A Comissão Europeia (CE) tem dúvidas sobre a legalidade, no âmbito do Direito da União Europeia (UE), do Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em vigor desde há dois anos, que permite aos oriundos daquelas regiões lusófonas entrar e permanecer em território nacional, com acesso a todo o espaço  Schengen, sem um visto previamente aprovado pelas autoridades portuguesas. Por isso, notificou o Governo da abertura de um “procedimento de infração” que põe em risco aquele Acordo histórico, e pediu esclarecimentos no período de dois meses. A secretaria de Estado dos Assuntos Europeus acabou de responder a Bruxelas, dando a garantia de que a coexistência dos dois regimes de mobilidade,  o da União Europeia (EU) e o da CPLP, “tem uma lógica de complementaridade e não de exclusão”. Resta agora saber se os argumentos convenceram a Comissão.

O Acordo CPLP pode ter os dias contados.

As instâncias comunitárias, que se prepararam para apertar o cerco à concessão de vistos de entrada no espaço Schengen [ver texto], entendem que Portugal, ao assinar o Acordo CPLP,  está a violar as obrigações previstas no Regulamento do Conselho Europeu, de junho de 2002, que estabelece um modelo uniforme de título de residência para os nacionais de países terceiros (de fora da União), considerando também que está a desrespeitar a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de junho de 1985, alterada pelo Regulamento da UE de 2010.

Oito países, além de Portugal, integram a CPLP – Brasil, Angola, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Moçambique, Timor-Leste e Guiné Equatorial. Aquele Acordo determina a concessão de vistos de residência e de estada temporária com dispensa de parecer prévio da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), embora esta seja depois informada por razões de segurança interna. O Acordo elimina também a existência prévia de um contingente global de oportunidades de emprego (acaba com o regime de quotas). É igualmente flexibilizada a possibilidade de os vistos de estada temporária ou de residência incluírem a finalidade de prestação de trabalho remoto (situação de nómadas digitais), e passa a permitir o exercício de uma atividade remunerada, subordinada ou independente, a todos os estudantes do ensino secundário ou da formação profissional (complemento à atividade que deu origem ao visto). O acordo simplifica ainda alguns dos procedimentos e aumenta o limite de validade de documentos. Obtido o estatuto de residente, os cidadãos imigrados da CPLP passam a usufruir dos mesmos direitos dos cidadãos nacionais, em particular, no que respeita ao acesso ao ensino, ao mercado de trabalho e aos cuidados de saúde.

Normas à margem da União

Estas são as regras para os países da CPLP, consagradas em Acordo assinado em Luanda no dia 16 de julho de 2021 e aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 313/2021, de 9 de dezembro, tendo entrado em vigor em janeiro de 2022. Mas, Portugal faz parte da UE que, em matéria de integração, migração e asilo, tem normas próprias e às quais os 27 Estados-membros estão vinculados, ficando sujeitos a penalizações quando não as cumprem.

Depois de revelado o procedimento de infração levantado por Bruxelas, o grupo parlamentar do Chega requereu a 2 de outubro a presença na Assembleia da República do secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes.

O governante compareceu na Comissão de Assuntos Europeus no dia 13 de novembro, tendo então garantido que a “CE identifica erroneamente como título de residência para efeitos Schengen o documento que o acordo CPLP prevê como autorização administrativa prévia de residência”. E sublinhou: “A autorização prévia CPLP não é, nem nunca pretendeu ser, um título Schengen”.

A questão de fundo, entanto, para a CE, é o facto de a entrada em Portugal de cidadãos oriundos de países terceiros facilitar  a livre circulação por todos os 27 Estados da UE, ou seja, por  todo o espaço Schengen. Tiago Antunes, perante os deputados da quarta comissão, assegurou: “As autorizações de residência CPLP têm validade territorial circunscrita ao território nacional, excluindo dos seus efeitos os Estados membros da UE”.

O secretário de Estado disse também ter ficado “surpreso e estufacto” quando a 28 de setembro recebeu a notificação por infração contra o Direito comunitário, e logo acrescentou estar convencido de que o processo acabará arquivado.

Quais foram então as dúvidas levantadas pela CE?

Segundo Tiago Antunes, a CE quer saber qual a razão pela qual as autorizações administrativas prévias de residência emitidas ao abrigo do Acordo não observam a fórmula documental prevista para os títulos de residência a nível europeu. Em segundo lugar, são também pedidos esclarecimentos relativamente à restrição da validade  territorial nacional dessas mesmas autorizações. Esta segunda questão foi logo respondida. Quanto à primeira,  esclareceu que, afinal, o que está em questão não é o Acordo, mas “o regulamento que formaliza os documentos que decorre do Acordo”. Ou seja, conforma adiantou, Bruxelas coloca em causa apenas “o modelo documental”.

Assim sendo, Tiago Antunes assegurou aos deputados que a notificação não põe em risco a existência do Acordo de mobilidade da CPLP, nem os direitos dos titulares de vistos e de autorizações atribuídos ao abrigo desse mesmo Acordo. Por outro lado, adiantou, “a situação atual das pessoas [já regularizadas] não sofrerá qualquer alteração em resultado do pedido de observações da CE”. E frisou: “o Acordo foi desenhado tendo em conta as regras europeias vigentes”.

“E se a CE entender que o diploma viola mesmo o Direito comunitário, o que é que vai fazer? Alterar o texto ou iniciar um braço-de-ferro com Bruxelas?” – questionou Bruno Nunes, deputado do Chega, partido que requereu a presença do governante no Parlamento, observando, no entanto, que o problema irá  sobrar para o próximo Executivo. Para Bruno Nunes, “a questão não é de ser a favor ou contra a imigração; é antes uma questão de incumprimento das normas que regem o espaço Schengen, que, por seu turno, gera uma questão de segurança nacional e europeia em razão da comprovada atividade criminosa praticada por redes de tráfico de seres humanos que proliferam à custa do sofrimento de pessoas que vêm de países muito pobres, e que encontram na Europa a sua única esperança”.

O secretário de Estado respondeu que a CE apenas levantou “dúvidas técnicas sobre o formato documental”, assegurando que os “título emitidos continuam em vigor e vão continuar a ser emitidos”. “Não existe uma pressão migratória sobre a UE”,  disse, tendo também observado que 74% das PME europeias indicam como principal preocupação a falta de mão de obra.

Artigo publicado na edição do NOVO que está, desde sábado, 06 de janeiro, nas bancas