Como começou a polémica que deu origem ao processo do Chega contra Marcelo Rebelo de Sousa?

Dias antes do 25 de Abril, num jantar com jornalistas estrangeiros correspondentes em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa fez várias declarações polémicas. Uma delas foi sobre o seu entendimento de que Portugal deveria fazer reparações às ex-colónias, lembrando que os massacres coloniais tiveram custos. “Não é apenas pedir desculpa – devida, sem dúvida – por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é, às vezes, o que há de mais fácil: pede-se desculpa, vira-se as costas e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado”, afirmou nesse jantar, a 23 de abril.

Dias depois, em declarações aos jornalistas, o Presidente da República reiterou que o país não deveria varrer para debaixo do tapete o seu passado colonial. Insistiu que existiam várias formas de reparação, que algumas, como o perdão de dívida, já eram feitas atualmente, e que estas deveriam ser feitas com “bom senso”, num processo conduzido pelo governo: “Não podemos meter isto para debaixo do tapete. Temos obrigação de liderar.”

Como reagiu o governo?

O governo discordou e, em comunicado, anunciou que “não estava em causa nenhum processo de reparação”: “A propósito da questão da reparação a esses Estados e aos seus povos pelo passado colonial do Estado português, importa sublinhar que o governo atual se pauta pela mesma linha dos governos anteriores. Não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações específicas com esse propósito.” Apesar disso, o executivo reforçou que o Estado português tinha, ainda assim, atitudes e programas de cooperação de reconhecimento da verdade histórica “com isenção e imparcialidade”, dando como exemplos “a assunção do contributo decisivo da luta desses povos pela sua independência para o fim da ditadura ou o pedido de desculpas pelo trágico massacre de Wiriyamu”, bem como o financiamento do Museu da Luta de Libertação Nacional, em Angola, a transformação do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde (Museu da Resistência), e a recuperação da rampa dos escravos na Ilha de Moçambique.

Como reagiram as ex-colónias?

São Tomé e Príncipe anunciou que iria avançar com um pedido de reparação. A ministra da Cultura do Brasil diz que “não há como negar a necessidade de uma reparação” de Portugal pelo período colonial. O presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, pediu serenidade no debate sobre eventuais reparações.

Como reagiu o Chega?

O partido de André Ventura apresentou um voto formal de condenação a Marcelo por entender que as declarações do Presidente da República representavam “indubitavelmente uma traição ao povo português e à sua história”. Mas não foi acompanhado pelos outros partidos. Depois, cavalgando a onda, o Chega anunciou, a 5 de maio, que o seu grupo parlamentar iria reunir-se com um grupo de juristas e professores de Direito a fim de avaliar se havia consistência jurídica para avançar com uma ação criminal inédita contra o Presidente por “traição à pátria”.

O que é isso de traição à pátria? Está criminalizado? Qual a pena?

Há um crime de traição à pátria previsto no Código Penal e no Código de Justiça Militar. O Código Penal, no artigo 308.º, estabelece que comete o crime de traição à pátria “aquele que, por meio de usurpação ou abuso de funções de soberania”, “tentar separar da Mãe-Pátria ou entregar a país estrangeiro ou submeter à soberania estrangeira todo o território português ou parte dele” ou “ofender ou puser em perigo a independência do país”.

Quem o fizer é punido com pena de prisão de dez a 20 anos.

A Constituição define, no artigo 130.º, quais as responsabilidades criminais do Presidente da República e quais as razões para a sua destituição do cargo. Nesse artigo está estipulado que o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça por crimes praticados no exercício das suas funções. Define-se ainda que a iniciativa do processo “cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções”.

O Chega só conseguiu desencadear este processo porque tem mais de um quinto dos lugares do parlamento. Mas seriam necessários dois terços (54 deputados) para aprovar esta iniciativa parlamentar. Embora qualquer cidadão possa apresentar uma queixa-crime por “traição à pátria”, para que esse processo avance especificamente contra um Presidente da República é necessária a participação de dois terços do parlamento para avançar com uma queixa junto do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça.
Uma condenação por crimes praticados no exercício de funções implicaria a destituição do cargo e a impossibilidade de reeleição.

O que diz Marcelo Rebelo de Sousa sobre a iniciativa do Chega? 

O Presidente tem desvalorizado a ação e declarações do Chega, respondendo que é a democracia a funcionar: “A democracia é isso. Em democracia, em tempo eleitoral, fora de tempo eleitoral, os partidos podem tomar iniciativas. É, naturalmente, a democracia.” Entretanto, acrescentou também ter direito à sua liberdade de expressão, como um cidadão comum. “É uma das características da democracia”, insiste.

Qual foi a decisão final do Chega? E com que argumentos?

A 7 de maio, André Ventura anunciou que o partido iria mesmo avançar com um processo contra Marcelo Rebelo de Sousa por “traição ao seu país e à Constituição”: “Deixou de representar o interesse nacional e passou a representar o interesse de outros Estados.” Ventura diz que há portugueses “que se sentiram agredidos pelas palavras do Presidente da República” por este ter promovido aquilo a que chama “autorresponsabilização dos portugueses”:  “Nunca um chefe de Estado português, em 900 anos de História, decidiu fazer um exercício de autorresponsabilização dos seus cidadãos”, reiterou, acrescentando: “O Presidente da República deixou de representar o interesse nacional e passou a representar o interesse de outros Estados. A gravidade aumenta quando, após as suas palavras, dois Estados, pelo menos, já pediram a reparação a Portugal.”

O presidente do Chega indicou que o líder parlamentar, Pedro Pinto, vai transmitir a decisão do partido ao presidente da Assembleia da República, “nos termos do artigo 130.º da Constituição”, para que, “visto nunca ter sido aplicado, se tomem as diligências necessárias que esta Assembleia terá de tomar nos próximos dias para que o processo tenha avanço, para que seja analisada a acusação e para que se chegue a um debate e a uma discussão em plenário”.

E indicou que “agora vai ser formada uma comissão” para analisar “juridicamente a questão” e os “serviços da Assembleia serão chamados a pronunciar-se também sobre isso”.

O que é expetável que aconteça agora?

Na conferência de líderes desta quarta-feira, 8 de maio, ficou decidido “constituir uma comissão parlamentar especial” com o objetivo de avaliar este processo que o Chega pretende mover contra o PR.

São necessários 54 votos a favor da iniciativa. Como o Chega tem 50 deputados, está dependente de votos favoráveis de representantes de outros partidos.

É improvável que tal aconteça, uma vez que todos os outros partidos já vieram condenar a atitude do Chega.