim, precisamente porque nós, infelizmente, não temos uma cultura política que assegure essa estabilidade de políticas públicas através de uma administração independente e forte, que assegure a gestão da coisa pública com eficácia para além dos governos, independentemente dos governos, não asseguramos essa continuidade de políticas nos seus aspetos estruturais. Mas nos últimos oito anos não beneficiámos em termos de continuidade e de transformações da estabilidade que tivemos. Portanto, nem sempre a estabilidade parlamentar ou política assegura melhores condições de desenvolvimento do país. É sempre uma escolha que temos de fazer. E perante a deterioração a que estávamos a assistir nos princípios que regem a atividade governativa…

É melhor a alternativa.
É que não se trata apenas da existência de casos e do que esses casos revelam. É a deterioração do entendimento daquilo que devem ser os princípios fundamentais de ética e integridade no funcionamento da política do Estado, da atividade governativa. Perante isso e ao mesmo tempo a circunstância de termos um governo que apenas mantinha o statu quo, não acho que haja um custo muito significativo adicional em termos eleições. Pode ser que seja o início de uma clarificação política que, mesmo que não ocorra imediatamente nestas eleições, poderá ocorrer em eleições futuras e que, essa sim, traga uma estabilidade produtiva, não uma estabilidade inconsequente, como foi aquela que nós tivemos.

E não resultando daqui, como pouco provavelmente vai resultar, uma maioria estável, é possível que cheguemos a outubro e a queda do orçamento obrigue a novas eleições, com novos líderes políticos?
Eu não daria por garantido que não vamos ter uma solução estável resultante das próximas eleições… Já vimos, incluindo nas eleições mais recentes, que quanto mais a data se aproxima mais uma fatia muito significativa do eleitorado – temos hoje mais de 20% de indecisos, que são suficientes para garantir essa maioria estável de um lado ou doutro – acaba por concentrar o seu voto na solução que lhe parece mais moderada e mais suscetível de garantir uma governação com estabilidade. Pode ser que isso venha a acontecer e as sondagens não revelem ainda esse processo de transferência do voto ou de mobilização do voto que atualmente é indeciso para uma solução que ofereça mais estabilidade. E neste momento, aquilo que as sondagens também revelam é que é mais provável que essa solução possa vir do centro ou centro-direita.

A AD teve aí um papel determinante?
Pode ter um papel importante a sinalizar aos eleitores a oportunidade de uma solução mais estável. Se não acontecer, é porque os eleitores, na sua sabedoria coletiva, entenderam dessa forma e teremos de ver o que acontece. Mas penso que é mais provável que exista um governo de centro-direita – dependerá de o PS viabilizar, abstendo-se. E se PS ou Chega deitarem abaixo o governo, assumirão depois essas responsabilidades e veremos o que é que o eleitorado decide. Se isso acontecer – se o PSD com o CDS vencerem, sem maioria parlamentar, e o governo vier a cair por iniciativa do PS ou do Chega –, esse partido será provavelmente penalizado depois pelos eleitores. Portanto, a médio prazo teria uma solução mais estável.

O líder do PSD será uma pessoa capaz de capitalizar esse centro e trazer de novo essa confiança do eleitorado a uma nova AD, também com independentes e até aberto a um PS mais centro?
Montenegro – e estou à vontade para o dizer porque nem foi o candidato que apoiei – tem pontos fortes e pontos fracos. E uma boa liderança é aquela que sabe tirar partido dos seus pontos fortes e ir buscar quem pode suprir os fracos. Eu acho que um dos seus pontos fortes é a capacidade de agregar pessoas, de ouvir – tenho tido essa perceção de que é uma pessoa moderada, aberta, que procura ouvir pessoas muito diferentes. Aquilo que às vezes aparece como um handicap dele, as pessoas não terem uma noção muito clara de qual é exatamente a visão estratégica que ele tem para o país, é o outro lado da mesma moeda, que é a abertura que ele tem para ouvir pessoas, consultar e ir construindo as suas posições através dessa busca de diferentes competências e de trazer pessoas para o seio dos seus processos de liderança. Portanto Montenegro tem o perfil adequado para criar convergências e vir a criar uma maioria.

E seria melhor primeiro-ministro do que Pedro Nuno Santos – extraindo daqui as simpatias partidárias…
Essas simpatias partidárias são relevantes, porque eu estou no PSD e ele no PS por uma razão – ambos comungamos de certos princípios fundadores do nosso partido, e um primeiro-ministro é-o sendo líder de um partido e, portanto, comungando aqueles princípios estruturais. Só por isso, acho que seria melhor, mas não só. Reconhecendo o dinamismo e a vivacidade, a energia de Pedro Nuno Santos, também tenho algum receio associado ao seu estilo de liderança. Eu receio muito pessoas que apresentam qualquer processo de escrutínio a uma decisão que tomaram – e muitas vezes de forma impulsiva, como é o caso dele – como um obstáculo a ser removido, e não como parte do processo que garante a qualidade da decisão. Isto confunde-se facilmente com tiques autoritários: eu tomei uma decisão, é para ser executada e qualquer crítica, qualquer escrutínio, qualquer processo de verificação de uma entidade independente ou até o processo de discussão da decisão é um obstáculo a que coisa aconteça; e como tal é para ser removido. Quando deveria ser algo que garante a qualidade da decisão. Aquilo que ele próprio apresenta de si próprio, “Eu faço, aconteço, decido imediatamente”, para mim não é sinal de alguém que faz alguma coisa mas antes de impetuosidade e resistência aos processos de escrutínio e de avaliação de qualidade das políticas públicas, que são fundamentais para garantir a qualidade do que decidimos. Eu também gosto de fazer coisas, gosto que as coisas aconteçam e irrito-me muito com a inércia do país, mas não confundo isso com processos de decisão impetuosos, impulsivos, quase autoritários e que resistem aos mecanismos de garantia de controlo próprios das boas decisões.

Pela primeira vez, nas legislativas – que acontecem a pouco mais de um mês dos 50 anos do 25 de Abril – os líderes partidários ou não tinham nascido ou não tinham mais de 8 anos na altura na revolução (o mais velho será Nuno Melo). Pode isto marcar uma renovação na política?
Há várias dimensões de resposta. Primeiro, acho bem que seja uma geração nova, mas vem é tarde, a nossa classe política está muito envelhecida e os jovens têm um papel muito pouco significativo na liderança da nossa política, são ainda em larga medida tratados como acessórios. Nós olhámos para primeiros-ministros, ministros, pessoas em posições de autoridade noutros Estados da Europa e são pessoas muito mais jovens. E em Portugal a renovação é feita com pessoas de 50 anos. Portanto, eu acho até que é pouca renovação e tardia. Depois, outro aspeto que temos visto também noutros países é a mudança no perfil de liderança, pessoas que – e não quero que esta expressão seja vista necessariamente como negativa – são profissionais da política.

Os políticos profissionalizaram-se.
Houve uma profissionalização da política e dos partidos, que já não escolhem para líderes pessoas que estão fora da política e entram pelo reconhecimento que obtiveram na sociedade civil, na vida profissional, mas pessoas que vêm da própria estrutura, do projeto partidário. Isso é um facto, resulta da estrutura dos partidos e do funcionamento da política. Importante é garantir que, sendo isso que acontece, continuam a existir elementos de comunicação, vasos comunicantes com a sociedade civil, que têm de ser de outro tipo. É a capacidade de ir recrutar no âmbito da composição dos governos, da construção de políticas públicas e de massa crítica para os partidos. E vejo isso a perder-se. Se continuarmos neste trajeto e os partidos políticos se isolarem cada vez mais uma lógica totalmente profissionalizante interna, o que vai acontecer é um desalinhamento crescente entre as preferências que resultam dos mecanismos internos dos partidos e as do seu eleitorado potencial. E isso vai acabar por ter problemas nos partidos – e é uma das razões que explicam, aliás, a crescente fragmentação. Os eleitorados tradicionais dos principais partidos já não se reveem plenamente neles e procuram coisas novas, organizações ou movimentos novos.

Mas isso não está a acontecer?
Já está, sim. Isso nota-se na muito maior fragmentação política – aparecimento de novos partidos mesmo num país como Portugal, em que é difícil novos partidos entrarem no mercado – e na muito menor fidelidade do voto. E é um desafio acrescido ao funcionamento do sistema e sobre o qual os próprios partidos políticos tradicionais, se quiserem continuar a ser os partidos federadores, os grandes, têm de repensar como é que se reorganizam no sentido de não perderem esse papel.

Mas há risco de também aqui desaparecer algum, como aconteceu já em França ou na Grécia?
Não, não direi desaparecer, mas vamos ter uma realidade política cada vez mais fragmentada e uma lógica de funcionamento que exige cada vez mais coligações alargadas. Mas há que ver se isso é suficiente para manter a relação com a sociedade civil; é fundamental aos cidadãos sentirem-se representados por esses partidos. Se eles não fizerem isso, os cidadãos cada vez mais verão a classe política como uma elite distante, que não os representa e por vezes até está em oposição à vontade e interesse dos eleitores. E é isso que explica o crescimento das tendências populistas, que basicamente o que fazem é explorar o sentimento que os cidadãos têm de que a classe política já não os representa, antes se representa a si mesma, está lá para defender os próprios interesses. Este é um problema comum por toda a Europa, é um desafio fundamental que a democracia enfrenta.

Até porque em Itália esse movimento já chegou ao poder. Nos Países Baixos, também, em França está a caminho…
Há que fazer distinções, eles são de natureza diferente, alguns são extremistas, outros radicais – o que não significa que também não sejam preocupantes ou perigosos. E existem à esquerda e à direita. Portugal sempre teve partidos populistas, eles eram era de esquerda, mas o discurso e a narrativa política do Bloco, por exemplo, é claramente populista. Aliás, há filósofos políticos com reconhecimento na área da esquerda que defendem o populismo, dizendo que há o bom e o mau populismo – o xenófobo é mau e o que contrapõe o povo trabalhador às elites políticas que estão no poder contra ele é bom…

O wokismo não contribui também muito para esse crescimento, ou seja, além do lado político, não há também uma reação a um ataque aos valores da sociedade?
O principal problema do wokismo é que é uma versão extrema da polarização política. E essas versões extremas tornam impossível o funcionamento da política numa democracia. A função principal da democracia é reconciliar diferentes preferências políticas – reconhece o pluralismo, as diferenças, e procura reconciliá-las; e quando não consegue, pelo menos arbitra-as através de regras e processos aceites por todos. Ora o wokismo, por definição, não reconhece o outro lado. Diz que há pessoas que, em virtude da sua história, do grupo a que pertencem, por exemplo, brancos privilegiados, nunca conseguirão entender o outro lado e qualquer forma de acesso ao poder ou de influência que procurem ter correspondente aos seus direitos será sempre uma forma de exploração dos outros grupos sociais. Isso torna impossível um debate racional. No fundo, o que diz é que a política é um combate, uma guerra civil não armada em que ganha um ou outro lado, não pela força dos seus argumentos, ou de um processo reconhecido por todos, mas através da força que tiver social, cultural ou económica. Isso é o contrário daquilo que é fundamental para o exercício da democracia. E esse é o grande perigo do wokismo, é uma forma radical de polarização que contraria os próprios pressupostos em que assenta a democracia.

Mesmo porque favorece as minorias em detrimento da maioria…
A democracia é um conjunto de processos de arbitragem que diz que em determinadas circunstâncias e cumpridos certos requisitos, a vontade maioritária prevalece, com a proteção de certos direitos individuais. Mas tudo isso assenta em pressupostos cognitivos, epistémicos e deliberativos: de como é que nós construímos a nossa preferências políticas, de como determinamos os factos que são comuns a todos – a base das nossas decisões coletivas, caso contrário não lhes reconhecemos legitimidade – e princípios deliberativos . Não é apenas quem tem mais votos ganha, é isso num contexto de um processo em que eu tenho direito de argumentar perante todos e no pressuposto de que vou ser ouvido e cada um procura convencer os outros. Se não acreditamos em nada disso, o wokismo é uma guerra civil em que ganha aquele que tem mais força e ponto. E isso é o contrário da democracia. Schumpeter dizia que a democracia não garante necessariamente as melhores decisões, mas as mais legítimas, aquelas mais susceptíveis de gerar apoio social.

Voltando ao populismo. Em junho teremos europeias. Prevê alterações ao nível da União Europeia?
Podem acontecer… Eu não estou ainda tão convencido de que vão ser alterações assim tão significativas, acho que os partidos mais moderados – PPE, PSE e Liberais, os três grandes grupos políticos – continuarão a ter maioria parlamentar, logo a assegurar a liderança das principais instituições. Mas aquilo a que temos assistido é, sobretudo no Conselho, onde as decisões exigem unanimidade, a uma multiplicação de governos com uma estratégia – não são apenas posições mais conservadoras ou mais radicais, mas posições contrárias ao próprio processo de integração – de bloqueio do próprio processo, de responsabilização da União Europeia. Com objetivo de tornar a UE no bode expiatório até dos seus próprios problemas nacionais. E cada vez mais isso coloca problemas fundamentais. Como a UE se deve organizar para não estar prisioneira desses interesses radicais. E não é fácil a resposta a isso.

Sobretudo com o alargamento…
Porque as mesmas condições que estão a deteriorar o funcionamento da UE e que exigem reformas profundas impedem essa reforma da UE, porque ela também depende do acordo de todos os Estados. Temos de encontrar uma forma de alterar isto, se não vamos entrar num ciclo vicioso do qual dificilmente sairemos. Há declarações recentes de Mario Draghi – de quem se fala como possível presidente da Comissão Europeia, e seria um bom presidente, ainda que tenha dúvidas que ele queira – que alertam para a necessidade dessa reforma profunda. Até porque os pressupostos em que o projeto de integração europeia funcionou muitos anos estão em causa.

Por exemplo?
A proteção na Defesa por parte dos EUA – Biden repôs um bocadinho essa relação forte com a Europa e essa garantia de segurança, mas ela já vinha sendo diminuída desde Obama e Trump acentuou isso. Por outro lado, a ideia de um mercado global e em que a CE é fundamental para as economias exportadoras da Europa, que têm sido a locomotiva da Europa, como a Alemanha, também está em causa com a evolução da China. Ao mesmo tempo, assistimos a uma terceira circunstância, uma erosão do funcionamento do mercado interno, com a multiplicação de auxílios de Estado dos países mais ricos, que usaram o que foi autorizado na sequência da pandemia para normalizar certo tipo de apoios a certas empresas, distorcendo a concorrência e o funcionamento do mercado interno.

Havendo eleições nos EUA que podem repor Trump presidente e com todos os reequilíbrios geopolíticos e geoeconómicos a que assistimos, coma própria Europa em transformação – com digitalização, reindustrialização e uma agenda verde muito ambiciosa – que futuro antevê para a UE?
Há três aspetos fundamentais e qualquer deles é complicado. O primeiro: a Europa necessita de se reformar institucionalmente para conseguir agir de forma eficaz. Neste momento está prisioneira dos seus próprios processos de decisão e isso cria o tal ciclo vicioso – mas não é fácil, porque o que traz as dificuldades de funcionamento é também o que dificulta alterar as regras que criam essas dificuldades. Em segundo, a Europa precisa de aumentar a sua capacidade orçamental – já apresentei isso há anos num estudo – e creio que a melhor forma de o fazer é mudar a estrutura de financiamento, que hoje assenta sobretudo em transferências dos orçamentos nacionais, por isso tudo o que a UE gasta é visto como redistribuição, ou seja, os ricos a dar aos mais pobres. E isso contamina e vicia todo o debate sobre a capacidade orçamental.

Vimo-lo nas crises financeiras.
E por isso é que eu já propus que o primeiro passo fundamental seria mudar a estrutura de financiamento, para ter recursos próprios diretos, vindos da atividade económica.

Impostos europeus?
Eu não gosto dessa expressão, porque é logo visto como uma coisa má. Na realidade, a Europa já é financiada por impostos pagos a nível nacional, que depois vão para o orçamento europeu. Mas a estrutura desses impostos é que devia mudar, até permitindo a redução desses impostos a nível nacional e clarificando os associados à atividade económica europeia.

Tais como?
Sobre as grandes plataformas digitais, que os Estados não conseguem tributar. Temos hoje um desafio grande ao nível do sistema fiscal dos próprios Estados e vamos ter de repensar de forma substancial como é que estamos a tributar. Nós tributamos cada vez mais as pessoas, o rendimento do trabalho, e isso é brutal porque temos dificuldade em tributar outro tipo de de rendimentos numa economia cada vez mais global. Devíamos diminuir os impostos sobre as pessoas e encontrar formas de tributar a atividade económica que hoje escapa a qualquer tipo de tributação.

Como as big tech.
Sim, as tecnológicas pagam uma fatia de impostos muito mais baixa. Aliás, fala-se muito do aumento das desigualdades mas há muitas dimensões em que a desigualdade não tem aumentado, pelo contrário, tem diminuído; o que tem crescido é relativamente à camada muito de topo e isso tem muito que ver com esta nova economia digital em que o valor é cada vez mais concentrado no detentor da propriedade intelectual, ao contrário da economia tradicional, que distribuía muito mais valor em toda a cadeia de produção. Por outro lado, este valor, depois escapa à tributação dos Estados em larga medida. Ora a UE devia servir precisamente para fazer isso e isso devia servir para financiar o orçamento da UE. Por isso, devíamos repensar o sistema fiscal e a tributação no seu todo, diminuindo boa parte da tributação que existe nos Estados e criando tributação mais eficaz sobre os rendimentos que escapam, nesta nova economia, e que podiam servir para financiar o orçamento europeu. O mesmo vale para os impostos ambientais.

E o terceiro ponto?
O terceiro aspeto que me parece fundamental na relação da UE com os seus Estados-membros são os fundos europeus. Eu tenho defendido muito – até na questão da condicionalidade relativamente ao Estado de direito que ainda agora está em causa. Para mim, é um absurdo a UE intrometer-se em condicionalismos de políticas públicas concretas dos Estados-membros, que nem tem capacidade para avaliar nos seus efeitos específicos, se vão ser bons ou maus, nem capacidade para monitorizar a contratualização de objetivos de política pública dos Estados que depois não consegue monitorizar de forma eficaz que muitas vezes os Estados membros não cumprem e depois não não, já não têm força nem a vontade política do do dos sancionar e devia substituir isso por uma condicionalidade institucional, ou seja. Deveria sobretudo usar OOO financiamento que dá aos seus Estados membros estar associado a uma condicionalidade quanto à qualidade das Instituições que vai gerir esse dinheiro, porque nós sabemos que cada vez mais que é a qualidade das instituições e isso é o que eu tenho.

Não interessa se gastamos tudo, o que importa é o que se retira do financiamento usado.
Exato. É na qualidade das instituições que vão decidir como o dinheiro vai ser gasto que a UE devia concentrar-se, porque é o que o assegura e está a montante do desenvolvimento económico, do crescimento e do desenvolvimento social dos países.

Temos duas guerras na Europa. Não devíamos também estar mais preparados na área de Defesa?
A Europa tem de reforçar essa componente. Para conseguirmos fazer estas reformas de que eu falava, nós vamos ter de fazer um big deal e há duas formas de conseguir acordos: uma é reduzir ao mínimo dominador comum – que neste contexto de problemas não era viável –, a outra é alargar o número de matérias que incluímos no acordo para poder fazer trocas; por exemplo, dizendo, vamos introduzir esta matéria que é do vosso interesse para conseguirmos acordo sobre algo que têm recusado. E há muitos Estados, sobretudo os do Leste, que são reticentes a determinado tipo de reformas e poderiam ver com bons olhos um reforço da capacidade de Defesa europeia, dada a ameaça que ainda sentem da Rússia. E além de a Defesa poder ser parte de um grande acordo europeu, vai ser crescentemente importante face àquilo que, infelizmente, são as tendências geopolíticas atuais, que trazem ameaças crescentes ao mundo e que têm tido no centro os EUA. Mas esse reforço da Defesa tem de ser feito sempre em ligação com a NATO e com os EUA, é fundamental – até porque a Europa não tem capacidade suficiente para se defender a si própria.

Quais são os grandes eventos que vão marcar o próximo ano?
Uma das coisas que temos visto nestes anos é que têm acontecido grandes surpresas… Portanto, temos de estar preparados para coisas que não conseguimos prever. Dos previsíveis, as eleições nos EUA – até pelo papel que têm no mundo – e o desenrolar dos dois grandes conflitos que neste momento têm um impacto geopolítico enorme: a guerra na Ucrânia e o conflito na Palestina, que envolve Israel, o Hamas os palestinianos e outros atores regionais. Como se vai desenvolver, acho que ninguém tem capacidade de prever. Assistimos a um acumular de tensão – o que pode significar um agravamento e consequências ainda mais negativas para todo o mundo, mas também levar a um risco tão elevado que resulte num incentivo a um grande acordo entre esses atores. Pode ser wishful thinking… Por último, há que ver a evolução da China, quer económica – que tem vindo a deteriorar-se e pode ter impacto no mundo – quer política, porque pode tornar-se mais nacionalista ou autoritária, pode evoluir no sentido maoísta ou voltar a um percurso mais próximo da filosofia de Deng Xiaoping… vamos ver.

Este novo posicionamento de Estados que são parceiros de movimentos terroristas como Hamas, e que se têm mobilizado no conflito com Israel, não é preocupante?
Sim, mas ao mesmo tempo nós assistimos a outros países árabes a contrabalançar, isso… Agora, há risco é que aquilo se transforme num conflito regional ainda mais alargado. Vejo com muita preocupação informações, por exemplo, de que o Irão pode estar a desenvolver o seu risco de capacidade nuclear… Mas sendo extremamente crítico do ataque e entendendo a dureza da reação de Israel, acho que Israel está a cometer um erro no excesso da reação. Tinha ali uma hipótese de ganhar boa vontade do mundo inteiro e já a perdeu, neste momento, pela perceção pública de que há muitos excessos na resposta israelita. Que já começa a ter também repercussões internas em Israel, porque há israelitas que têm noção disto e sendo Israel – que é a grande vantagem naquela zona – uma democracia a tensão entre muitos que queriam remover Netanyahu já se sente… mas também muitos sentem que não o podem fazer numa altura de conflito militar – e ao mesmo tempo, perversamente, penso que Netanyahu, tendo consciência disso, quase que está a agravar o conflito, porque sabe que é a melhor garantia de preservação do seu poder. O que é terrível, portanto, não sei como é que se conseguirá resolver essa questão. Se quem estivesse na liderança de Israel fosse mais moderado, eu acho que isto até poderia ser uma oportunidade para uma solução mais duradoura do conflito palestiniano. E penso que os americanos têm noção disso.

E se Trump vencer?
Será pior, desde logo, porque Trump não oferece racionalidade à política – não digo que seja necessariamente irracional, falo de racionalidade política, ou seja, de existir uma previsibilidade, uma certa segurança da política americana, de permanecer alinhada com princípios estruturais e clássicos da política norte-americana. Ora, Trump é sobretudo um enorme narcisista. É como narcisista, ele vai ser racional do ponto de vista de potenciar e fazer aquilo que vai alimentar o seu ego em qualquer momento. Ora isso conduz a uma política instrumentalizada aos interesses puramente pessoais, egocêntricos, desta pessoa.

Para terminar, dois protagonistas: Passos Coelho e António Costa. O que é que vai ser o futuro deles?
Depende da vontade pessoal e política deles, se têm vontade ainda de fazer política e em que condições. Ou seja, depende de terem essa vontade e das circunstâncias objetivas em redor, se lhes vão permitir a oportunidade de fazer política ou não. Por exemplo, no caso de António Costa, eu também não acredito que se venha a encontrar algo de responsabilidade criminal, ficaria surpreendido porque não me parece o tipo de pessoa que se envolvesse em questões desse género, mas paradoxalmente, no momento em que isso desaparecer pode ser que volte a existir foco sobre a sua responsabilidade política. E essa é grande e não se esgota na responsabilidade enquanto governante, como resultado das suas políticas – dessas, ele fará uma leitura, eu outra. É a sua responsabilidade política por comportamentos que quase normalizou. Aliás, o risco de reduzir a saída de António Costa ao famoso parágrafo é normalizar uma série de comportamentos que não podem nem devem sê-lo, porque estão profundamente errados – de conflitos de interesse, práticas pouco éticas… Os tribunais avaliarão se têm relevância criminal, mas que são eticamente reprováveis e politicamente indesejáveis, parece-me claro. Não podem ser tidos como normais.

Não é o famoso parágrafo…
Quando o inquérito se concluir no seu tempo próprio – condição que ele estabeleceu para si –, Costa poderá de novo ter ambições políticas, mas passará a estar sujeito a uma discussão que ainda não houve sobre a sua responsabilidade política. O parágrafo, que ele assumiu como o ónus que o impede hoje de fazer política, protegeu-o da responsabilidade política de todas as outras dimensões. No momento em que o parágrafo desaparecer, ele considera que pode voltar à política, mas terá, na minha opinião, de ser responsabilizado e pagar um preço por tudo o resto – porque foi ele que trouxe essas pessoas para os círculos de poder, que os protegeu e aceitou aquelas práticas.

Isso poderá lesá-lo.
Não o impede de voltar à política, mas poderá ter de pagar um preço. Embora em Portugal… O novo líder do PS é bom exemplo disso, passado poucos meses, em vez de ser penalizado está a ser compensado. Eu esperaria que houvesse pelo menos um período de nojo… de purgatório político, mas pelos visto basta muito pouco.

E Passos Coelho?
Aí a situação é diferente, porque as circunstâncias terão que ver com o PSD, que tem um líder, e se ele vencer as eleições, como espero, essa situação nem se colocará. Se vier a colocar-se uma questão de liderança, então o próprio PPC terá de ver se deseja voltar e se acha que as condições do país são propícias a um perfil de liderança como o que ele oferece. Ele próprio e o partido terão de o julgar. Eu sou um grande admirador dele, acharei sempre que será um grande primeiro-ministro. O que não quer dizer que em todas as circunstâncias políticas ele fosse capaz de convencer o país disso. Mas isso só se reabrisse a liderança e eu acho pouco provável no curto prazo. Acho que Montenegro vai vencer e ficar na liderança. Depois, há outras posições, mas não tem manifestado grande interesse por exemplo na PR e em posições internacionais.

E como vê o caminho que André Ventura tem estado a fazer?
Ele é seguramente um político inteligente, acho que todos o reconhecem – ele foi meu aluno e eu reconheço-o, mas gostaria que usasse a inteligência na defesa de outro tipo de ideias. Fui desde o início muito claro: o PSD não deve ter acordos com o Chega. E quanto mais cedo o esclarecesse menos suscetível estaria a estes ataques de ambiguidade. As posições políticas que Ventura e o Chega têm assumido exprimem uma visão do Estado e do país contrária ao que deve ser a reforma que o PSD deve defender. É um partido estatizante – defende a nacionalização da TAP, por exemplo –, de concentração de poder. Eu acho que, para romper com as práticas de governação do PS, é preciso mecanismos de separação de poderes claros e respeitar reguladores independentes. Ventura só defende a separação a propósito de processos judiciais, mas tudo quanto o partido defende e é prática dos partidos populistas é pôr em causa a separação de poderes. Porque tudo isso é visto como constrangimento ao seu poder. Dizem, nós defendemos o povo e todos esses mecanismos independentes é ir contra a vontade do povo.

Não se distingue muito da personalidade de Pedro Nuno Santos.
Ele não defende isso… não acho que seja um populista. Mas alguém que apresenta o exercício da política da forma que ele usa facilmente cai em tiques autoritários contrários a esta separação de poderes e de escrutínio. Costa já tinha esses tiques… ele disse que os reguladores independentes eram antidemocráticos! Pedro Nuno é como ele mas de forma mais grave porque muitas vezes essas pessoas nem têm a noção, não se veem como ditatoriais, acham que estão a remover os obstáculos à vontade política que eles têm e que é o melhor para o país. Mas isso é confundir a vontade pessoal com o que deve guiar os processos de decisão pública, que nunca devem ser confundidos com vontades pessoais. Isso é o que me preocupa em Pedro Nuno Santos: acha que faz e acontece porque tem vontade pessoal +para isso e não porque coloca de pé os mecanismos e processos de decisão com qualidade adequados para garantir boas decisões públicas e céleres. Não é voluntarismo, isso é perigosíssimo em processos de decisão que são públicos e coletivos.

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 30 de dezembro