É o efeito das portas giratórias, que já deu frutos amargos, como o pesadelo de Alexandra Reis na TAP e à inviabilização da vontade de António Costa de sair sem o seu governo cair, chamando o ex-ministro das Finanças, Mário Centeno, nomeado governador do Banco de Portugal, a primeiro-ministro. Mas aqui num ciclo muito mais curto e que, creem os agricultores, pode levar à inviabilização de pagamentos. É nisso que acredita o Movimento Agricultores Portugueses, que lançou o alerta em denúncias enviadas ao Tribunal de Contas e à Inspeção Geral de Finanças, pedindo esclarecimentos sobre a legalidade dos pagamentos feitos pelo Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas (IFAP), a que o NOVO teve acesso.

Os agricultores querem que se esclareça se os pagamentos dos subsídios do IFAP estão a ser feitos com legalidade, dada a situação “insólita” de que quem gizou a missão desse instituto, do lado do governo, ser precisamente a mesma pessoa que aceitou a dita missão, como presidente da instituição. Ou mais simplesmente, o ex-secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, Rui Martinho, único candidato a presidente do IFAP apenas seis meses depois de deixar o lugar de governante… onde desenhara o concurso e seus pressupostos (e que ficou sem candidatos à primeira volta).

No processo da CReSAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública), está publicada a “abertura de procedimento concursal de recrutamento para o cargo de Presidente do Conselho Diretivo do IFAP, solicitado pelo secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural”, que deu entrada a 29 de julho de 2021 e foi novamente aberto para repetição em 01 de março de 2023. O concurso inicial foi, portanto, solicitado pelo secretário de Estado Rui Martinho, sendo o lugar entregue no final a Rui Martinho, especifica o Movimento Agricultores Portugueses. “Note-se que também no documento divulgado pela Cresap como ‘carta de Missão’ quem assina essa carta é o próprio candidato vencedor: Rui Martinho, acompanhado pela colega secretária de Estado das Pescas. Ou seja, a Missão que lhe é exigida foi assinada pelo próprio nomeado”, faz notar a mesma organização na denúncia enviada.

Os agricultores pedem esclarecimentos porque essa situação lhes desperta dúvidas quanto à legalidade dos pagamentos que o IFAP está a fazer. “Como se sabe o IFAP é  responsável por largos milhões de euros dos fundos europeus da Política Agrícola Comum e o seu presidente tem um vencimento mensal do escalão B de gestor no quadro dos Institutos públicos (cerca de 6.700 euros)”, notam ainda na mesma comunicação, lembrando também que Rui Martinho já transitara da presidência do IFAP para o governo. “Rui Manuel Costa Martinho tinha  já sido presidente do IFAP antes de ser governante. Deixou de ser governante — uma vez que pediu demissão por razões de saúde, em março de 2023 –, tendo posteriormente regressado ao ativo, como presidente do IFAP neste concurso com um claro conflito de interesses, em julho do mesmo ano”, sublinham. Factos facilmente comprovados no currículo público de Rui Martinho na sua página de LinkedIn.

Rui Martinho foi vogal do IFAP de 2017 a fevereiro de 2020, quando foi chamado a liderar o Instituto. Em dezembro do mesmo ano, deixou o cargo para assumir funções de secretário de Estado da Agricultura a convite de Maria do Céu Albuquerque. Foi nessa altura que desenhou o concurso e assinou a carta de missão para o novo presidente do IFAP, tendo o procedimento terminado sem vencedor apurado. Do cargo de governante Rui Martinho saiu em janeiro de 2023, com o Ministério da Agricultura a alegar “motivos de saúde” para justificar a saída – para seu lugar foi nomeada Carla Alves, que se demitiu apenas 24 horas depois, na sequência de vir a público um processo de corrupção em que o marido era acusado. Em março do ano passado, o ministério de Céu Albuquerque decidiu repetir o concurso para o IFAP, com a mesma missão definida, tendo Rui Martinho sido o vencedor.

“À luz do Direito Administrativo achamos que é manifestamente ilegal, por conflito de interesses, alguém concorrer a um concurso em que foi o próprio que definiu as regras”, sublinha ainda a mesma organização, pedindo que se dê atenção às “informações públicas e não subjetivas” e lamentando o que considera ser “sinal de uma atuação baseada num sentimento de inimputabilidade ou mesmo incompetência e revelador de como é apropriado o Estado por pessoas menos escrupulosas”.

Agora, os agricultores questionam se poderão estar em risco os pagamentos recebidos, caso os atos do presidente do IFAP possam ser anulados. “Esses pagamentos podem ter que ser devolvidos?” E pedem que, quanto antes, “se faça o esclarecimento público para não criar ainda mais incerteza e crispação na agricultura portuguesa”.