Nos tempos da Augusto Mateus & Associados, almoçava frequentemente n’O Madeirense e por isso é com gosto que volta a ver o dono da casa, Manuel Fernandes, que já lhe deu um remédio caseiro para a tosse – poncha quente – persistente, piorada pela recente visita ao Estádio José de Alvalade. Nascido sportinguista – o pai, gestor e primeiro CEO da Sonape de Bullosa e Queiroz Pereira (depois feita Galp), foi vice-presidente do clube e organizou a campanha do Mundial de 1966, o que permitiu a Augusto almoçar com Pelé, aos 6 anos – mas criando uma família de benfiquistas, só conseguiu há meia dúzia de anos cativar um dos quatro netos, Téo, de 18 anos, e juntos, com a Gamebox, não perdem um jogo em casa. É um dos momentos que lhe dão prazer, como o que tira da ajuda que dá, em conjunto com a mulher, Maria do Carmo, às filhas Joana e Maria na gestão das atividades extracurriculares dos garotos, com idades entre os 7 e os 18 anos.

Também tira prazer das viagens que faz, da descoberta. Compra sempre “um livro bonito” das cidades que visita e assim conhece sítios incríveis, como o hotel de Argel que parece saído dos seus livros de Tintim. Mas também pergunta a locais comuns quem gostam de ouvir, tendo dessa forma encontrado talentos como Souad Massi. Desfruta das experiências que enriquecem, como ver uma ópera em Itália, onde o público se comporta como no futebol, apupando, exaltando-se e emocionando-se e até atirando aviões das galerias. “E sou capaz de comprar um livro de 200 euros, que não gasto numa camisa”, confessa.

Sentamo-nos à mesa e pega a conversa política, com Augusto Mateus a recordar que, no seu tempo de governante, levou só 15 dias a perceber que a maior oposição que tinha era a do próprio PS, em cujo governo foi ministro da Economia (de Guterres). Não se ri, fala a sério – num governo de socialistas, as decisões de um independente nem sempre estavam de acordo com o que convinha a quem militava no partido. Mas isso nunca o fez perder iniciativa e independência.

Pedimos bifes, de vaca e de atum, e o economista que podia ter sido médico ou arquiteto conta-me por que é fluente em cinco línguas: francês, português, italiano, inglês e espanhol. Por esta ordem. “Estudei sempre no Liceu Francês, aprendi as duas línguas em simultâneo e isso traz agilidade”, diz-me. O seu interesse precoce pela economia, nomeadamente pela escola italiana, encaminhou-o para esse novo idioma. E no início dos anos 80, juntou-se a um projeto que o levou ao espanhol: “Era a melhor revista de pensamento ibero-americano, iniciativa do Instituto de Cooperação Ibero-Americana e da CEPAL, da ONU. Durou até 1992 e eu era o único português, o que me deu vantagem porque falava vários idiomas e ali me cruzei com os maiores vultos da economia.” A iniciativa contava com nomes como Fernando Henrique Cardoso ou o argentino Raúl Prebisch e fê-lo viajar pela América Latina, destacado entre os grandes nomes, trazendo daí a coroa de glória que foi ter 31 anos e Prebisch parar para o ouvir e, no fim congratulá-lo pela prestação.

Reservado, mas excelente contador de histórias – daquelas pessoas com quem dá gosto sentarmo-nos com tempo, e com quem aprendemos –, Augusto Mateus não adora falar de si próprio. Mas vai contando uma infância feliz pela Praça Pasteur, em Lisboa, e até como, aos quatro anos, rasteirado pelo irmão, entrou de cadeira de ferro pela montra da Mexicana adentro, numa das proezas que recorda com humor.

Não gosta de rotinas ou cantinas, aborrece-se com a repetição, prefere ir conhecendo coisas novas, enriquecendo o espírito. Descreve-se como uma pessoa “de banda larga”, que gosta mesmo é de História: “Só quem vem de longe vai longe, odeio quem só têm presente”, diz-me. Mas essa via profissional teria pouco impacto na sociedade e, aos 16 anos, esse já era um objetivo traçado, poder transformar o mundo. “Costumo dizer que há quem goste de lagosta, há quem só goste de lagosta se souber que pode comê-la mas outros não, e aqueles, onde me incluo, que só gostam de lagosta sabendo que todos podem tê-la no prato.”

Por isso, nas décadas em que ensinou, sempre divulgou tudo o que descobria com qualidade e tentou ajudar os alunos, assim se mostrassem interessados em aprender – dava explicações nos furos, no bar do ISEG, mas também pediu, por exemplo, aos alunos que permitissem que um colega guineense no programa de cooperação, ótimo nas aulas mas com resultado péssimo no exame por ser fraco a português, tivesse mais tempo nas provas. E optou sempre por não estar em dedicação exclusiva à academia, porque “não se pode aprender a nadar fora de água”: para ensinar economia, tinha de estar na economia real – o que fez, fosse no centro de investigação que criou na faculdade ou na consultora a que deu nome, centrada em ajudar as empresas a ter estratégia, oportunidades e melhores resultados, e que vendeu à EY em 2017 como a maior do país, com 30 profissionais disputados ao Banco de Portugal (e com salários desse patamar).

Comprovava o êxito na sua pretensão de ter uma profissão útil, definida ainda adolescente, quando preteriu a Arquitetura – demasiado individualista – e a Medicina – com risco a mais e capacidade de definir o êxito a menos – em favor da Economia.

Interessado por políticas económicas desde muito cedo – leu Marx extensivamente, bebeu muito da biblioteca do pai até aos 18 anos e assim ganhou esse gosto – desconfiado de “autodidatas” que expressam opiniões pouco informadas, lia tudo o que apanhava e isso deu-lhe agilidade mental para escolher o percurso e formar-se aos 21 anos, começando a dar aulas no ISCTE e no ISCEF (hoje ISEG), de História das Doutrinas Económicas e Sociais logo de seguida. “Lembro-me que na primeira aula estava tudo a tentar perceber quem seria o professor… e como dava aulas ao último ano e pós-laboral, tinha alunos bem mais velhos do que eu, como Luís Filipe Pereira”, conta.

Depois veio a “razoável e interessantíssima confusão que foi o 25 de Abril”, que o levou a fundar o Movimento de Esquerda Socialista ao lado de pessoas pelo menos uma década mais velhas mas cujo posicionamento partilhava: pouco adeptos do socialismo real, opositores do sofrimento e da miséria mas sem medo do fascismo. Pelo MES, estaria na fundação da contratação coletiva, com um papel ativo na indústria de lanifícios da Covilhã, para cujos trabalhadores fez livrinhos de instruções do que se propunha e a cujos patrões explicou que todos tinham a ganhar com essa mudança. “Tínhamos a noção de que consolidar a democracia passava pela qualificação das pessoas: trabalhadores, empresários, políticos. Mas percebi que não teríamos sucesso eleitoral”, conta, identificando os outros poucos episódios em que se aproximou da política, pouco atrativa para quem gosta mais de fazer do que de aparecer: as campanhas de Pintasilgo, Soares e Sampaio, embora sempre distante do PS.

Sobre a sua chegada ao governo de António Guterres – depois de o então líder lhe explicar o projeto para o país, caso vencesse eleições – diz que aceitou pela oportunidade de exercer a política económica que até então só ensinara. Mas percebeu que era difícil compatibilizar ideias com apoio do partido vencedor – cujas opções programáticas tinha de respeitar. Eram anos de crise e foi da sua mão que saiu, como solução, em 1997, o Plano Mateus – dava jeito não o vincular ao governo, por isso levou o nome do independente que o desenhara. Para recuperar dívidas ao fisco, reduziu os juros exigidos de 32% para os 9% que o Estado pagara por ter de se endividar devido a não ter aquela receita fiscal; e assim conseguiu recuperar 3 mil milhões de euros de 220 mil contribuintes.

Conta ainda entre as suas conquistas a salvação da Lisnave, os investimentos da Ford e da GM em Portugal, por via da diplomacia económica – em que sempre se empenhou, fosse em visita de Estado aos EUA ou por iniciativa pessoal, como as incursões pela Ásia, onde via muito desenvolvimento e, assim, oportunidades para atrair investimento para o país. Isso trouxe-lhe reconhecimento – “Lembro-me de chegar à sede da Samsung e ter o meu nome escrito em letras de 5 metros”, conta – mas nem sempre cá dentro. “Fui praticamente gozado quando falei numa Secretaria de Estado para o Apoio à Competitividade e Internacionalização, mas as empresas não precisam de ser apoiadas, precisam é de ser competitivas e internacionalizar-se.” Mas também fez amizades, incluindo com o homem do partido liberal japonês que o convenceu a virar o apoio do governo de Lisboa do Canadá para o Japão. A Expo de Aichi foi uma realidade e Obuchi Keizo viria a tornar-se primeiro-ministro, com vantagem económica de Portugal.

Os cafés chegam com pastel de nata, para cair melhor, e Augusto Mateus recua a tempos em que não sonhava ver-se naquele papel de governante. “Estava muito sossegado na minha atividade, em 1992, e liga-me o embaixador americano, que eu não conhecia, para me convidar para almoçar.” À mesa, revelou-lhe que, sendo os EUA uma potência, uma das missões dele era identificar pessoas que pudessem chegar a ministros antes dos 45. Ele via em Augusto esse perfil e queria indicá-lo à Administração, ainda que o próprio lhe jurasse ser uma improbabilidade de peso. Sonho de um académico e economista, lá se deixou convencer a aceitar convite para passar quatro meses em Washington a fazer um relatório sobre a competitividade da indústria americana. Da reabilitação urbana e centros de empreendedorismo de Pittsburg à terra de Bill Clinton, passando pelo aeroporto do Texas, viu o que quis e fez o que lhe competia. Tinha então 42 anos. Três anos mais tarde, contra a sua profunda convicção, era nomeado ministro e ao chegar ao gabinete tinha na secretária um telegrama a dar-lhe os parabéns e a pedir que revisse em alta a reputação dos diplomatas americanos.

Ser ministro permitiu a Augusto Mateus algumas realizações, mas também frustrações. Como o mistério do IRC bonificado nunca publicado, apesar de aprovado em Conselho de Ministros e assinado por ele e pelo colega das Finanças, Sousa Franco. “A taxa era então de 36% e se as empresas tivessem lucros iguais ou maiores do que no ano anterior, teriam um incentivo de 8% se transformassem o desconto em capital, mais 8% se aplicassem em desenvolvimento de capital humano e outros 8% para I&D”, explica. Ele saiu do governo e aquilo nunca aconteceu.

É um dos casos que exemplificam a mentira e o engano, que detesta em política. “Se uma pessoa que está a ficar careca, tem de saber que está a perder o cabelo.” Como o irrita a ignorância e os disparates que se diz, como ser possível crescer sustentadamente só à boleia de consumo e sem investimento ou falar de produtividade sem trazer valor acrescentado à equação. “As pessoas dizem que os economistas nunca acertam, mas isso é porque se usa muito pouca da informação disponível ou não se olha os números do ângulo certo”, diz, apontando como se fala em salários médios sem pesar quantas pessoas de facto recebem esse valor. Augusto foi ensinado no rigor e na superação – ao ponto de um professor, depois de lhe dar nota máxima num exame, lhe dizer que no seguinte teria menos dez minutos do que os colegas para completar a prova. Mas a generalidade das pessoas preocupa-se pouco com o rigor nas análises – se um índice de preços ainda pesa agulhas, linhas e tecidos em vez de pronto-a-vestir, a previsão de inflação sai distorcida… Da concorrência ao funcionamento dos mercados, dos grandes números ao crescimento económico, demora-se em quadros económicos que traduz com uma simplicidade que devia ser obrigatória a quem ensina, fala e estuda temas económicos.

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 2 de março