Uma médica portuguesa inventou uma aplicação informática capaz de detetar alterações de voz que podem ser indícios de doença, possibilitando, assim, uma intervenção mais rápida que evitará, à posteriori, exames de diagnóstico evasivos. Tudo, graças à Inteligência Artificial (IA) que agora passou a estar, também, ao serviço da saúde vocal. Os americanos bem que tentaram levar para o país deles a inovação, mas Clara Capucho, médica de otorrinolaringologia, especialista na área da voz, apoiada na investigação pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), numa parceria com o grupo de investigação de robótica da Universidade Nova de Lisboa, quis antes disponibilizar a sua criação para o Serviço Nacional de Saúde, servindo todos os portugueses, sem qualquer intuito comercial.

A propósito do Dia Mundial da Voz, que se assinala a 16 de abril, Clara Capucho tem manifestado toda a sua disponibilidade ao serviço da sua profissão realizando rastreios, que começaram esta sexta-feira e se vão prolongar até dia 17, para quem estiver interessado em examinar a voz, por precaução. Aliás, em conversa com o NOVO, Clara Capucho aconselha mesmo a que se faça um rastreio uma vez por ano.

Os rastreios estão a ser realizados na Unidade da Voz do Hospital Egas Moniz, uma unidade que criou há já 18 anos. É a única unidade do estilo no país, embora noutros hospitais também exista a consulta da voz. Mas uma unidade com uma cirurgiã (a própria), uma terapeuta da fala e um professor de canto, é mesmo única no país e Clara Capucho claramente exterioriza o orgulho que sente nisso. Os rastreios realizam-se entre as 9h00 e as 16h00, mediante inscrição prévia no e-mail da Unidade de Voz, no caso dos cidadãos, ou no site da Fundação GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas, no caso dos artistas.

No dia 16, a também professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, conhecida pela “A Dra Voz” , organiza com o município de Évora e, com o apoio da Fundação GDA , as comemorações do Dia Mundial da Voz no Teatro Garcia de Resende. Será um espetáculo dedicado à Voz Cultural com homenagens aos atores Manuela Maria, Carlos Paulo e Rui Mendes e aos cantores Vitorino e José Cid. Este espetáculo terá início às 21h00 e contará com uma grande diversidade de artistas como Toy, Miguel Gameiro, Vitorino, José Cid, Jorge Batista da Silva, entre muitos outros.

A GDA é a entidade que em Portugal gere os direitos de propriedade intelectual de músicos, atores e bailarinos. A Fundação GDA é o seu meio de ação para valorizar o trabalho dos artistas e promover o seu desenvolvimento humano e cultural e a sua proteção social.

“A Inteligência Artificial vai melhorar muito a saúde vocal de toda a população e também a dos artistas – atores e cantores – que fazem da voz o seu principal instrumento profissional”, afirma Clara Capucho. Segundo a especialista, que há mais de uma década organiza os rastreios da voz, a IA começa a ser um instrumento muito útil para detetar patologias da voz e ajudar a corrigi-las.

“A utilização da IA pelas indústrias médicas está a produzir aplicações que, instaladas num simples telemóvel, vão poder detetar e identificar vírus através da voz: os algoritmos são treinados para detetar desvios na voz de cada indivíduo e emitirem alertas quanto à sua natureza e origem”, afirma Clara Capucho. “Nuns casos, os tratamentos exigirão fármacos ou tratamentos clínicos. Noutros casos, serão precisos exercícios comportamentais de colocação de voz e de terapia da fala: o que é fantástico é que a IA poderá prescrever para cada pessoa, com toda a precisão, quais são exatamente os exercícios que ela deve realizar em cada circunstância em que esta ou aquela patologia se manifestar”.

A aplicação vai ser apresentada publicamente daqui a seis meses. O trabalho no terreno, com pessoas, que conduziu ao aperfeiçoamento da tecnologia, foi apresentado à comunidade científica em junho de 2023.

A otorrinolaringologista Clara Capucho tornou-se, nos últimos anos, na principal referência da saúde da voz em Portugal. É a “Dra Voz” portuguesa – como lhe chamam muitos dos artistas, sobretudo cantores e atores, que recorrem às suas consultas ou a intervenções cirúrgicas conduzidas por si na Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz, em Lisboa (ULSLO).

Em setembro de 2016, no último congresso da Academia Americana de Otorrinolaringologia, em San Diego, nos Estados Unidos (Califórnia), o seu poster “Medialization Laryngoplasty with Hydroxylapatite Microspheres” mereceu uma “Best Rated” (Menção Honrosa). Este trabalho descreve a experiência inovadora da Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz no tratamento de doentes com insuficiência gótica através de um produto com a designação comercial “Radiese”- “Renu”.

Segundo o diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Jaime da Cunha Branco, “este prémio é certamente um motivo de orgulho para a investigação científica nacional, não só pela sua elevada qualidade, como também porque demonstra a aceitação do trabalho por pares com os mais altos padrões de exigência”, neste caso a Academia norte-americana. Clara Capucho conclui em 2018 o seu doutoramento nesta faculdade, tendo a sua tese versado sobre a avaliação multidimensional da voz profissional.

 

Intensa atividade

A intensa atividade cirúrgica de Clara Capucho é uma das suas marcas: participou em quase quatro mil cirurgias, em mais de três mil das quais como cirurgiã principal. Pelo seu bisturi passaram, para além de artistas, governantes, políticos, administradores de empresas, muitos professores, jornalistas, profissionais da rádio e da televisão. Faz também cirurgias de transgénero.

Ao mesmo tempo, tem-se notabilizado por uma intensa participação em programas e cursos no estrangeiro, sobretudo nos Estados Unidos, onde tem observado “in loco” as mais avançadas técnicas cirúrgicas que têm sido testadas na última década. Tem também um mestrado em Audiologia pelas Universidade do Kansas. Nas reuniões científicas, congressos e jornadas em que participa (sobretudo em Portugal e nos EUA, mas também no Canadá, Itália, França ou África do Sul, entre outros países) Clara Capucho apresentou mais de cem comunicações e “posters” científicos. Para além disso, teve dezenas de trabalhos seus editados em revistas europeias e norte-americanas de publicação médica periódica indexadas, para além de dezenas de outros em revistas não indexadas.

O que, no entanto, tornou Clara Capucho mais conhecida foi o acompanhamento permanente que faz a mais de uma centena de artistas, sobretudo cantores e atores, que usam a voz como principal instrumento de trabalho. Boa parte deles são acompanhados por ela há muitos anos, pelo que, na maioria dos casos, a relação que estabeleceram com esta cirurgiã excede em muito o que é normal entre um paciente e um médico.

Quando em 2005 funda a Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz, Clara Capucho imprime-lhe uma originalidade. Para além de otorrinolaringologistas, a unidade passa a contar com uma terapeuta da fala e um professor de canto: Joana Machado Espadinha, terapeuta da fala vocacionada para a voz profissional, depois o tenor Luís Madureira, professor de Canto na Escola Superior de Música de Lisboa, e, mais recentemente, a cantora de jazz Anita Nobre, professora de canto e piano.

“A voz é uma marca da identidade de cada pessoa tão importante, ou mais, do que a impressão digital”, afirma Clara Capucho. “E é-o ainda mais nos artistas, uma vez que são pessoas que não podem ter qualquer patologia na sua voz, mesmo que mínima, sem comprometer o seu desempenho profissional”.

 

Ajudar a encontrar o tom natural

Para desenvolver tecnologias que aplique a Inteligência Artificial ao diagnóstico e terapia das doenças da voz, a Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz está a trabalhar com o grupo de investigação de robótica e manufatura integrada da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, coordenado por José Barata, professor catedrático do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores. “A utilização da IA por otorrinolaringologistas em unidades clínicas pode alargar a saúde vocal a grupos cada vez maiores da população. Para atores e para cantores, é um instrumento que os pode apoiar na melhoria da sua prestação artística”, afirma José Barata. “A IA pode ajudar qualquer pessoa a encontrar o seu tom natural, e o registo que é confortável para o seu aparelho vocal, diagnosticando eventuais erros de colocação e prescrevendo os exercícios mais adequados à sua anatomia e fisiologia”, afirma Clara Capucho.

No caso da voz profissional, como a aprendizagem pela IA das caraterísticas originais de cada voz é um processo que cada artista pode gerir individualmente, “isso não configurará invasão da privacidade, se forem tomadas as devidas cautelas, nem a utilização abusiva de dados pessoais”, afirma a otorrinolaringologista.

A Inteligência Artificial também coloca ameaças aos atores e cantores, nomeadamente as que decorrem da digitalização da sua voz e da utilização dos algoritmos para substituir o seu trabalho: “É totalmente ilegítimo, seja do ponto de vista dos direitos de propriedade intelectual, seja do ponto de vista clínico, utilizar a tecnologia abusivamente para alterar ou substituir o timbre, a entoação ou as emoções de uma interpretação artística”, afirma Clara Capucho. “O maior risco da Inteligência Artificial é o de poder partilhar de forma indiscriminada a voz de cada artista, a sua impressão digital, utilizando sem o seu consentimento o que devia ser uma marca única da sua individualidade profissional”.

 

Novos softwares para proteger o uso abusivo da voz

Segundo José Barata, a utilização de uma voz sem consentimento configura uma questão de cibersegurança. “É preciso, por isso, investir no desenvolvimento de softwares que detetem que a voz que está a ser ouvida é sintética, que foi alterada e que não corresponde à prestação artística de ninguém”, afirma o coordenador do grupo de investigação RICS – Robótica e Sistemas Industriais Complexos da Universidade Nova. “Bastará ter esses softwares ativos nos dispositivos audiovisuais para se saber, em cada momento, se as vozes são ‘fake’ ou autênticas”.

As advertências de Clara Capucho correspondem, no essencial, às preocupações que levaram o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu a incluírem o “Direito de Reserva” na Diretiva MUD – Mercado Único Digital. Essa cláusula jurídica corresponde a um mecanismo de exclusão para a exploração comercial de obras que tenham sido objeto de intervenção de qualquer técnica automatizada de análise de dados própria dos algoritmos da Inteligência Artificial. Se esta questão já era pertinente em 2019, quando a Diretiva MUD foi aprovada em Estrasburgo, os recentes saltos qualitativos da IA vieram colocá-la no centro da atividade artística contemporânea.

Esta é uma matéria que a GDA está a acompanhar com a maior atenção e cuidado, não só pelo impacto no mercado de trabalho dos artistas, uma vez que é um fator determinante para a qualidade das suas vidas, mas também pelas profundas questões que levanta no seio do direito de autor e dos direitos conexos”, afirma Luís Sampaio, vice-presidente da GDA. “A defesa da propriedade intelectual, a valorização do trabalho e das carreiras dos artistas são incumbências da GDA, estão no centro da sua missão enquanto entidade de gestão coletiva”.