As notícias da inflação em Portugal são positivas, mas os 1,9% com que fechou o ano de 2023 não contam toda a história. E sobretudo não mostram um componente do índice de preços que não está a ser aplacado nem se prevê que seja nos próximos tempos. Portugal pode ter ficado bem abaixo da média europeia (que voltou a subir em dezembro, atingindo 2,9%, segundo revelou nesta semana o Eurostat), mas os preços dos alimentos mantêm-se altos e vão continuar assim. Agora, já sem o IVA zero – apoio que terminou com o arranque do ano – para ajudar quem vai ao supermercado.

E não, a culpa não é dos agricultores, nem dos produtores, nem dos supermercados. É que entre a instabilidade trazida pelos conflitos mundiais, a seca e eventos climáticos, os solavancos das cadeias logísticas e os custos da produção, que se mantêm muito elevados e cujo impacto, mesmo que se reduzam, só se sente até um ano mais tarde, tão cedo não será possível ter comida a preços mais baixos.

O efeito em cadeia começa logo na origem, nos campos de cultura ou criação animal, e reflete-se por todos os elos até à prateleira do supermercado. E o esmagamento que as margens de todos os intervenientes vêm sofrendo há dois anos não permitem mais desbaste, sob pena de o negócio, da agricultura à distribuição, deixar de ser economicamente sustentável.

“As guerras nao ajudam nada e tenho ideia de que esta queda da inflação a que temos assistido vai retroceder um pouco. Em alguns elementos, a inflação pode mesmo disparar – e será pior se houver receios que levem a uma tentativa por parte das empresas de aumentar stocks para evitar ruturas no fornecimento, por causa da disrupção das cadeias logísticas, sobretudo as do Oriente”, antecipa João Duque. Ainda que não preveja grandes sobressaltos na energia, o economista admite ao NOVO que os custos do transporte podem aumentar e que é provável que possa haver atrasos no abastecimento: “Não será uma interrupçao como aconteceu na covid, mas poderá atrasar trajetos, obrigar a reorganizar rotas e desprogramar as descargas dos barcos nos portos.”

Mas a logística é apenas um dos pontos de pressão a que estão sujeitos os alimentos. “Temos vindo a analisar, no Observatório de Preços do Agroalimentar, a evolução de uma série de produtos, já pós-invasão russa e mesmo depois de desaparecer o efeito de pico da inflação os alimentos continuam a ficar mais caros, porque os custos de produção ainda estão a subir”, explica ao NOVO Pedro Miguel Santos. O engenheiro agrónomo e diretor-geral da Consulai (maior empresa de consultoria nos sectores agrícola, alimentar, florestal, do mar e do desenvolvimento rural em Portugal) explica: “Apesar de o preço de adubos, fitofármacos e outros fatores de produção ter baixado, outros subiram e há matérias-primas ainda muito caras. A palha, por exemplo, que é fundamental, mais que duplicou o custo por fardo.”

O Boletim Mensal de Agricultura e Pescas de dezembro, publicado pelo INE, mostra bem esse efeito. Se o índice de preços de adubos e corretivos começou a recuar há um ano do pico atingido no final de 2022 (mais do que duplicou num ano), a verdade é que não recuperou o patamar anterior, mantendo-se ainda em setembro 50% acima do custo registado nesse mês de 2021. Mas outros fatores de produção, como as sementes e os alimentos para animais, ainda não pararam de subir, tendo nesse período aumentado, respetivamente, 9,3% e 8% (ver gráficos). Relativamente a 2021, estão já 25% a 40% mais caros, influenciando toda a cadeia agroalimentar.

“O que as maiores empresas do sector perspetivam é que os preços se vão manter altos nos principais alimentos (milhos, trigo, soja, oleaginosas), o que tem impacto em toda a alimentação”, confirma Pedro Miguel Santos. E mesmo que a instabilidade mundial e da natureza deixasse de provocar ondas de choque neste momento, esse efeito levaria uns largos meses a chegar aos preços da comida. “A normalização nos preços demora até mais de um ano”, concretiza o especialista. E a razão é simples de entender: a batata que se compra hoje no supermercado não foi plantada, produzida, tratada, colhida e transportada ontem.

Com apoios repetidamente anunciados mas que tarde ou raramente chegam aos produtores – “permitiriam minimizar custos e acomodar alguns acréscimos” – e envolvem pesada burocracia, “não saímos da cepa torta”, diz o responsável da Consulai. “É um país de brincadeira”, lamenta (recorde-se que o sector continua à espera de parte dos 180 milhões prometidos pelo governo há um ano, valor que corresponde a cerca de 5% do que foi mobilizado em Espanha). Por isso, prevê: “O ritmo da inflação não será tão alto, mas os preços na alimentação vão manter-se.”

Também João Duque não tem fé que se veja uma quebra de preços na comida nos tempos mais próximos. Mesmo porque antecipa ainda uma subida da inflação, antes que volte a recuar. “Até final de fevereiro vamos ainda assistir a um refluxo, fruto, por exemplo, dos aumentos de salários, com preços ainda ao nível de 2023; o recuo da inflação só virá depois”, diz. Razão pela qual não acredita em mexidas nos juros antes do verão – como aliás também sinalizou a presidente do BCE, Christine Lagarde. “A menos que a Alemanha tenha um descalabro no primeiro trimestre e toda a Europa comece a abanar, ou que os EUA baixem agressivamente as taxas já, não acredito que os juros europeus mexam em março. É muito cedo; e em abril também ainda é cedo. O BCE não quererá fazê-lo antes de ter a segurança de mais de um trimestre completo de recuo da inflação. Mas em junho, julgo que fará um corte significativo, de 50 pontos-base, passando diretamente dos 4% aos 3,5%”, antecipa o economista.

Ainda assim, João Duque lembra que os preços dos alimentos não deverão comportar-se como os restantes. “A alimentação tem muitos fatores específicos a pesar nos custos – desde logo o facto de estar profundamente dependente de fenómenos naturais”, vinca. Uma visão confirmada por quem melhor conhece o sector. E que lamenta a falta de investimento na resolução de problemas previsíveis, como a falta de água. “O pior que nos pode acontecer agora é começar a chover e as pessoas esquecerem-se de que falta água, voltando a adiar-se todos os projetos urgentes, que estão mais que identificados”, diz Pedro Miguel Santos, apontando a falta de investimento do Estado e os escassos recursos do PRR alocados a esta emergência. “Está ali a Barragem do Pisão, que é quase nada, a dessalinizadora do Algarve, Odelouca… É muito pouco para planear o futuro.” E toma como exemplo a crise na produção de laranjas do Algarve, lamentando que não haja um conjunto de projetos prontos a avançar quando haja capacidade financeira. Sem isso, vemo-nos sem margem. “Vamos ver o que vai acontecer ao preço da laranja – e se haverá, porque já no ano passado a falta de água teve impacto na produção. O Algarve consegue dar laranjas todo o ano, mas agora arriscamos ter seis meses sem citrinos, o que vai ter mais consequências de médio/longo prazo, porque muitas plantas vão retrair-se e morrer.”

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 20 de janeiro