Abdulrazak Gurnah, uma voz africana pelos refugiados

Aos 73 anos, o escritor tanzaniano é a quarta pessoa negra a receber a prestigiada distinção literária e a primeira desde 2012 que não é europeia ou norte-americana. O autor de “Paradise” foi distinguido pelo retrato pungente de África e da condição de vida dos refugiados.

O Prémio Nobel da Literatura foi atribuído, esta quinta-feira, a Abdulrazak Gurnah “pela sua compreensão compassiva e intransigente dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no fosso entre culturas e continentes”.

Aos 73 anos, o escritor nascido numa das ilhas de Zanzibar, hoje em dia parte integrante da Tanzânia, passa a ser o primeiro africano a ganhar o prémio em quase duas décadas, depois do sul-africano J. M. Coetzee, em 2003, numa lista que conta ainda com a presença do nigeriano Wole Soyinka, distinguido em 1986, do egípcio Naguib Mahfouz, que venceu em 1988, e da sul-africana Nadine Gordimer, agraciada com o Nobel em 1991.

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Nascido em 1948, Abdulrazak Gurnah deixou Zanzibar aos 18 anos como refugiado após um golpe militar, em 1964. Mudou-se para o Reino Unido e, apesar de ter o suaíli como língua materna, começou a escrever em inglês aos 21 anos, fazendo deste a sua ferramenta literária.

Nas décadas seguintes leccionou na Bayero University, em Kano, na Nigéria, e de seguida na Universidade de Kent, onde obteve o doutoramento em 1982. Actualmente reformado da vida académica, foi nesta última instituição que foi professor de Literaturas Inglesas e Pós-Coloniais.

Como romancista, publicou o seu primeiro livro “Memory of Departure”, em 1987, mas foi com a publicação de “Paradise, em 1994, que se afirmou como um nome a ter em conta no panorama literário internacional. É lá que conta a história de Yusuf, o jovem tanzaniano entregue pelo pai a um mercador para ajudar a pagar as suas dívidas, que lhe valeu a nomeação para o Prémio Booker.

Já a sua obra mais recente, “Afterlives, foi lançada em 2020 e conta a história de Hamza, um jovem que é forçado a ir para a guerra ao lado dos alemães e se torna dependente de um oficial que o explora sexualmente.

No campo da não ficção, Gurnah é responsável ainda pela obra “Essays on African Writing”, dividida em dois volumes, e por artigos sobre diversos escritores pós-coloniais contemporâneos, nomeadamente V. S. Naipaul, Salman Rushdie e Zoë Wicomb. Foi também o editor de “A Companion to Salman Rushdie” (Cambridge University Press, 2007) e tem assumido as funções de editor colaborador da revista literária britânica Wasafiri, desde 1987.

De acordo com a Academia Sueca, o grosso da obra de Gurnah – que consiste em dez romances e vários contos – debruça-se sobre a condição do refugiado e a dificuldade entre manter a identidade que se carrega e a nova que é preciso criar numa nova terra.

O escritor não tem actualmente obra traduzida disponível em Portugal, contando apenas com um título trazido para o mercado nacional, “Junto ao Mar”, editado pela defunta Difel em 2003.

Abdulrazak Gurnah sucede assim à poetisa norte-americana Louise Glück, laureada em 2020. É também a primeira vez desde 2012 que o Nobel é atribuído a um escritor não europeu ou americano: nesse ano foi Mo Yan, autor chinês, a receber o prémio.

O seu perfil coincide, ainda assim, com o que a Academia Sueca vinha a prometer, pela tentativa de tornar o prémio menos eurocêntrico (sete dos últimos dez premiados são europeus) ou de dar uma outra atenção à literatura escrita por mulheres. Porém, a escolha surge como uma surpresa face às previsões que se iam somando nos dias prévios a esta atribuição. De acordo com as bolsas de apostas, os vencedores mais prováveis eram a francesa Annie Ernaux, o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, o japonês Haruki Murakami e a canadiana Margaret Atwood. No que toca a escritores de expressão portuguesa, o moçambicano Mia Couto era aquele que se afigurava como mais provável para receber o galardão.

Tal como ocorreu em 2020, o Comité do Nobel da Literatura anunciou que os vencedores das diferentes categorias do Nobel não tomarão parte no tradicional jantar que ocorre em Dezembro, em Estocolmo, devido à situação pandémica. Por isso mesmo, a cerimónia de entrega e os discursos dos vencedores são transmitidos.