A ANECRA – Associação Nacional das Empresas do Comércio e Reparação Automóvel é a mais antiga e maior associação do sector automóvel em Portugal. Tem mais de 100 anos, tendo sido fundada em 1910. Conta com praticamente 3.600 empresas associadas, das diferentes vertentes do sector automóvel. “O sector automóvel, normalmente, divide-se em três grandes áreas: a área da venda de viaturas novas, a da venda de viaturas usadas – em termos de volume, até é bastante maior do que o volume de vendas de viaturas novas – e a da reparação, onde temos a reparação nos concessionários oficiais e a que é feita nas oficinas independentes”, explica Roberto Gaspar, o secretário-geral da ANECRA, logo no início da conversa com o NOVO. Grande parte do trabalho feito pela ANECRA passa por prestar apoio e consultoria aos seus associados em vertentes na área jurídica, fiscal, ambiental e técnica. Numa altura de grandes desafios para o sector automóvel, Roberto Gaspar fala sobre o momento que ele atravessa e os problemas atuais, que vão marcar os próximos anos e colocam em causa  a indústria automóvel europeia.

Qual é o panorama do sector automóvel neste momento?

Do ponto de vista internacional, com toda a certeza, nos mais de 100 anos que o sector automóvel já tem enquanto indústria, nunca se assistiu a uma situação de absoluta disrupção como se assiste hoje em dia. Não estamos a assistir a um fenómeno de uma disrupção específica por um caso concreto, mas a vários processos de disrupção em simultâneo – desde logo, a famigerada questão da transição das viaturas a combustão para as viaturas elétricas, e isso é uma disrupção absoluta em termos de toda a indústria. Depois, estamos a falar de um conjunto de outros aspetos que alteram também o panorama do sector automóvel como o conhecemos atualmente. Do ponto de vista do que é a tecnologia cada vez maior nas viaturas, estamos a falar de uma realidade completamente distinta. Estamos a falar de viaturas autónomas. Estamos  a falar de uma alteração de comportamento, particularmente das novas gerações, relativamente aos hábitos de consumo e de utilização – a questão da mobilidade, digamos assim. Se, em Portugal, isso ainda não se sente muito, em alguns países, nomeadamente em grandes metrópoles, a questão da mobilidade expõe-se de uma forma já bastante evidente. Temos pessoas que pura e simplesmente já não têm carro, utilizam outros meios, utilizam Uber, transportes públicos e outros meios de transporte. Aquela questão que havia em determinada altura, em que todas as pessoas queriam ter um carro e o sonho era ter um carro, isso, hoje, já não se coloca de uma forma geral, cada vez mais. É um fenómeno que obriga a indústria a repensar como se vai posicionar em função disso. Portanto, o sector atravessa um conjunto de grandes desafios, de grandes transformações e muito rápidas. A maior delas, com maior impacto e imediata, é a questão da transição para a mobilidade elétrica – em grande parte, não porque a indústria decidiu assim, não por pressão dos consumidores, mas por imposição política. Em determinada altura, a Comissão Europeia definiu regras muito apertadas do ponto de vista do que são as metas das emissões de CO2 e definiu o Fit for 55, que significa que, em 2030, as viaturas têm de emitir 55% daquilo que eram as emissões em 1990 – é uma redução drástica – e isso significa que em 2035 terão de ser zero emissões, ou seja, todas as viaturas que saem das fábricas europeias terão de ter emissões zero, neutralidade carbónica. Isso coloca uma pressão enorme porque, inclusive, colocaram isso em cima da tecnologia dos elétricos, o que significou que os fabricantes europeus foram obrigados a fazer uma transição do ponto de vista industrial. Ou seja, aquela que é a maior indústria da Europa no presente, que é  o sector automóvel, que é o sector que paga mais impostos, o que investe mais em novas tecnologias, em inovação, é a indústria mais exportadora da Europa, vê-se obrigada a sair da sua zona de conforto, que é produzir viaturas a combustão, onde lidera com marcas como  a BMW, a Mercedes, a Audi ou a Volkswagen, e fazer uma transição para produzir viaturas elétricas. Isso significa um risco enorme, pois estão a sair de uma zona que dominam, da qual são líderes, para uma zona onde ainda não dominam, onde têm de fazer investimentos colossais. Estamos a falar de milhares de milhões de euros em termos de investimento em novas plataformas, e ainda por cima para uma área onde outros mercados dominam completamente. O mercado chinês leva uma vantagem muito grande do ponto de vista do que é a produção de viaturas elétricas. Tem maior capacidade instalada, tem mais qualidade, as melhores baterias são chinesas, a China domina completamente na percentagem de produção de baterias, também domina completamente nas matérias-primas, nomeadamente nas terras raras, o lítio, esse tipo de materiais que são tão necessários para a produção de baterias. Portanto, nós, Europa, que lideramos uma indústria, estamos a fazer uma transferência para uma zona onde outros levam muito mais vantagem do que nós, sobretudo os chineses, mas também a Tesla. Basta dizer que, por exemplo, em 2023, o modelo mais vendido na Europa foi o Tesla Y. Isso diz muito do risco que estamos a correr nesta altura enquanto indústria europeia e de toda esta transformação.

As vendas de carros elétricos ainda representam um nicho no mercado?

Focando-nos no caso português, as viaturas elétricas são vendidas maioritariamente nas empresas – estamos a falar de 90% ou mais das viaturas elétricas vendidas. São vendidas nas empresas por duas razões bastante óbvias: primeiro, estão isentas de IVA, e isso faz uma diferença enorme face a um carro a combustão (estamos a falar de 23% de diferença); segundo, têm isenção de tributação autónoma. Quando estamos a falar de carros para segmentos médio, médio-alto, na tributação autónoma estamos a falar de valores muito próximos dos 40% sobre todos os custos de uma viatura, e isso faz uma diferença enorme do ponto de vista do que é o encargo para uma empresa com as viaturas dos seus quadros. O fenómeno que está a acontecer, e é por isso que assistimos a esse boom do Tesla Y, é os quadros das empresas trocarem os carros a combustão por carros elétricos porque deduzem o IVA e há redução da tributação autónoma, e isso são vantagens brutais. Agora, o que estamos  a ver também, e os dados já começam a apontar nesse sentido, é que para o mercado dos elétricos evoluir na dimensão do que são os investimentos e as apostas que estão a ser feitas pelos fabricantes, o crescimento tem de ser exponencial. Aquilo a que se está a assistir nesta altura é ao abrandamento das vendas de carros elétricos. Ou seja, provavelmente, aquilo que se começa a perceber é que já ocuparam uma boa parte daquilo que era o seu mercado-alvo, que era precisamente esse, os quadros das empresas, e agora começa a abrandar. Por exemplo, em janeiro, os carros elétricos cresceram 13%, o que é um número baixíssimo. No ano passado, os carros elétricos cresceram 100%, mas a base é muito pequena e, como é muito pequena, mesmo 100% não é propriamente um valor excecional. Carlos Tavares, o CEO da Stellantis, referencia isso, que, no fundo, os políticos estão a obrigar a indústria a produzir e a elevar uma oferta para a qual não há procura. Há um desfasamento muito grande. Temos sérias dúvidas de que o mercado das viaturas elétricas tenha condições para crescer aos níveis a que cresceu até agora, e os sinais já vão nesse sentido. Já se recomeça  a sentir alguma reanimação das viaturas híbridas e o abrandamento das viaturas elétricas. Depois, há fatores importantes. As viaturas elétricas continuam a ser muito caras e, além de serem muito caras, existe a questão de que uma boa parte da população ou a generalidade da população não tem condições de carregar o carro ou em casa ou no escritório.

O mercado europeu tem capacidade, a curto-médio prazo, para competir com o crescimento do mercado chinês?

Os sinais são todos bastante preocupantes, porque eles têm grande parte dos trunfos na mão. Eles têm a matéria-prima, têm muito mais anos em termos de investigação e de produção de carros elétricos,  as baterias chinesas são claramente as melhores. Basta dizer que a fábrica de Berlim da Tesla utiliza baterias da BYD, que é o maior fabricante do mundo de viaturas elétricas. Isso atesta bem a qualidade das baterias. Estamos a entrar num jogo em que os europeus terão muita dificuldade e, depois, também há a questão do preço. Há pouco tempo, um grande fabricante europeu dava nota, por exemplo, de que enquanto eles conseguem produzir um carro elétrico, a Tesla produz três. Isto porque foram anos de preparação, as plataformas foram preparadas para produzirem carros elétricos.  Os europeus ou estão a reconverter unidades fabris que faziam carros a combustão para produzir carros elétricos, que não é o ideal, ou estão a construir de raiz. O cenário não é propriamente brilhante para  a indústria europeia.

A aposta nos combustíveis sintéticos seria uma opção melhor?

Não digo opção melhor, digo que é a opção. Nós, ANECRA, fazemos parte de um movimento que se chama Plataforma para a Promoção dos Combustíveis de Baixo Carbono, que inclui várias associações e organismos. Esta plataforma pretende sensibilizar os governos e as entidades públicas para perceberem que a introdução de outros combustíveis é fundamental e que a solução passa por uma solução mista. Não temos nada contra os carros elétricos. Os carros elétricos fazem sentido, mas estão longe de ser a solução. Hoje em dia, se apostássemos nos combustíveis sintéticos, nos biocombustíveis, tínhamos a possibilidade de, com a capacidade instalada que já existe – ou seja, os postos de abastecimento, com o parque circulante que existe (uma boa parte dos carros poderiam utilizar esses combustíveis) -, reduzir drasticamente as emissões. E isso seria um processo muito mais acelerado de redução das emissões de CO2. Vamos imaginar, por absurdo, que nos próximos 20 anos, 80% ou 100% dos carros vendidos são elétricos; daqui a 20 anos, provavelmente, metade do parque automóvel ou mais ainda será a combustão. Estamos a falar de muito tempo para fazer esse processo [de eletrificação]. Se apostarmos em combustíveis alternativos que possam utilizar os carros que já estão em circulação, utilizar a capacidade instalada, temos a capacidade de, num curto espaço de tempo, reduzirmos as emissões. O nosso problema em Portugal é que temos um parque automóvel muito envelhecido – em termos médios, tem cerca de 14 anos – e com emissões muito elevadas. O que defendemos é a necessidade de haver as duas medidas de forma constante. Os elétricos são uma parte da solução, é verdade, há determinados segmentos de mercado onde os elétricos são uma ótima solução, mas isso tem de ser feito em conjunto com os tais combustíveis sintéticos.

Como definiria 2023 em termos de vendas de carros? Foi um ano positivo?

Houve um crescimento. O mercado cresceu 27%. Claro que, apesar de tudo, ainda está abaixo do nível pré-covid, que é a referência. Durante o período da covid tivemos uma quebra brutal; depois, a seguir tivemos outros problemas, nomeadamente com a quebra nas cadeias de abastecimento por causa do problema da falta de semicondutores e tudo o que isso gerou em termos de dificuldade de entrega por parte dos fabricantes. Agora estamos a conseguir nivelar. Há alguns indicadores que geram alguma preocupação. Uma parte destas vendas ainda são vendas de encomendas que vêm de trás, ou seja, encomendas que ainda estavam atrasadas devido às quebras nas cadeias de abastecimento. Os indicadores que temos do ano passado e mesmo já deste ano não são de grande crescimento. Temos alguns indicadores que apontam para que o mercado cresça, em 2024, entre os 5% e os 8%, o que, apesar de tudo, já são números interessantes, mas o mercado não deverá crescer muito mais do que isso.

2024 será ainda um ano de recuperação?

Sim, é um ano de recuperação. Existe um certo receio dos fabricantes, nesta altura, que é  o desfasamento entre aquilo que é a oferta e o que é a procura e as necessidades do cliente final. Por exemplo, hoje há noção de que as viaturas que estão a ser produzidas atualmente, sejam elétricas ou a combustão, estão bastante caras, e isso significa que o segmentos médio-baixo e baixo, provavelmente, não vão ter oferta. Essas pessoas vão ter de ir buscar carros a outro lado e vão buscar carros aos usados. Aliás, nos últimos anos, a importação de carros usados cresceu, o que é um sinal desse desfasamento. Vamos ter essa questão nos próximos anos porque os carros continuam bastante caros.

Depois da pandemia houve uma sequência de problemas para a economia, com a crise e a inflação destes últimos dois anos, as subidas das taxas de juro. Tudo isto teve um impacto muito grande no sector, nomeadamente na comercialização de carros usados?

No mercado dos carros usados tivemos dois anos excecionais porque, a determinada altura, com a quebra na oferta dos carros novos, as pessoas precisavam de carros e foram comprar usados. E mesmo com um crescimento enorme no preço dos carros. Assistimos a um fenómeno, em determinada altura, que era os carros usados estarem a apreciar de ano para ano, o que é anormal. O normal num carro usado é que deprecie de um ano para o outro. Mas, em 2022, assistimos ao fenómeno de os carros usados ficarem mais caros. Na situação atual do mercado, as vendas têm abrandado. Ainda não tivemos grandes quebras, mas assiste-se a alguns sinais, este ano, de quebras. Em 2023, o mercado travou a fundo, mas conseguiu aguentar-se. A principal razão foi a taxa de inflação e a enorme subida das taxas de juro, que se refletiu a dois níveis: na capacidade disponível das pessoas, porque, com as rendas das casas a subirem, passaram a ter menos dinheiro disponível para comprar um carro; e também porque as pessoas não compram o carro pelo valor, mas sim pela prestação que esse carro gera. As próprias financeiras também apertaram a malha na aprovação de crédito, porque a taxa de esforço das pessoas aumentou substancialmente. Passou a haver menos aprovação de crédito.

Qual é a diferença das vendas de carros novos e carros usados no mercado português?

São sempre dados projetados. Ninguém tem dados absolutos e factuais porque, mesmo nos carros usados, há uma parte que é vendida em comércio e outra parte é vendida entre particulares e na beira da estrada, e nesses dois casos é difícil avaliar o número. Normalmente, os carros usados valem, em unidades, três vezes  o número dos carros novos. No ano passado, por exemplo, a importação de carros usados foi superior à importação de carros novos.

Abordando agora o lado da reparação automóvel, que impacto tem este negócio na economia nacional?

O volume de negócio projetado da reparação em Portugal anda na ordem dos 3 mil milhões de euros, sendo 70% desse valor feito no mercado independente e 30% na rede oficial. Desses 3 mil milhões de euros, normalmente, o que se projeta é que 60% digam respeito ao custo das peças e 40% ao valor da mão-de-obra. Do ponto de vista do serviço de pós-venda, os últimos anos têm sido anos excecionais. O pós-venda também caiu durante a pandemia, mas já recuperou e está acima dos níveis pré-covid. Está a trabalhar muito bem. O pós-venda, nesta altura, tem um problema sobretudo de falta de mão-de-obra, uma dramática situação de falta de mão-de-obra especializada, inclusive com necessidade de, em alguns casos, ir buscar mão-de-obra estrangeira.

A falta de semicondutores e chips, assim como de outras peças mecânicas, tem sido um entrave para as oficinas nos últimos anos. O problema mantém-se nesta altura?

Se ainda existem problemas nos semicondutores, do ponto de vista da venda de carros novos, não se sentem. Do ponto de vista das peças de substituição, ainda é um problema. Temos algumas marcas que têm problemas. Isso deve-se ao facto de os locais onde são produzidas as peças ainda terem problemas de abastecimento. Temos a notícia de casos de carros que estão há meses parados porque pura e simplesmente não há peças. Já foi mais grave, mas continua a ser um problema atualmente.

Quais são os principais desafios que o sector enfrenta nos próximos anos?

Esta transição para a mobilidade elétrica é um desafio enorme. Depois, do ponto de vista dos operadores, eles têm outro desafio bastante complicado pela frente que é  o facto de os fabricantes, de uma forma geral, já terem anunciado que vão mudar o modelo de distribuição. Ou seja, vão acabar com o modelo de concessionários e vão implementar o modelo de agenciamento. Isto é um modelo absolutamente disruptivo, com consequências a vários níveis na perspetiva da operação, com impactos bastante grandes. Esta é, se calhar, a grande preocupação, hoje em dia, dos operadores do sector automóvel. Do ponto de vista do particular, provavelmente não terá grandes consequências. A mudança de hábitos das pessoas é uma preocupação bastante grande. A mudança de cada vez mais as pessoas apostarem na utilização, e não na posse, é uma realidade. Há coisas que ainda sentimos pouco em Portugal mas que, noutros países, já se fazem sentir de uma forma muito mais acelerada: a questão de futuro, mas que está ao virar da esquina, das viaturas autónomas. As viaturas autónomas vão mudar completamente a forma como nos relacionamos com os automóveis. Quando tivermos viaturas autónomas do chamado nível 4 ou do nível 5, isso terá um impacto brutal nos hábitos das pessoas e na forma como os fabricantes vão colocar as viaturas porque, nessa altura, vamos querer acima de tudo mobilidade e aquela história de querermos o carro x ou y irá esbater-se e fará cada vez menos sentido. Estes são, provavelmente, os grandes desafios do sector. O nosso grande desafio enquanto associação é ter uma capacidade de adaptação muito rápida à forma como a mudança está a ocorrer. As coisas evoluem a uma velocidade enorme e é difícil projetar a médio prazo.

Que mudanças a ANECRA considera importantes serem implementadas?

Desde logo, a aposta nos combustíveis alternativos – isso é fundamental. Depois, se queremos baixar as emissões, temos de ser pragmáticos. O governo aprovou no último Orçamento, mas ainda não está definido, um programa de incentivo ao abate de viaturas em fim de vida. Mas afinou isso de tal forma que em grande parte encaminha para as viaturas elétricas esse incentivo ou, no limite, para viaturas a combustão novas mas que não podem exceder mais de x emissões. Acreditamos que esse não é o caminho. Se a ideia é rejuvenescer o parque automóvel, reduzir as emissões, acreditamos que o caminho é ser pragmático, e ser pragmático é apostar nos combustíveis alternativos. Isso é fundamental. E, em determinado tipo de casos, apostar na substituição de carros antigos por carros a combustão mais eficazes, porque isso é possível. Este afunilamento que está a ser seguido, não só em Portugal, em função das viaturas elétricas é absolutamente perverso do ponto de vista da redução, que é a agenda, e mesmo do ponto de vista da indústria. Corremos o risco de estar a matar a galinha dos ovos de ouro. A indústria automóvel foi e é a maior indústria da Europa e aquilo que está a ser feito é criar condições para que, a médio prazo, esta indústria desapareça.

Artigo publicado na edição do NOVO de 2 de março