A Ministra da Justiça afirma que a infância e a juventude serão áreas prioritárias da sua governação, e avisa que “a aplicação potencial da medida tutelar mais intrusiva para as crianças, o internamento em Centro Educativo, tenderá a aumentar”. Rita Alarcão Júdice lançou o alerta esta segunda-feira na sessão de abertura do IV Congresso Europeu Sobre Uma Justiça Amiga das Crianças, subordinado ao tema “O Direito à Educação”, promovido pela ComDignitatis ─ Associação Portuguesa para a Promoção da Dignidade Humana, que decorre na Fundação Calouste Gulbenkian até terça-feira.

A aumento de jovens internados em Centros Educativos justifica-se, esclarece Rita Alarcão Júdice, pelo aumento da delinquência juvenil (que abarca crimes praticados por crianças e jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos) já referido no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023. “Ora, este cenário da delinquência juvenil tem reflexo no aumento do número de inquéritos tutelares educativos, e, tendencialmente, na aplicação estatística de medidas tutelares”, disse.

Contudo, o aumento do número de internamentos não deverá ser consequência, apenas, da estatística da criminalidade juvenil. Trata-se, também, de uma estratégia de intervenção tutelar educativa com vista à ressocialização dos jovens.

Na defesa desta tese, Rita Alarcão Júdice invocou o último relatório da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos Centros Educativos onde se criticava a não aplicação da medida de internamento em Centro Educativo no tempo devido, em função das concretas circunstâncias fácticas do menor e em cumprimento das normas legais vertidas na Lei Tutelar Educativa (LTE). A Comissão, no relatório, defendia que, neste aspeto, os magistrados estavam a ser  muito condescendentes e, como tal, deveriam optar com mais frequência pelo internamento.

A Ministra, na Fundação Calouste Gulbenkian, esta segunda-feira, sublinhou que os Centros Educativos, que funcionam sob a alçada da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, desempenham um papel fulcral para o funcionamento do sistema de Justiça quando estão em causa crianças e jovens em conflito com a lei penal”. Neste sentido, e na senda da Comissão, defendeu: “Estes Centros representam uma
oportunidade que o Estado lhes disponibiliza, numa fase inicial e decisiva das suas vidas, para que possam receber educação para o
direito.”. E adiantou: “E isso também é, de facto, garantir a existência de uma Justiça Amiga das Crianças”.

Mantendo-se focada nas medidas de internamento, Rita Alarcão Júdice esclareceu: “O trabalho que se desenvolve nos Centros Educativos pretende contribuir para a construção da personalidade dos jovens, influindo de forma positiva na sua inserção na sociedade, fazendo nascer os pilares na criança em formação de um futuro adulto pleno de capacidades individuais e sociais.” Naqueles centros, frisou, “as crianças e jovens beneficiam de programas individuais construídos à medida das necessidades específicas de cada rapariga ou rapaz, desde logo no plano escolar. Mas também beneficiam de apoio psiquiátrico e ou psicológico. Podem adquirir hábitos que muitas vezes lhes eram desconhecidos, como a prática de desporto ou, até, do lazer.”

Para a Ministra, “uma Justiça amiga das crianças não se faz apenas com um adequado enquadramento legislativo, assim como a amizade não se define por um encontro esporádico. Uma Justiça amiga das crianças, como a amizade, exige tempo, meios e escuta.” Neste sentido, deixou na Fundação Calouste Gulbenkian o apelo: “Uma Justiça amiga das crianças tem de existir antes da porta de entrada do Sistema de Justiça. E para tal é essencial assegurar uma forte intervenção preventiva.”

Por seu lado, a Procuradora-geral da República (PGR), igualmente presente na sessão de abertura, aproveitou para chamar a atenção para algumas das falhas do sistema relativamente à justiça juvenil e para o que apelidou de “desconformidades no domínio da intervenção tutelar educativa”.

Na opinião de Lucília Gago, o recente encerramento de unidades residenciais em centros educativos, aliado ao “inexpressivo registo de inquéritos e de requerimentos de abertura da fase jurisdicional”, levou a que se chegasse a uma situação que classificou de “incongruente”.

“O número global de internamentos decretados, 136, suplantou em fevereiro e março deste ano a lotação estabelecida, 134”, apontou.

Alertou, por outro lado, que “a conjuntura inspira a maior apreensão face também à escassez de recursos humanos e ao crescente ingresso em território nacional de jovens não acompanhados das respetivas famílias”.

A PGR apontou que são jovens “desenraizados, indocumentados, de distintas origens e proveniências” e que não têm capacidade para se autossustentarem.

“Com elevada probabilidade poderão vir a denotar necessidades educativas manifestadas na prática de factos criminalmente relevantes, avolumando as dificuldades no terreno hoje fortemente sentidas”, salientou Lucília Gago.

Para a PGR, a escola de hoje é confrontada com “inúmeros desafios”, por causa da “crescente multiculturalidade das crianças e jovens que a frequentam”, que têm exigido dos vários profissionais educativos esforços “redobrados e hercúleos” para que seja possível “a plena integração dos alunos e a igualdade de oportunidades”.

“Esse reforço soçobrará, segundo julgamos, caso inexista maior oferta e versatilidade nos percursos escolares, diversificando os conteúdos curriculares e facultando melhor correspondência com o interesse dos educandos, valorizando as suas potencialidades e aptidões, atendendo à sua crescente multiculturalidade, sem deixar de ter presente o pulsar do mercado de trabalho”, defendeu.

Citou os dados do relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA) de 2022 para defender que “outro elemento a impor reflexão” é o facto de não ser possível que a medida de acolhimento residencial exista em regime semiaberto, “uma opção do legislador” que vê como “altamente questionável”.

Segundo Lucília Gago, isto tem “reflexos perversos”, que leva a que os jovens institucionalizados façam “sucessivas fugas”, o que só contribui para a sua desproteção, “projetando-os para o absurdo de precoces e impreparadas, e a todos os títulos contraproducentes, autonomias”.

“Tudo em desfavor da frequência e progressão escolar, catapultando os jovens residencialmente acolhidos para a mendicidade, a prostituição, o consumo e a dependência de drogas e de álcool”, criticou.

Lamentou também “a escassez de equipamentos especializados para permitir cabal resposta no domínio das problemáticas de saúde mental”.