Joana Andrade é uma mulher que tem quebrado barreiras e continua a fazê-lo. Foi pioneira ao tornar-se na primeira mulher portuguesa a surfar ondas grandes, enfrentando as ondas do Canhão da Nazaré e superando esse desafio. Em conversa com o NOVO, a surfista recorda o início da ligação com o surf e com o mar, curiosamente praticando um desporto que era o único em que os pais não a queriam ver.

Recorda como era praticar surf na altura em que começou, quando nem havia escolas e escasseava o material. Compara esses tempos com os atuais, marcados pela crescente popularidade do surf em Portugal e pelo aparecimento de vários portugueses que se têm exibido ao mais alto nível nas competições de surf. “Portugal já tem grandes surfistas”, afirma, acrescentando que “não estamos ao nível do Brasil, mas para lá caminhamos”.

Mas foi em torno das ondas gigantes que a entrevista girou, e Joana Andrade conta como decidiu experimentar as ondas grandes e revela o que sente quando apanha uma onda destas, reconhecendo que o “medo é um aliado”. “Sempre gostei muito de perceber de onde vem o medo e as ondas grandes ajudaram-me muito a perceber o medo”, frisa.

Aos 43 anos, partilha com o NOVO os objetivos que estão no seu horizonte e que passam por surfar ondas grandes noutros países e evoluir com a primeira equipa feminina no circuito de ondas gigantes, juntamente com Michaela Fregonese.

Como surgiu o interesse no surf? Com que idade começou a praticar este desporto?

A minha conexão com o mar aconteceu muito cedo. Sempre tive uma ligação muito forte. Era no mar que me sentia em paz e harmonia, parecia que era a minha segunda casa. Lembro-me que era uma miúda muito irrequieta, então os meus pais tentaram me meter em todos os desportos possíveis e imaginários. É engraçado que o único desporto em que me diziam ‘não vás’ foi o surf, mas foi no surf que senti ‘wow, é aqui que quero estar, é aqui que quero evoluir’. Claro que não havia as mesmas ferramentas que há hoje em dia para o surf. Não havia as escolas, não havia as pranchas, portanto, a evolução demorou muito mais. Mas lembro-me que mal meti o pé numa prancha pensei que era o que queria fazer para o resto da vida.

O que sente quando está no mar em cima da prancha?

É uma mistura de certos sentimentos. Estar dentro de água parece que limpa, estar presente no aqui e no agora. É um desporto muito individual, porque és tu, a prancha e a onda. O surf normal, não estou a falar do surf de ondas gigantes, é como uma terapia. Uma pessoa está mais tempo à espera da onda do que a surfar. Acho que é o conjunto de tudo. Estar presente, à espera da onda, e quando tu surfas é uma dança, uma conexão entre ti e a onda.

Atualmente o surf é um desporto muito popular, mas como era na altura em que começou a praticar?

Quando comecei não havia escolas. Foi entre amigos que decidimos experimentar. Lembro-me que o meu primeiro fato era um fato muito rígido, não havia aquelas pranchas softboards, não havia esse material, era uma prancha pequenina. Demorei quase quatro meses a meter-me em pé numa prancha. Hoje em dia, numa escola de surf ao fim de duas aulas já te estás a meter em pé. Mas acho que foi isso que me deu mais garra para aprender, porque caía, rebolava, insistia, dizia ‘vou conseguir’, e quando me meti em pé pensei que tinha conseguido. Atualmente, acho que é isso que as pessoas procuram quando vão para uma escola, é aquele preenchimento de superação, de concretização. Também o facto de estarem conectados com a natureza, com o elemento mar, que é essencial no nosso dia a dia.

O que a motivou a experimentar as ondas gigantes?

O que me fascinou foi, primeiro, o facto de ser um trabalho de equipa. Enquanto no surf normal tu vestes o fato, pegas na prancha e vais surfar, nas ondas grandes há uma equipa, tu dependes de uma equipa, dos teus parceiros, para fazer uma onda. A verdade é que quando competia só ganhava os campeonatos quando o mar tinha ondas grandes. Era nessas ocasiões que sentia aquela força, que sentia a desafiar-me, a querer conquistar mais. Sempre gostei muito de perceber de onde vem o medo e as ondas grandes ajudaram-me muito a perceber o medo. É bom sentir que, por vezes, é o pânico que me desbloqueia.

De que forma mudou o seu treino, a sua preparação para enfrentar as ondas gigantes?

Isso também foi uma coisa que me interessou e me fascinou nas ondas grandes. Nas ondas grandes lidamos com a nossa própria morte. Sabemos que quando vamos para lá pode acontecer o pior. Uma pessoa tem de estar muito bem preparada, fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Não envolve só o treino físico. Tem de haver um treino que ajude a enfrentar aquelas ondas. O meu trabalho é muito de exercícios de respiração, de apneia e muito cardio, é o pulmão que me vai salvar nas ondas grandes.

Foto de Jorge Figueira

O medo é um aliado?

Completamente. O medo é um aliado. No momento em que disser que não tenho medo, é aí que me vou preocupar. Nada se faz na vida sem medo. Agora, também temos de perceber de onde vem o medo, como é que vamos lidar com o medo, porque é uma boa ferramenta para a vida, para a evolução, para sairmos da nossa zona de conforto. Mas temos de perceber como vamos usar essa ferramenta.

Quando apanha uma dessas ondas gigantes, naquele espaço de tempo, o que lhe passa pela cabeça, o que sente?

Antes, quando estou no cabo, quando a mota me está a rebocar, existem dúvidas. Penso no que estou a fazer ali, que aquilo é de loucos, que me estou a desafiar, mas depois a dúvida desaparece. É um desporto que é muito de equipa e começamos a perceber que, quando o nosso companheiro da moto de água nos lança para uma onda, se esta vai ser grande, se vai ser pequena. Quando se larga o cabo e começamos a descer, a descer, e sentimos um barulho lá atrás e uma sombra, aí compreendemos que vai ser grande. É uma mistura de sentimentos muito diferentes. Quando estamos a descer só queremos que aquilo acabe, mas ao mesmo tempo há uma adrenalina muito grande. Quando ultrapassamos, há aquela conquista de saber que acabou a onda, é uma explosão cósmica, é uma explosão de adrenalina que não lhe sei explicar. É muito difícil explicar por palavras.

A Joana foi a primeira e continua a ser a única mulher portuguesa a surfar as ondas gigantes. Como se sente por ter sido pioneira em Portugal nas ondas gigantes?

É bom, claro que é sempre bom uma pessoa ser reconhecida por aquilo que faz, principalmente nós mulheres, porque é um desporto que é muito de homens. Ser reconhecida como a primeira mulher é bom, é gratificante. Acho que também abri muitas portas a outras mulheres para começarem a apanhar ondas maiores. Quando comecei contavam-se três, quatro mulheres, a nível mundial a surfar na Nazaré. Este ano já vi mais de 10 mulheres a surfar na Nazaré. Eu sou uma pessoa que gosto de desafios, de superações e este ano desafiei-me para outro patamar. É muito mais fácil contratar-se um grande piloto, e eu este ano decidi que não queria ser só a primeira mulher portuguesa a surfar as ondas gigantes da Nazaré, como também quero ter a primeira equipa de mulheres a fazer as ondas grandes a nível mundial. Estar dependente de uma pilota, ela também é surfista, tal como eu também não tem experiência na mota de água, estarmos as duas a evoluir nisso. Há mais medos, há mais inseguranças, há mais superações, mas é um desafio mais gratificante. Até por ser atualmente a primeira equipa de mulheres no mundo. Acho que nós mulheres temos de unir-nos cada vez mais, principalmente no desporto, nas profissões, em tudo. Fomos muito castradas, fomos muito rejeitadas, houve muitos tabus em relação ao desporto enquanto mulheres. Antigamente, via-se nas mulheres uma ameaça quando elas competiam. Hoje em dia já não é assim.

Sente que essa dinâmica está a mudar gradualmente? Vemos muitas mais mulheres a praticar surf, a experimentarem surfar nas ondas gigantes.

Completamente, cada vez mais. E isso é bom, ver a evolução. Antigamente não víamos tanto, mas hoje as mulheres já perceberam que também conseguem, que também têm esse potencial. A verdade é que nunca vamos conseguir competir com os homens, e nem queremos. Mas também temos o direito de desafiarmo-nos, independentemente de não termos a mesma capacidade física. Mas temos a mesma capacidade espiritual e mental para desafiar as ondas.

Espera que o seu exemplo seja um incentivo, uma motivação, para que no futuro mais mulheres surfem as ondas gigantes da Nazaré, e, de uma forma mais geral, para quebrarem barreiras noutros desportos?  

Claro, acho que é uma semente que deixei. Não só para o surf, mas para outros desportos. Nós, mulheres, unirmo-nos e percebermos que somos superguerreiras. Já se começa a ver isso. Até nos filmes de ação, já vemos heroínas em vez de heróis. Isso é muito gratificante. Principalmente no desporto já se começa a ver uma grande capacidade por parte das mulheres para evoluírem e quererem chegar lá. No mundo do surf das ondas grandes cada vez vamos ter mais mulheres.

Quando abriu a sua escola e por que motivo decidiu fazê-lo?

A primeira escola que tive foi em Carcavelos, em Cascais. Foi uma escola só para mulheres, quando estava a competir. Achei que havia uma necessidade grande de haver uma escola, porque éramos muito poucas mulheres a surfar. Havia uma discriminação. Então abri a primeira escola em 1997, 1998. Depois mudei-me para a Ericeira e abri a Progress Surf School, que hoje em dia é internacional. Recebo grupos de pessoas que vêm de fora como terapia no surf. Percebi que o surf é muito mais do que competir, é muito mais do que um desporto, o surf é um estilo de vida. Não é um desporto, é uma medicina. É algo que te pode ajudar em termos espirituais e mentais.

Além da parte técnica, quais são as ferramentas e valores que tenta transmitir aos seus alunos?

O que tento transmitir é que não importa o nível em que estão, se se conseguem meter em pé, o que importa é uma pessoa sentir-se bem, conectar-se, estar dentro de água, gostar e fazer as coisas de coração. Se queres ser um grande surfista, se queres ser um profissional, então aplica isto. Na minha escola, a minha filosofia ainda é muito de dar esta experiência como uma forma de medicina ou uma forma de terapia. Acho que principalmente para as mulheres o que importa transmitir é que não tenham vergonha de aprender, não tenham vergonha de ir fazer algo que querem muito fazer.

Em que ponto está o surf português hoje em dia? Reduziu-se parte da distância que havia para outros países?

Sem dúvida, Portugal já tem grandes surfistas. Na minha altura só tínhamos um surfista ao mais alto nível que era o Tiago Pires, que conseguia ir lá fora. Hoje em dia até já temos mulheres. Temos a Teresa Bonvalot, a Kika Veselko, temos a Camila. Voltando aos homens, temos o Frederico Morais. Acho que nós portugueses sempre tivemos grandes capacidades e estrutura para sermos campeões, e ao fim e ao cabo também temos uma costa enorme, de boas ondas. Além de Portugal já ter crescido muito na modalidade, nós surfistas também abrimos muitas portas para o mundo. Não estamos ao nível do Brasil, mas para lá caminhamos.

Uma vez que referiu a nossa costa. Quais são os seus sítios prediletos para apanhar ondas?

Já viajei durante muitos anos, a minha profissão era viajar. É sempre bom voltar a casa, e a verdade é que nós temos tudo. Temos um bom clima, temos boas praias, a simpatia. As praias que adoro, as minhas praias de eleição, são a Nazaré, no inverno, mas também gosto muito da Ericeira, é onde vivo e é uma reserva mundial de surf, em que no raio de 10 quilómetros há quase nove tipos de ondas para surfar. Para mim são as melhores ondas do mundo. Não falo só da Ericeira, acho que Portugal tem quase as melhores ondas da Europa e do mundo. Tens ondas pequeninas, ondas médias, ondas grandes, ondas para todo o tipo de nível.

Há um projeto no qual esteve envolvida e do qual quero falar que é o SOMA – Surfistas Orgulhosos na Mulher d’África, em São Tomé e Príncipe. O que nos pode dizer deste projeto e da sua participação?

O SOMA é uma associação que ajuda as mulheres africanas a saírem um bocadinho da sua zona de conforto. Em África, as mulheres ainda são muito discriminadas, não podem surfar, não podem fazer desporto. Então, fomos lá revolucionar um pouco a maneira de eles verem as coisas, de forma que as mulheres digam ‘nós também temos esta curiosidade e vontade de fazer isto’. A verdade é que estas mulheres antes de fazerem qualquer desporto, se calhar, tinham de ir buscar água à fonte, que demoravam cinco horas para ir buscar, tinham de ajudar nas tarefas de casa, cuidar da família. O desporto vinha em segundo plano. Fomos lá revolucionar um bocadinho a maneira de pensar, mostrar-lhes que nós mulheres também podemos ter este estilo de vida. Não é só trabalhar e engravidar, também podemos praticar desporto. Foi muito gratificante estar lá e fazer parte desse projeto, porque hoje em dia temos mulheres que, com a terapia do surf, têm outra mentalidade. Agora têm outro propósito de vida. Acho que o surf as ajudou a serem independentes e a terem a sua forma de pensar.

Sei que no seu horizonte está o objetivo de surfar ondas grandes noutros países, nomeadamente as ondas de Mavericks, na Califórnia, de Jaws, no Havai, e também ondas grandes na Irlanda. O que nos pode dizer desses desafios? De que forma se comparam com as ondas da Nazaré?

Acho que não há nenhuma onda igual à da Nazaré, isso sem dúvida. Temos a maior onda do mundo. É por isso que no inverno todas as direções vão dar à Nazaré e temos os melhores surfistas na Nazaré. Mas a verdade é que também temos boas ondas na Califórnia, como as de Mavericks, temos boas ondas no Havai. Um dos meus objetivos, se conseguir os apoios necessários para esse projeto, é lançar-me e dar a conhecer que há uma surfista portuguesa que não surfa apenas na Nazaré, mas que também surfa ondas grandes noutros lados, com a minha equipa feminina a acompanhar-me.

Tem mais objetivos definidos para os próximos anos?

O meu objetivo no que diz respeito às ondas grandes agora é formar e sermos fortes nesta equipa feminina que estou a construir, com a Michaela Fregonese, que é uma surfista brasileira e havaiana. Estamos a evoluir. Antigamente, tinhas pilotos a trabalhar para mim, os melhores, era uma equipa masculina, e era claro que era muito fácil para mim depositar confiança para eles me lançarem nas ondas. Agora estou a entregar-me a uma pessoa que está a aprender, como eu também estou a aprender a conduzir. Isso dá-me mais garra, é um desafio e uma superação maiores, mas acho que é nesse desafio que me vou focar em 2025. Esta equipa ser forte, para depois brilharmos tanto em Portugal, como lá fora.