O Governo quer alargar as normas anticorrupção aos partidos políticos, nomeadamente através da criminalização do enriquecimento ilícito, da regulamentação do lóbi ou da fixação de um prazo máximo de 72 horas para que um arguido detido conheça as medidas de coação, abrindo a possibilidade de ser ouvido por mais do que um juiz.

Para João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, considera que Programa de Governo para o combate à corrupção “não é revolucionário e isso, parecendo que não, é uma coisa boa”.

“O Programa do Governo para o combate à corrupção não é revolucionário e isso, parecendo que não, é uma coisa boa”, comenta. “Há anos que se proclamam grandes medidas contra a corrupção, mas é a tentativa de resolver tudo com grandes leis que tem impedido progressos concretos”, acrescenta.

Passos positivos na regulamentação do lóbi

O dirigente associativo critica os avanços e recuos na regulação do lóbi, processo que dura há quase 10 anos, mas vê no Programa de Governo hoje apresentado alguns passos positivos nesse sentido.

“O Programa do Governo tem uma visão clara e detalhada da regulação, acompanhada de mecanismos de transparência que permitiriam um melhor escrutínio dos processos de decisão do Estado e a deteção de relações demasiado próximas entre lóbistas e decisores, como, por exemplo, a pegada legislativa do Governo”, comenta.

Outro ponto positivo é a revisão da “constelação de microorganismos que foram sendo criados nos últimos anos para o combate à corrupção”.

“Criámos uma profusão de entidades demasiado pequenas, descoordenadas e sem visão de conjunto, que só servem para consumir recursos e garantir a ineficácia”, critica. “Estruturas como o Mecanismo Nacional Anticorrupção, a Entidade da Transparência, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos ou a Comissão de Coordenação de Políticas de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo deviam estar num único organismo especializado, com autonomia, poderes e meios”, aponta.

Neste âmbito, duvida que a revisão proposta pelo Governo chegue a bom porto, uma vez que “parece pouco provável que o PS concorde com a sua extinção ou fusão”, por muitas delas terem sido criadas durante a governação socialista.

Outras propostas que João Paulo Batalha realça, e que podem ser “interessantes, se forem bem implementadas”, passam pela criação de um Scoring de Ética e Integridade para as organizações públicas ou a valorização, em concursos públicos, de entidades que tenham implementada a Norma ISO 37001 de mecanismos antissuborno.

“Dado que, na área da Administração Pública, o Governo promete reforçar a autonomia e responsabilização das entidades, com prémios aos bons dirigentes públicos, promover estas boas práticas pode ser muito útil, por comparação a modelos de compliance, como os meros planos de gestão de risco, que pouco mais têm sido do que incentivos à produção de papel”, considera.

No caso de estas medidas agora apresentadas falharem, o dirigente aponta que “é importante que não falhe pelo menos o compromisso assumido de implementar as recomendações de organismos internacionais, como o GRECO”.

“Portugal falha sistematicamente na implementação das medidas anticorrupção propostas pelo Conselho da Europa e isso não é admissível. Na verdade, precisamos de inventar muito pouco”, lamenta. “Espero que o Governo crie mecanismos de implementação e medição em tempo real dos avanços neste campo. Caso contrário, dificilmente deixaremos de ser um país numa situação de inércia crónica neste campo”.

Criminalização do enriquecimento ilícito

Rita Júdice propõe, no programa para a Justiça, recuperar a criminalização do enriquecimento ilícito, que tem falhado pela falta de consenso político ou pelas reservas levantadas pelo Tribunal Constitucional. João Paulo Batalha não acredita, por isso, que seja desta que a proposta finalmente avança.

“Não tenho muita fé nas propostas legislativas quanto à área da repressão. A principal promessa, de criminalizar o enriquecimento ilícito, é uma novela antiga que tem chumbado na falta de consenso político ou nas reservas do Tribunal Constitucional”, lamenta. “Mesmo que se encontre uma forma jurídica que não levante questões de constitucionalidade, a minha dúvida é se a nossa cultura judicial conservadora dará alguma utilidade a esta norma, se ela vier a existir. Duvido muito, a julgar pela demora que temos tido em conseguir condenações ao abrigo das novas tipologias penais que se têm criado nos últimos anos, como o recebimento indevido de vantagem ou mesmo o tráfico de influências”

João Paulo Batalha tem também muitas dúvidas quanto às questões de direito premial – ou delação premiada –, uma vez que os mecanismos previstos na lei são muito ineficientes.

“O princípio da colaboração premiada já está no Código Penal. Só que definido em termos tais que o tornam impraticável. A questão é saber se acreditamos a sério nisso, e queremos garantir que esses mecanismos possam funcionar, ou se é só para inglês ver. Porque, nesse caso, mais vale revogar as normas que já existem”, aponta.

O dirigente da Frente Cívica aponta também à “grande resistência cultural” em desenvolvê-los, “desde logo no que isso implica de aumentar os poderes de decisão do Ministério Público”.

“Se um acordo entre o Ministério Público e um arguido tiver de ser ratificado por um juiz, acaba-se com o incentivo a essa negociação, porque as pessoas que se sentam à mesa – Ministério Público e arguido – não têm o poder de decisão que viabilize a colaboração”, explica. “Ninguém se chegará à frente para colaborar com uma investigação, se essa colaboração puder ser depois chumbada por um juiz”, acrescenta.

Educação contra a corrupção

A educação contra a corrupção, já prevista na Estratégia Nacional Anticorrupção aprovada pelo governo de António Costa, é algo que também merece reparos da Frente Cívica, que não vê “o que se ganha em falar deste fenómeno a crianças e jovens do ensino obrigatório”.

“Acho que se estabeleceu um consenso político meio desnorteado de que é preciso falar da corrupção nas escolas. A corrupção não existe por falha em moralizar as criancinhas contra ela. Existe porque os mecanismos de escrutínio, incluindo o escrutínio cívico, são frágeis ou inexistentes”, explica. “Seria muito mais útil, a todos os níveis, que a escola ensinasse melhor como se organiza o Estado, que instituições o compõem, como funcionam os processos legislativos e decisórios na Assembleia da República, no Governo e no Parlamento Europeu”.

“Os cidadãos têm um conhecimento muito limitado e superficial sobre o modo como o seu país se organiza e isso torna-nos mais vulneráveis a abusos. Cobrir estas lacunas de conhecimento cívico básico parece-me muito mais útil e produtivo para formar cidadãos atentos e interventivos do que estar a falar, em abstracto, dos malefícios da corrupção”, termina.