Bruno Pernadas faz este sábado o último de quatro concertos de celebração dos 10 anos do lançamento de How Can We Be Joyful In A World Full Of Knowledge, no Theatro Circo, em Braga.

O número redondo foi o pretexto para uma conversa – no Estúdio Louva-a-Deus, que tem esse nome por estar localizado num antigo local de culto, em plena Estrada de Benfica, em Lisboa – com o músico, autor e compositor, que nos levou aos tempos de criação deste álbum, contou alguns episódios dos bastidores, sem nunca desvendar o motivo que o levou a questionar(-se) como podemos ser alegres num mundo cheio de conhecimento.

Pelo meio, falou sobre música, como as diferentes escolas de jazz europeu e norte-americano o influenciaram e como chegou ao Japão, onde é idolatrado como os grandes nomes mundiais deste estilo de música.

Os bilhetes para o concerto em Braga estão à venda aqui.

Dez anos de How Can We Be Joyful In A World Full Of Knowledge. Como te sentes?
De forma genérica, sinto-me bem, até porque a ideia desta celebração partiu de mim, não houve um convite direto. Falei com o Pedro Santos, que era o programador do teatro Maria Matos na altura em que o álbum saiu, foi a primeira pessoa que acolheu o projeto… Perguntei-lhe se estaria interessado em celebrar a década e ele concordou. Os outros concertos surgiram a partir desse. Nessa altura, começámos a falar que seria bom fazer no Porto, mas é muito difícil fazer coisas… É sempre melhor fazer em Braga e já temos feito algumas parcerias com o Theatro Circo e o GNRation, com o Luís Fernandes, que agora é diretor artístico do Theatro Circo, que até há pouco tempo só ocupava a funções no GNRation. Os outros concertos foi o João Vaz Silva que conseguiu a falar com programadores que também estavam interessados em juntar-se à celebração. Tem sido positivo, porque as casas até estão com muita gente, mais do que era esperado, tipo Ovar e Covilhã, que foi o que já fizemos fora de Lisboa…

E em relação à música?
Estou a respeitar a ordem do disco e do concerto, tal como foi em 2014. A única diferença é que tem arranjos novos…

Como foi esse processo de revisitar as canções e voltar a pegar nelas, dez anos depois?
Há algumas músicas com que já não me identifico. Não as lançaria agora. Mas respeito a vontade da altura, que era a de lançar aquelas músicas. Tornei o concerto todo menos contido e com mais improvisação, no fundo. Mais improvisação. Eu não vou voltar a celebrar. Mesmo agora o concerto, o último que foi em… Quer dizer, não vou voltar a celebrar tão depressa! Mesmo o último concerto, que foi em Ovar, houve coisas que deixei assim em aberto, porque… O que vai acontecer se não cumprir? Nada! Eu é que decidi fazer estes concertos! Há muito esse fator risco agora nestes concertos de celebração.

O que mudou em ti para não haver músicas que não lançarias agora?
Não sei. É a evolução normal. Por exemplo, na altura não ouvia tanto R&B moderno e agora oiço muito mais. Ouvia só o antigo, o primeiro R&B. Tipo do Curtis Mayfield…

Estiveste dois anos a compor e a trabalhar neste álbum e, antes mesmo do lançamento, a crítica já tentava colocar numa ou em mais caixinhas. Diziam que eras pop, que eras pop, orquestral, espacial, celestial, rock progressivo, não progressivo… Eras guitarrista, eras uma banda, compositor, escritor de canções. Tinhas noção, naquela altura, de que ias trazer tanta coisa para a música?
Não pensava muito nisso. Quando fiz o disco, não estava muito a pensar como é que o público ou os ouvintes iam receber. Eu fiz o disco para mim. Essa coisa de as pessoas fazerem discos para as outras pessoas é um bocado 50-50. Estava a fazer o disco para mim, porque era um projeto que queria materializar… Se estivesse a pensar a nível comercial, nunca teria feito músicas de oito ou dez minutos. Não esperava nada. Mas, conforme as pessoas começaram a reagir, quando lançámos o primeiro single, obviamente que fiquei contente por gostarem. Não me é indiferente, fiquei muito contente. Não foi feito com esse propósito, com esse objetivo. Tanto que eu não ia fazer concertos. A ideia do concerto surgiu depois, das pessoas que começaram a ouvir o disco. “Não era bom fazer isto ao vivo?” e eu disse “Está bem, mas só com muita gente”… Hoje em dia seria impossível.

Mas sentes que trouxeste muito a música portuguesa?
Sinto que as pessoas sentem isso… Tenho tido esse tipo de comentários, sim.

Este álbum foi recebido com muita expectativa e, como disseste, o concerto de apresentação foi no Maria Matos, lotado para ver-te e ouvir tocar pela primeira vez ao vivo. Que recordações guardas dessa noite?
As boas ou as más? [risos] Assim de repente, lembro-me que o Henrique Amaro saiu a meio para ir ver o resto do jogo do Benfica. Não estou a brincar! Vou explicar: o Henrique Amaro, naquela altura, como eu, já ia a concertos desde adolescente, já não mudava tanto assim a vida… Lembro-me que foi uma cena o facto de o Henrique Amaro estar ali ou o Rui Miguel Abreu, é raro ver jornalistas assim… Só que depois também me disseram que saiu a meio para ir ver o resto do Benfica…

E as boas?
Não, não. Foi tudo boas memórias. A preparação do concerto foi feita com muito tempo, com muitos músicos. Na altura eram nove, dez…

Não eram onze em palco?
Dez, dez, Acho que eram dez…

A contar contigo?
Não, não, tem de ser dez ou onze. Deixa contar… Dez, dez, dez? Ah, não, se calhar éramos onze… Houve muito tempo para preparar o concerto… Tenho o concerto no computador e fui revê-lo agora, antes de começar a trabalhar para estas apresentações. A música correu bem e a receção foi tipo overwhelming mesmo, porque na altura ninguém conhecia o projeto e o Pedro, que era o programador, lembro-me de ele me dizer “Epá, estas coisas, mesmo com divulgação, não vão lá, pá. Mas eu acho que vamos conseguir… meia sala, não sei”. Esgotou e até devíamos ter feito duas datas. Correu tudo bem.

Na altura eu e a Rita Westwood conseguimos o apoio da EGEAC e da câmara de Lisboa para emprestar-nos plantas do Jardim Botânico e do Jardim Tropical. Enchemos o palco com plantas! Só podiam estar no palco durante acho que 20 horas depois tinham de estar no exterior. São plantas de exterior, mas nós conseguimos a licença. Claro que nos esquecemos que não havia equipa para transportar as plantas. Então fui eu, a Rita, o nosso técnico de som da altura, o sobrinho dele e umas almas caridosas da equipa do Maria Matos que ajudaram. De repente tínhamos carrinhas da câmara com plantas de três metros e vasos bem pesados. Eu, em vez de estar a descansar na véspera do concerto, estava eu a carregar vasos com palmeiras. [risos] Mas valeu a pena! Depois conseguimos fazer a mesma coisa na primeira edição do Tremor, nos Açores, no Micaelense.

O concerto foi uma experiência…. Obviamente que a banda estava a tocar de uma forma muito contida e havia muita gente ainda a ler música. Hoje em dia seria completamente diferente. Não havia banda, as pessoas estavam a tentar o seu melhor para fazer interpretação, mas ao mesmo tempo estava muito colado com o disco. Hoje em dia isso já não acontece.

Ainda assim, até ao lançamento deste álbum, as coisas não estavam fáceis para ti na tua vida. Como foram esses primeiros passos?
Fáceis? Em que sentido?

Tinhas dificuldade em pagar as contas…
Ah, OK. Como é que tens essa informação? [risos] É que disse isso há pouco tempo, mas, como era para os Estados Unidos, achei que ninguém ia saber… [risos] Foi uma altura que coincidiu com o término da faculdade e não havia muito trabalho. Durante alguns anos, tinha pouco trabalho e era muito mal pago. Tocava em hotéis e coisas assim. Muitos hotéis e restaurantes. Também dava muitas aulas… O mercado era pequenino. Hoje em dia também, há mais oferta do que procura. Por isso é que tive também tanta disponibilidade e tanto tempo para fazer este disco. Eu tinha tempo, não é? Houve ali um interregno, três ou quatro meses em que não fui ao estúdio, mas de resto estava sempre lá e ia fazendo trabalhinhos.

Como disseste, tinhas que pagar as contas da maneira que conseguias. Isso implicou muitas vezes ter que vestir fato e gravata e tocar aquela música de elevador de hotel…
Ainda visto! Olha, ainda noutro dia vesti fato para ir tocar a Abril Abril. Mas não tenho nenhum problema com isso.

Escolheste dez canções entre as centenas que tinhas em casa, na altura, mas só nove é que saíram no álbum. Como foi este processo de seleção?
Foi bastante natural, bastante natural. Havia algumas canções, mas, à medida que fui trabalhando individualmente cada uma, comecei logo a juntá-las. Não foi uma coisa que tivesse feito no fim. A ordem do alinhamento já estava feita há muito tempo. Se não completa, quase completa, no início do processo de gravação no Estúdio 15A, em Xabregas. Já estava delineado. Só nas passagens é que havia algumas coisas que não sabia ainda como iam acontecer, qual era a transição que ia fazer. Também foi um processo engraçado.

Neste processo de construção do álbum que descreveste, pegavas na música seguinte sobre a anterior. Era uma espécie de evolução natural da música…
A pensar em tudo, no ritmo, na tonalidade, no género… Foi pensado dessa forma.

Continuas a trabalhar desta maneira?
Esse álbum está mesmo todo ligado por tonalidades. Obviamente que o ouvinte comum não vai perceber, porque é uma coisa muito específica. Só quem é da área é que consegue, se calhar, identificar com mais facilidade. As pessoas vão dizer “Colam tão bem as músicas!”. Sim, mas há uma razão. Não é só porque aconteceu, ter sido um acaso e de repente ficar… Até podia ser o caso, mas aquilo foi mesmo pensado. Não foi por acaso.

Este álbum teve a particularidade de ter sido gravado todo acusticamente. Foi uma opção deliberada ou eram os meios que tinhas à tua disposição na altura?
Antes disto, já tinha gravado um primeiro álbum que nunca editei, em 2008.

Já vamos falar sobre esse álbum…
Já me tinha aventurado na música eletrónica, com instrumentos eletrónicos, mas vinha de um sítio muito acústico, em que se gravavam mesmo os instrumentos. Às vezes até teclados iam diretamente ao amp e captava-se o amp. Eu prefiro este processo orgânico. Por exemplo, o último álbum que fiz metade não foi assim. Foi mesmo com o teclado midi e com plugins a emular sons… Eu não gosto desse processo, mas uma parte dele foi assim. Este não. Este tinha os instrumentos todos à disposição. Por exemplo, aquele Farfisa que vimos ali em baixo, que está encostado à porta… Esse é o teclado com que gravei o solo do How Would It Be. Não sei que instrumentos estão ali mais, que tenha usado, mas usei bastante aquele Farfisa.

Como foi gravar o álbum no Estúdio 15A?
Houve uma parte que foi gravada em casa, outra parte foi gravada lá e foi ótimo. O estúdio era nosso, não estava a pagar. Eu não paguei para fazer o álbum. Tinha amigos a gravar no início, que se fartaram de estar lá e tive que chamar um profissional para vir acabar de gravar o disco. Mas enquanto foi com os amigos, e mesmo com o Tiago, foi sempre tranquilo. Era como estar em casa, dava para fumar lá dentro.

Até gravaste um solo de boxers…
É verdade! No inverno, o estúdio é muito gelado, no verão é muito quente. No verão é quase impossível. Aquilo é zinco, então fica um forno lá dentro. No inverno fica um gelo, então tem que ser meia estações. Mas isso aconteceu, sim… [risos]

Em 2008, seis anos antes de lançares este álbum, gravaste aquele tal álbum que nunca chegou a sair. O que é feito dele?
Nunca chegou a sair, mas há um filme português, que não sei se conheces, que se chama Ramiro, do Manuel Mozos… Pus um bocado algumas músicas desse álbum que não lancei na internet. Eu às vezes trabalho com a O Som e a Fúria… Já não trabalho há algum tempo, mas às vezes trabalho com eles em cinema, música para filmes… O Luís Urbano ouviu uma música desse álbum, pediu-me para usar no filme e fiz uma nova versão.

Por acaso, por acaso!, ainda tinha o master do Namouche… Na altura não gostei do disco e um amigo meu emprestou-me um disco externo para pôr lá o álbum todo… Ele tocava violino, ali na Orquestra Metropolitana, e ligou-me, passados muitos anos, e disse-me “Olha, tenho aqui um disco com o teu nome, com um álbum inteiro, com as sessões, mas preciso de usá-lo. Queres comprar?” e disse-lhe “Epá, não, podes mandar tudo para o lixo”. Ou seja, disse-lhe que podia mandar o master, que tem as pistas, que tem as sessões todas do ProTools, para o lixo. Ele, graças a Deus, não o fez. Comprou um disco, mas não me disse… O Luís ligou-me para usar uma música desse álbum de 2008 e eu liguei-lhe a perguntar “Olha, por acaso, só por acaso…” Ele disse logo “Tenho!” Esse disco ficou na gaveta, nunca o lancei, porque não gostei muito do resultado. Por acaso uma das minhas músicas preferidas foi a que foi escolhida para o filme.

Ele tentou vender-te o disco externo?
Sim, não me deu. Comprei-o! Pois, é um pouco estranho. O disco era dele, nunca tinha sido usado. Não sei…

Apesar de ter sido o teu álbum de estreia, sempre estiveste muito ligado à música. Aprendeste a tocar guitarra clássica com 13, fizeste a escola de jazz do Hot Clube, tiveste bandas no liceu, estudaste na Escola Superior de Música de Lisboa e também Análise e Técnicas de Composição com o maestro e compositor Vasco Mendonça. Foi sempre uma paixão para ti a música?
Também gostava e fiz muito desporto. Mas acompanhava música sempre, desde criança. Não foi uma coisa incutida, não há ninguém na família que seja da área da música nem das artes em geral. É mais do setor têxtil, não tem nada a ver com isso. Agora já há! O meu sobrinho mais novo, que tem 35, mas é meu sobrinho, é muito ligado à música, é DJ… Quer dizer, não há… Não há, na família, pessoas que tocaram. A minha irmã ouvia música também, desde criança. Ouvia-se muita música, só não havia uma relação direta com os instrumentos.

Que desportos te interessavam?
Fiz natação no Benfica, sou sócio desde que nasci, mas eu não ligo a futebol. O meu pai é que me inscreveu, porque a minha família é toda dali. Fiz estafeta velocidade, no Estádio Nacional… O liceu onde andei tinha mais horas de desporto, então ainda tinha que fazer alguns desportos de que não gostava assim tanto, tipo vólei… Detesto e tive de jogar e andebol, também não gosto e também tive de jogar. Os desportos de que mais gosto são esses. Gosto de badminton, cheguei a treinar alguns fins de semanas, mas nada de profissional. O meu sobrinho é que é federado!

Tiveste que escolher entre desporto e a música?
Não, não, não, Não era assim tão sério. Era só uma coisa que eu gostava muito de fazer.

Foi no Hot Clube que percebeste que o jazz era o que realmente querias?
Não é só o jazz que eu realmente quero, mas foi no liceu, antes de ir para o Hot Clube, que percebi que queria passar muito tempo, queria dedicar muito tempo da minha vida a estudar essa música.

O que te atrai no jazz?
A liberdade. Comecei a conhecer jazz de uma forma muito estranha. Obviamente que conhecia aqueles discos que as pessoas conhecem todos, que são quase a música comercial do jazz, não é? Não é, mas é quase. Tipo a Ella, Frank Sinatra, Billie Holiday, Chet Baker… Esses eu já conhecia, mas eu comecei a conhecer foi aqueles discos da ECM no liceu, que é a música europeia, o jazz europeu. Aí é que comecei a conhecer novas tendências, novas formas de ouvir a música e de fazer música, foi através desses discos da ECM… Havia aquele canal, que hoje em dia é o Mezzo, que era o Muzzik, e eu estava sempre a ver esse canal. Descobri lá coisas incríveis, europeias, a maior parte, e não americanas.

Depois estudei jazz com pessoas que estudaram nos Estados Unidos e até com professores norte-americanos também. Mas estive sempre nos dois sítios, foi isso que me deu vontade de estudar. Foi toda essa informação que chegava desses discos e do Muzzik. Eu via aquilo todos os dias, tenho concertos do Muzzik gravados em VHS. Agora está pior, porque antes havia o Arte, que era outro canal que fazia colaboração e que conseguia mais arquivo de concertos. Agora não, agora aquilo é muito fraco.

Em que medida te influenciou esta mescla de jazz norte-americano e europeu e tudo o que foste procurar?
Era uma música que nunca tinha ouvido, nunca tinha tido acesso àquela música. Não sabia que existia certas coisas que se faziam. Tendências. Nunca tinha ouvido nem nunca tinha pensado naquilo. Não foi só aí! Mesmo a ir aos concertos do Hot Clube e outros também, em Portugal… Por exemplo, o Jazz em Agosto já existe há muitos anos! O Sun Ra tocou no Jazz em Agosto em 1990 ou 1990 e tal. Eu também ia a muitos concertos e comecei a ficar apaixonado por essa música, encantado por essa música. E queria perceber e queria muito fazer.

Li recentemente uma entrevista tua, em que te insurges, de certa forma, contra uma posição conservadora de que quem faz jazz só pode fazer jazz e não pode misturar com outras coisas…
Não se deve só fazer esse género de música. Respeito a tradição e, se calhar, há pessoas que até acham que sou académico e é ao contrário, mas também não tenho que justificar nada a ninguém. Eu respeito, mas, sabes?, aquela falsa meritocracia? Ainda há dias houve uma conferência de jazz, havia uma pessoa que estava a falar com muita propriedade, um bocado por cima dos outros… As pessoas estavam sempre a dar-lhe paninhos quentes, porque ele já estudava há muito tempo, já tinha começado há muitos anos, não sei quê… Eu perguntei “E então?”  Por ter começado há muitos anos e por já estar aqui há muito tempo, dá-lhe o direito de saber mais que os outros, de achar que a opinião dele é mais válida que a dos outros? Não dá nenhum! Aquele que está ali, de 20 anos, tem coisas a dizer que ele não tem. Não é desta nova geração, não é? Eu respeito, tanto que eu adoro escolas e adoro a academia, mas sou completamente aberto a que as pessoas façam o que quiserem. Desde que soe bem! Às vezes não soa, esse é que é o problema [risos]

Gostas de experimentar, de explorar… Voltando àquelas tentativas de tentarem definir-te quando lançaste este álbum, como te defines tu enquanto artista? Enquanto músico?
Não penso muito sobre isso, mas a música é uma aptidão que eu tenho desde criança, tenho muita facilidade. Não digo isto de uma posição altiva, mas tenho facilidade… Mesmo quando não sabia ainda tocar, quando tinha oito, nove anos, já fazia músicas, fazia canções com os teclados, aqueles Casios pequeninos… Eu comecei por tocar órgão, ainda tenho dois órgãos, estão espalhados por aí… Eu gostava de compor.

Há dias ouvi o podcast do Filipe Melo… Ele tem um podcast da Gulbenkian, já entrevistou o João Barradas, a Maria João Pires e mais algumas pessoas… Estava a ouvir o João Barradas a falar e ele dizia “Quando eu era pequenino, tinha um Casio…” Tal como eu! Obviamente, ele não tem nada a ver comigo. Ele é um músico altamente virtuoso, é dos melhores músicos mundiais. Eu não estou sequer no sítio onde ele está enquanto instrumentista, mas achei graça ele falar da ideia do Casio… Ele usava o Casio como se fosse um jogo, porque ele joga muito jogos, e usava aquilo para acertar nos sons e conseguir as coisas. Achei graça, porque eu também comecei assim, com os Casios a brincar com os beats que ele tinha, porque tinha a harmonia, os presets

A Margarida Campelo, com quem trabalho, quando estava a crescer, o que ela mais gostava era aprender as músicas de ouvido, da rádio e dos CD. Eu não. Eu gostava mais de fazer as minhas músicas, por isso é que ela tem muito melhor ouvido do que eu [risos] É assim que eu me vejo, como uma pessoa com aptidão, com facilidade, não é? Temos sempre alguém, quando estamos a estudar, que tem superfacilidade de entender logo o que os professores dizem, em determinada área, e não têm que estudar para conseguir fazer as coisas. Não estou que não tenha de estudar, estou a dizer que tenho essa facilidade na área da música.

A tua música é ouvida nos Estados Unidos e também no Japão, onde até já produziste trabalhos. Como aconteceu ter chegado ao outro lado do mundo?
Ao Japão, sei explicar. Foi através de uma revista, não sei se era online, onde fazem muitas críticas a discos latinos, tipo música brasileira… No Japão, ouve-se muita música brasileira. Eu apareci numa dessas revistas. Depois, a Disc Union, que é a nossa distribuidora lá, entrou em contacto para comprar discos para vender lá. A Disc Union é como a antiga Virgin Megastore… No Japão há várias e umas dez, só em Tóquio!

Como a Blockbuster para os filmes…
Como a Blockbuster, mas são prédios de quatro andares. Foi assim que comecei a ser distribuído e depois surgiu o convite de ir lá tocar. Temos mantido essa relação.

Já lá foste duas vezes…
Duas vezes.

Como é que foi?
É sempre fantástico, porque, para o público no Japão, eu estou ao nível das pessoas que se idolatram aqui na Europa, nos Estados Unidos… Não estou a dizer que é o mesmo nível, mas posso dar um exemplo. Quando lá tocamos, os nomes que tocam ao nosso lado são sempre nomes muito grandes. O Nels Klein, dos Wilco, tocou antes, antes!, de eu tocar, em 2018. Isto é surreal. O ano passado foram, se não me engano, Sam Gendel e Sam Wilkes, o Hermeto Paschoal ou o Yamandu Costa, guitarrista brasileiro que, por acaso, está a morar em Lisboa. Os músicos e o público lá não têm essa noção de que cá, em Portugal ou na Europa, ninguém me liga nenhuma. Obviamente estou a exagerar, em Portugal claro que ligam [risos], mas na Europa nem por isso. Só nós é que sabemos: “Olha, se eles soubessem…”

E nos Estados Unidos?
Foi porque apareceu no KXP, em Los Angeles… Também houve partilhas na net de duas pessoas bastante influentes. Uma foi a Florence Pugh, a atriz do Midsommar, e a outra foi a Alice Phoebe Lou, da África do Sul, vem a Portugal tipo duas vezes por ano. Isto são as que eu conheço porque sei que há mais  Algumas pessoas partilharam e acho que foi a partir daí que a coisa se foi espalhando lá.

E já chegou a vídeos de lojas de tatuagens…
Já. Tu ouviste a entrevista para lá, OK!

Como ser alegre num mundo cheio de conhecimento? O que te levou a questionar desta maneira em 2014?
Eu nunca falo desse título. Isso levou a uma discussão, uma vez, com a Inês Maria Menezes. Isso era basicamente o tópico da entrevista, não respondi e não houve praticamente entrevista. Ainda bem que fizeste essa pergunta em último [risos] O álbum foi editado em CD e era acompanhado de um livrinho que tem ilustrações na parte da frente e na parte de trás. A ideia era as pessoas pensarem nessa questão, olhar para as ilustrações enquanto ouviam música. Essa foi a premissa sempre inicial.

É uma pergunta tão atual e pertinente em 2024 como era em 2014. Já tens a tua resposta ou alguma pista?
As coisas mudaram muito em dez anos, não é? Eu faria a mesma pergunta. Poderia colocar a mesma questão hoje em dia, acho só que o futuro é mais incerto. Não sei muito bem o que vai acontecer, mas alguma coisa grande vai acontecer. Se calhar quando já tivermos 80 anos, mas vai acontecer. Qualquer coisa tem que acontecer, porque é cíclico, não é? Uma grande catástrofe natural ou o mundo autodestruir-se, como se fosse uma doença, qualquer coisa, não sei. Acho que é isso que vai acontecer. É pertinente na mesma, mas eu coloquei essa questão de uma forma mais filosófica. Hoje em dia, se calhar, colocaria de uma forma mais dramática.

Para quem não queria responder, dá sempre para falar um pouco…
Mas eu não estou exatamente a dar resposta à pergunta… [risos]

Há falaste da Maria João Pires e do Filipe Melo… Que músicos portugueses gostas de ouvir?
De que década?

Todas.
Quanto tempo é que vocês têm? [risos]

Temos a tarde toda.
OK, então vá. Já que estamos a celebrar abril, podemos começar pelo José Mário Branco. Em criança adorava Zeca Afonso, mas depois, na adolescência, não sei porquê, deixei de gostar… Não é deixei de gostar, mas deixei de ouvir…

E agora?
Agora vou ouvir de vez em quando. Gostava dos primeiros álbuns do Sérgio Godinho, também já não oiço. Os antigos que oiço é mesmo o José Mário Branco. Gosto muito de Camané… Quer dizer, não tem nada a ver com isto de abril, mas agora vou falar de mais canção portuguesa e fado. Gosto muito da Carminho.

E depois, dos 1990, as bandas todas daquela geração que eu gostava de ouvir…  Eu era mega fã da banda da Mariana, que está a ensaiar lá em baixo, vi para aí dez concertos da banda dela, que eram os Pinhead Society. Essas bandas dos anos 1990, de rock progressivo… não é progressivo, mas aquele rock indie de garagem, gostava de quase todas. Monster Piece, que é uma banda de Almada… Clã, Ornatos, Zen… Essas bandas, eu gostava disso tudo.

E gosto muito do trabalho dos meus colegas, tipo seja música erudita, clássica, jazz… Gosto muito. Não estou a dizer que gosto mais do que gosto da música pop, é só porque é uma linguagem que me é mais próxima. O João Mortágua, que tem uma banda que se chama Axes, que é Saxes, porque é uma banda de saxofones, sem o ésse. O João Firmino, que tem uma banda chamada Cassete Pirata. As pessoas com que estudei…

Há uma cantora que eu adoro que ficou esquecida e eu gostava, um dia, se tivesse tempo, de fazer qualquer coisa sobre ela, que é a Teresa Pinto Coelho. Era conhecida por Teresinha e é daquelas pessoas que passou um bocadinho despercebida. Embora ela fosse à televisão, aos programas de televisão nos anos 1980… O primeiro programa do Carlos Cruz, ainda tinha ele para aí 18 anos, ela foi convidada para cantar com o Thilo’s Combo. Mais tarde, foi descoberta pelos Thievery Corporation, acho eu, uma banda de drum’n’bass e apareceu num disco desse género, como convidada, a cantar uma música que se chama Lisboa à Noite, que é um fado conhecido. Às vezes, quando estou com pessoas mais velhas, pergunto “Tu conheces a Teresa, que era conhecida por Teresinha?” e há muito pouca informação. Há alguns vídeos na net, as visualizações são todas minhas, claro. [risos]

Fecho assim a resposta: gosto de música portuguesa no geral.

E da mais atual, chamada contemporânea?
O quê? Tipo o quê?

Do nosso tempo.
Mas um exemplo?

O que ouves hoje em dia que é feito hoje em dia?
Vou ver no telemóvel, porque fiz uma playlist só de música portuguesa lá para os Estados Unidos… Há uma banda que acho que seria dos meus projetos preferidos, mas acho que vai acabar, que são os Fumo Ninja, que são músicas do Norberto Lobo, com a Leonor a cantar e o Ricardo Martins a tocar bateria, a Raquel Pimpão a tocar teclados. Acho que é dos melhores projetos que apareceram e, muito infelizmente, acho que não vai continuar.

Há uma banda do Porto e Braga… Espera, só para não me enganar no nome… Unsafe Space Garden, que acho que é um projeto muito original, sinto que merece destaque.

Posso dizer que tenho aqui Camané, de que já falei, Rádio Macau, Lena d’Água, Margarida Campelo, Ágata, Femme Falafel, que é a teclista dessa banda. Monday, que é a Catarina, Clã, Fumo Ninja, lá está, Sara Tavares, Pongo, Montanhas Azuis, uma banda de que fiz parte, Capitão Fausto, Maria Reis, o Luís Benjamim, que está ali em baixo, o Barnaby Keen e Minta… Foram estas que eu escolhi. Contemporâneos estão aí.