“Posso dizer que um dos crimes que estavam a ser programados no Brasil era o cometimento de um homicídio com laivos de demorado sofrimento de um mendigo, em que essas imagens iam ser transmitidas num ambiente cibernético e em que cada assistente pagaria uma quantia”, revelou esta sexta-feira Luís Neves, diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ), a propósito da detenção do jovem português de 17 anos que terá criado um grupo na plataforma Discord com ideais extremistas e violentos e no qual terá planeado três massacres em escolas no Brasil (um concretizado, em outubro de 2023, e outros dois abortados entretanto pela polícia brasileira), além do dito homicídio violento de um sem-abrigo – referido pelo diretor da PJ – que continuava a ser discutido e planeado em detalhe naquele canal online.

Nesse grupo, o jovem de Santa Maria da Feira e estudante do 11º ano de um curso técnico-profissional instigava e divulgava automutilação de meninas e a tortura e morte de animais (como a decapitação de um gato), partilhava e vendia pornografia infantil, difundia propaganda nazi e inúmeros conteúdos de caráter violento e sangrento. O rapaz, que ficou ontem em prisão preventiva depois de ter sido ouvido no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, é apontado como um dos cérebros de um ataque numa escola de Sapopemba, em São Paulo, que matou uma jovem de 17 anos (Giovanna Bezerra) e feriu outros três estudantes em outubro do ano passado.

O autor desse ataque, de nacionalidade brasileira, e à data com 15 anos, terá chegado a questionar naquele grupo online qual seria a melhor maneira de filmar os homicídios e, a posteriori, terá divulgado imagens do gorro e da arma utilizados no crime (um revólver de calibre 38). O jovem português que com ele comunicava tinha como hábito dar conselhos nesse grupo online “quanto ao  modus operandi e indumentária a envergar pelos demais intervenientes aquando da preparação e prática dos crimes”, através de “um ideário particularmente violento e extremista”.

O site brasileiro Metrópoles divulgou conversas do grupo do Discord criado pelo português, na altura do ataque na escola de São Paulo. O administrador do grupo ter-se-á queixado de o ataque ter feito “apenas” uma vítima mortal: “Mas porra, uma morte?? Nem 5? É só atirar.” Um dos participantes referiu: “Tem que respeitar que ele fez com uma gauchinha” e logo outro acrescentou: “difícil superar Columbine”, o famoso massacre numa escola dos EUA, a Columbine High School, em que dois alunos fortemente armados causaram a morte de 12 estudantes e um professor em abril de 1999.

Neste caso, a Polícia Judiciária trabalhou em conjunto com a Polícia Federal brasileira, numa luta contra o tempo, para evitar que fossem praticados outros crimes, já que haveria planos para matar um sem-abrigo de forma violenta e filmar esse homicídio em direto (podendo ser assistido a troco do pagamento de uma quantia) e de fazer mais dois ataques em escolas no Brasil, entretanto travados pelas detenções. “Foi muito curto o espaço de tempo”, que as polícias tiveram para investigar, declarou ontem Luís Neves em declarações aos jornalistas, acrescentando ter sido uma fase “penosa” e um “trabalho moroso e de filigrana” para os investigadores, pois sabiam que “enquanto não fosse identificado, enquanto não fosse posto termo a esta atividade, podiam ter acontecido outros crimes”. “A nossa colaboração com a Polícia Federal permitiu-nos inviabilizar a prática de outros crimes”, relatou.

O português, que fez 17 anos no mês de abril, e que agora ficará a aguardar o desenvolvimento do processo em prisão preventiva, foi indiciado por 12 crimes pelo Ministério Público: um crime de homicídio qualificado consumado, seis de homicídio qualificado tentado, instigação pública a um crime, apologia pública a um crime, um crime de associação criminosa e dois crimes de pornografia de menores. O inquérito está a cargo do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa.

De acordo com a investigação, o suspeito usaria muitas vezes imagens de meninas nuas ou em atos sexuais para as chantagear e obrigar a automutilarem-se com objetos cortantes e também terá divulgadas imagens de jovens a beberem detergente.

O seu advogado, Paulo Azevedo, falou de um jovem socialmente integrado e próximo da mãe que, no entanto, não saberia nada do que fazia durante todas as horas que passava à frente do computador. “A mãe tinha conhecimento de que o filho era um jovem que passava muito tempo na internet, fechado no quarto, mas obviamente não tinha conhecimento dos meandros das redes sociais que ele frequentava. Obviamente está triste e desiludida.” “Não vamos já crucificar este jovem na praça pública, que há dois anos não estaria aqui. Só fez 17 anos há duas semanas”, pediu o advogado.

Todos os ataques estavam a ser planeados no Brasil, país onde residia a maioria dos participantes no grupo. Ao que tudo indica, não haveria planos para Portugal. “É o único português neste momento identificado. Este jovem tinha uma capacidade de liderança enorme para conseguir movimentar outros jovens de idênticas idades, sobretudo brasileiros, no sentido de radicalizar outros, de se automutilarem, de cometerem crimes de massa e crimes de homicídio”, acrescentou Luís Neves.

De acordo com o comunicado da PJ sobre esta detenção, não está descartada a possibilidade de virem a ser feitas mais detenções. “Vamos identificar outros agentes deste grupo e outros agentes que cometem outros crimes com a mesma tipologia”, referiu ontem o diretor da PJ. A Europol também já foi acionada neste processo.

Há duas semanas foi detido um rapaz de 15 anos, no estado do Pará, no Brasil, por também pertencer a este grupo do Discord, e ter sido cúmplice do português no planeamento do ataque na escola de São Paulo.

A plataforma Discord cooperou com a investigação policial na descoberta dos autores dos crimes. A aplicação, muito popular entre os adeptos de videojogos e que também se tornou conhecida por perpetuar imagens e vídeos de pornografia de vingança (revenge porn), colabora com as autoridades sempre que são denunciadas atividades ilegais. Foi também este o canal usado por João Real, o estudante de Engenharia Informática de 19 anos julgado em 2023 por planear um massacre na Faculdade de Ciências de Lisboa em 2022 (por decisão do tribunal foi internado por dois anos e nove meses).