A frase é clara e corresponde inteiramente à realidade. “Estamos a lidar com a vida das pessoas. Não podemos pura e simplesmente continuar a ser os médicos mais mal pagos da Europa”, disse Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), à saída da última ronda de negociações entre o governo e os médicos, que terá uma nova jornada neste sábado, 4 de novembro, e que pode redundar num acordo.

Segundo os dados da Federação Europeia de Médicos Assalariados (FEMS), liderada pelo português João de Deus, os médicos portugueses estão mesmo na cauda da Europa em paridade de poder de compra. Como se pode ver no quadro ao lado, um médico interno português tem apenas atrás de si a Eslováquia e a Espanha. Mas em relação a um médico especialista com 10 a 25 anos de especialidade o caso ainda é pior, pois só vê pelo retrovisor a Croácia e a Polónia e aufere, sensivelmente, um terço do rendimento de um médico com as mesmas qualificações a trabalhar nos Países Baixos. O mesmo se passa com um especialista com mais de 25 anos de especialidade, com a agravante de a Polónia ultrapassar Portugal neste ranking muito específico.

Posto isto, não há dúvidas: Portugal está mesmo na zona (muito) baixa de uma tabela que qualquer país gostaria de liderar .
“As novas gerações com os novos programas de Erasmus e a mobilidade têm uma disponibilidade maior para serem atraídos por sistemas de saúde que estão com imensa falta de profissionais, porque isto não é um problema só português. E naturalmente que as condições que oferecem, em paridade de poder de compra, são muito superiores”, explica ao NOVO Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

E dá exemplos concretos. “Na Suíça e na Grã Bretanha, para além desses valores, as entidades empregadoras comprometem-se a apoiar a formação, como idas a congressos. E esse é mais um factor de atração. Este fenómeno de saída de portugueses qualificados para o estrangeiro não é exclusivamente da área médica, mas é, especialmente, importante nesta profissão porque a nossa formação é considerada de grande qualidade, das melhores da Europa.”

Faseamento é tolerável
Para Jorge Roque da Cunha, “o governo parece não entender que o mundo mudou, não só em termos de salários, mas também em termos da própria carga fiscal, porque, na generalidade, e tirando alguns países nórdicos, a carga fiscal em Portugal é superior à dos outros países”.

A exigência dos sindicatos é clara: aumento de 30% no salário bruto, o que daria para um médico com 40 horas de trabalho semanais um acréscimo de seis euros – passaria, números redondos, dos 16 para os 22 por hora. Ora bem, o governo não vai além dos 5,1%, isto apesar de o ministro Manuel Pizarro demonstrar confiança num acordo já este sábado, 4 de novembro. E isto sem falar nos retroativos, pois, ao que o NOVO apurou, os sindicatos estão dispostos a deixar cair essa reivindicação, tendo como ponto de partida o início das negociações há 18 meses, no ano de 2022.

Questões negligenciadas
E mesmo no que diz respeito aos 30% de aumento exigidos pelos sindicatos há alguma tolerância no sentido de o mesmo ser feito faseadamente. Falta o mais importante: o acordo entre as partes. “Neste momento, a questão essencial que está em cima da mesa é a salarial. Depois, caso cheguemos a acordo, irá ficar em ata que, num prazo relativamente curto, teremos de tratar de aspetos essenciais que nos últimos anos têm sido negligenciados, como as folgas, a flexibilidade, horários parciais, possibilidade de melhor acompanhamento de crianças até 12 anos. Situações que têm sido ocultadas. Enquanto não tiverem uma vida normal os médicos tenderão a sair para o privado, para o estrangeiro e, naturalmente, a não ficar no Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, adverte Jorge Roque da Cunha, que enumera as vantagens do privado: “Para além de pagar um pouquinho mais, tem nuances importantes; a tal flexibilidade de horários, que permite, muitas vezes, os médicos fazerem uma coisa extraordinária que é levar e/ou buscar os filhos à escola. No SNS só no ano passado houve 5,5 milhões de horas extraordinárias. A carga de trabalho é de tal ordem que começam a ser negligenciados todos os outros aspetos fundamentais.”

Dando o exemplo inglês, Jorge Roque da Cunha recorda que em Inglaterra “há um período de um ano de adaptação, depois começa-se com 10 horas assistenciais, passa para 20 e depois, no máximo, 35 horas”.

O também médico considera que em Inglaterra “já perceberam que sem médicos dificilmente um sistema de saúde consegue funcionar e sem médicos motivados o sistema também não funciona, com descontentes, frustrados e cansados muito menos”.

Receio da função pública
Para Jorge Roque da Cunha, a intransigência do governo em não mexer no salário-base dos médicos deve-se a potenciais “perturbações no funcionamento e nas exigências da função pública”. Contudo, faz questão de puxar a cassete atrás e de lembrar o que ainda pode vir aí: “Se nada for feito, não é novembro, é novembro, dezembro e no próximo ano a situação piorará em vez de melhorar. Temos feito sucessivos alertas e os sinais estão aí. As demissões dos chefes de equipa de urgência que se mantêm, como os do Hospital de Loures, Hospital Garcia da Orta, Hospital Fernando da Fonseca, que estão demissionários há mais de um ano e, portanto, os alertas estão aí. Se nada for feito, a situação irá piorar em vez de melhorar”, sustenta.

400/500 horas nunca mais
Ainda assim, e segundo o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), mesmo que seja atingido um acordo “não irá impedir, com toda a certeza”, a saída de médicos do SNS para o privado e para o estrangeiro. No entanto, acrescenta, “poderá mitigar” essa debandada. Roque da Cunha avisa ainda que “vai ser muito difícil, havendo entendimento ou não, haver uma normalidade em relação aos médicos que trabalham no SNS”, porque “nunca mais vai ser possível os médicos fazerem 400/500 horas extraordinárias para garantirem o funcionamento dos serviços”.

O sindicalista adianta: “Se já se percebeu que isso é possível durante o período da pandemia, numa situação de guerra, praticamente, se isso se arrastar durante os anos, mais cedo do que tarde, a possibilidade do erro médico e problemas de burnout irão com certeza aumentar. Os médicos mais novos olham para os mais experientes e veem que estes últimos não têm vida. E é preciso ter uma vida para além da profissão”. Roque da Cunha lembra, aliás, que “qualquer profissional tem que ter uma vida para além da profissão que exerce, caso contrário não a consegue desempenhar com a devida eficácia”.

Explicar às Finanças
Questionado sobre o empenho do ministro da Saúde, Manuel Pizarro, o secretário-geral do SIM mostra alguma condescendência para com o governante. “Nestas coisas nós dizemos que a responsabilidade é do governo. O ministro da Saúde tradicionalmente tem dificuldade em explicar às Finanças que, se investir agora, irá poupar no futuro. Não só em horas extraordinárias como também em prestadores de serviço que o ano passado chegaram aos 160 milhões de euros e em agosto deste ano já atingiram os 140 milhões de euros”.

Portanto, avisa o dirigente sindical: “É uma questão de investir agora para poupar no futuro”.

Situação de chantagem
Já sobre os médicos provenientes da América Latina que o governo decidiu contratar para suprimir as vagas em aberto no SNS, Roque da Cunha é claro: “Isso parece estranho, desinvestir nos médicos em Portugal e a contratação a um governo ditatorial como o de Cuba, porque os médicos não são contratados diretamente, são contratados através do governo. O pagamento é feito ao governo cubano”.
O secretário-geral do SIM alerta que “os médicos que vêm para Portugal ficam com um valor muito abaixo do salário que recebem e depois é o governo cubano que, para além de ficar com a sua comissão, distribui às famílias”. E conclui que esta é “uma situação de chantagem perfeitamente inqualificável da nossa parte”.

Roque da Cunha remata: “Qualquer médico da União Europeia pode vir para Portugal desde que tenha a prova da língua, exatamente aquilo que nós temos de fazer quando vamos para países onde os cursos são reconhecidos. Em relação aos médicos do espaço extracomunitário, têm que ter as mesmas regras. Contratar a governos estrangeiros, nomeadamente a Cuba, desde sempre achámos que é perfeitamente inqualificável e lamentável”.