A lançar um novo livro, o segundo romance que assina, Jaime Nogueira Pinto fala sobre Os Passageiros da Sombra, mas também sobre as mudanças políticas que estão a marcar Portugal, a Europa e o mundo. Acredita que a direita vai destacar-se nas europeias do próximo ano e explica as razões históricas que vê na reconfiguração mundial.

Os Passageiros da Sombra é o seu segundo romance. Ele traz também algo da sua experiência e dos episódios que viveu?
O Orhan Pamuk, turco que foi prémio Nobel da Literatura em 2006, escreveu no prefácio de As Noites da Peste que o romance permite contar coisas passadas com outros como se fossem passadas connosco e contar histórias passadas connosco como se fossem de outros. Eu não me atrevi na ficção até muito tarde – escrevi livros de História, pensamento político, etc., mas achava que a ficção era uma coisa especialíssima. Era o género dos grandes, de Tolstoi, Balzac, Dickens, a quem não me achava semelhante, nem por sombras, ou dos best-sellers que não me dizem grande coisa. E descobri que há espaço entre uns e outros quando fiz o Novembro. Mas isto é um género que não se faz por encomenda, tem de haver inspiração, e aqui há uns cinco anos voltou a apetecer-me. E sim, há ali episódios por que passei, ambientes que conheci e outros imaginados. Como muita gente da minha idade, passei por muita coisa e esta ficção tem muito disso, é uma história datada, tem qualquer coisa de romance histórico – ainda que seja relativamente próximo –, tem personagens que existiram, e isso obriga a respeitar uma certa cronologia.

A história passa-se a meio dos anos 80 e vai de Angola a Washington…
Sim, traz alguns episódios da guerra civil em Angola que retrotraí com a liberdade da ficção, mas há coisas que se passaram mais tarde e que incluo, como o início das batalhas do Cuando-Cubango, a intervenção sul-africana, as reações angolanas, etc. Mas há muitas situações que são inventadas por mim.

Mas nessas cenas reais que conheceu de perto não teve de se retrair?
O Umberto Eco, de que gosto muito, tem uma teoria do romance muito bem vista: em romances históricos clássicos como Os Três Mosqueteiros, nós sabemos que Richelieu nunca pode ser morto pelos Mosqueteiros porque ele existiu, foi real, e sabemos que morreu no dia tal, na sua cama; mas há liberdades que se pode tomar e que Alexandre Dumas usou, como pôr D’Artagnan a passear por certas ruas de Paris que não tinham ligação no século XVII (existiam no séc. XIX, em que viveu, mas não no tempo do livro), sem atingir a essência do romance histórico. Eu usei algo disso, criei personagens cujo enquadramento tem que ver com a realidade mas que são misturadas, com esse truque de pôr nos outros histórias nossas e vice-versa.

E sendo historiador, custa-lhe ter essas liberdades criativas ou é o contrário?
Ao contrário, é uma alegria! Um historiador tem de ter muito cuidado, verificar tudo muito escrupulosamente – e eu, tendo como se sabe posições diferentes da maioria, ainda mais. Ora, na ficção tenho imensa liberdade. Por exemplo, na guerra civil angolana, a partir de 1984, quando os americanos passaram a apoiar oficialmente a UNITA, a CIA tinha um residente permanente na Jamba, e eu invento aqui algo que nunca aconteceu: esse residente é morto no princípio da história e é descoberto por uma patrulha sul-africana. Isto é totalmente inventado. Mas depois, há coisas que não se pode alterar. Há um autor de ficção científica que escreveu uma história em que Hitler, em vez de ficar na Alemanha, emigra para os EUA e vai liderar um bando de motards neonazis nos anos 30 ou 40: aí vê-se logo que é romance. Eco também diz isso: quando começamos a ler um livro há uma espécie de contrato, não escrito mas imediato, que o autor faz com o leitor. Se ponho Hitler numa mota nos EUA, não é um romance histórico, é uma personagem histórica numa ficção. Eu acho que as liberdades que tomei são sempre possíveis, nuns anos 80 que conheci bem de ambos os lados e que retrato, no lado puramente histórico, no livro Jogos Africanos. Ainda há dias estava a ler As Vidas e Mortes de Abel Chivukuvuku, do Agualusa – e eu sou amigo de há muitos anos do Abel – e lá também se conta alguns factos que me inspiraram. Mas não tenho de dar aquelas soluções. Ou seja, o romance histórico não pode ser contra-histórico, pode é ser ex-histórico, ter personagens e situações que nada têm que ver com a História.

Também se tem dedicado a outras escritas e publicações. No ano passado, lançou a Crítica XXI, uma revista trimestral que se propõe criar uma via alternativa ao domínio da esquerda na cultura. Como está a correr?
Está a sair agora o número 5. Tive essa ideia e falei com amigos – nomeadamente o Rui Ramos, que está comigo na direção, e o Carlos Maria Bobone, editor principal –, porque vem daí o grande sucesso da esquerda na política portuguesa. Há muitos anos que acredito nisso: começa tudo na cabeça das pessoas. E talvez precisamente por ter estado afastada muitos anos por um regime autoritário, a esquerda acabou por ficar dona daquele espaço que o Estado Novo lhe deixou, que foi a parte cultural. Eu lembro-me, em miúdo, de as páginas culturais dos jornais serem praticamente todas dirigidas por pessoas marcadamente de esquerda, até comunistas. Os grandes escritores eram da oposição – Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, os neo-realistas, os mais lidos eram críticos do regime. E bons escritores. Ironicamente, hoje ninguém os lê. Fizemos esta revista também para mostrar que a direita não é estúpida. Porque há esse complexo – até na direita sociológica há pessoas que se acham burras porque a esquerda as convenceu de que o são.

Há uma imposição da esquerda que a direita aceita?
Aceita. E alguns entram perfeitamente nesse retrato-robô que a esquerda fez deles: não leem, não pensam. Nós quisemos fazer esta revista para contrariar isso. E temos conseguido, já temos mais de mil assinantes e agora vamos entrar nas livrarias. Eu já tinha feito a Política, no tempo do Marcelo Caetano (em 1969) – mais centrada na questão de África e no receio de comprometimento do então Ultramar –, que juntava todas as correntes da direita. Depois, quando voltei dos exílios, em 1980, fiz a Futuro Presente, que durou mais de 20 anos. Nós fazemos aquilo que sabemos. E eu não tenho nem as qualidades nem os defeitos necessários para estar em partidos políticos, mas acho que a batalha cultural importa e tenho-me dedicado a ela.

E tem noção de a quem está a chegar a revista?
Tenho e fico muito contente, porque pelos números fiscais percebe-se que é gente nova. Além disso, não conheço quase ninguém nas listas de assinantes, o que também é bom sinal. E curiosamente, a reação que encontramos vem muito de gente muito nova, nos vinte e tais, trinta. Miúdos com leitura, críticos, curiosos.

Não são as elites que leem.
Não, embora, evidentemente, haja exceções.  Quando muito serão talvez as futuras elites. As elites do costume, um pouco por toda a parte, tornaram-se globalistas, partilham as agendas – por medo ou adesão – do politicamente correto e do woke. No mínimo, não se atrevem a ir contra elas.

Há muito de receio nessa adesão?
Há duas coisas: a partilha entusiástica, que diria ser bastante minoritária, e a partilha por silêncio, conveniência ou medo, que é muito forte. E a Crítica XXI está a conseguir começar a contrariar isso. Eu estudei isto há muito tempo: antes de haver uma revolução, a cabeça das pessoas já mudou. Até em Portugal, como dizia o João Franco, não são as oposições que triunfam, são os governos que caem. E é o que temos visto. Na modernidade, a Revolução de 1820, a Republicana de 1910, o 28 de Maio de 1926, até o 25 de Abril, quando acontecem são já uma espécie de eutanásia, como escreveu sobre o 25 de Abril o Nuno Rogeiro. É o que está na cabeça das pessoas e o bloco que está no poder já não tem capacidade de defesa.

E acredita que estamos a viver um momento desses?
Estamos num momento interessante. O modelo democrático no sentido de haver representação popular, eleições, etc. não está nada em causa. Mesmo as pessoas da minha geração, quando se opuseram a isso foi por questões de interesse nacional, como a guerra de África. Eu não gosto nem preciso que  cortem a voz aos opositores. Sei discutir e não me importo de o fazer. O que acho é que há muito aqui do fenómeno europeu e americano… até o 25 de Abril também teve muito que ver com a homogeneização de Portugal com o modelo ocidental. Nessa época, havia regimes muito pessoais, o franquismo ia desaparecer quando Franco morresse, e ele próprio assumiu a transição, planeou-a, mesmo não gostando. O general Vernon Walters contou-me um episódio em que foi enviado por Nixon a Espanha porque os serviços de inteligência americanos estavam a ficar alarmados – o general Franco começava a falhar tiros fáceis às perdizes (ele era grande caçador e pescador), o que significava que o Parkinson se estava a agravar. Vernon falava 14 línguas, incluindo espanhol e português correto, fora diretor adjunto da CIA, e foi enviado a Madrid, mas era muito desagradável chegar e perguntar a Franco o que aconteceria quando ele morresse, por isso disse que estava ali para saber a opinião dele sobre a situação geopolítica no Mediterrâneo Ocidental. Franco respondeu-lhe: “Vocês sabem muito mais do que eu sobre isso; o que você quer saber é o que vai acontecer em Espanha depois de eu morrer. E eu digo-lhe: para os vossos interesses, vai correr tudo muito bem, porque eu acabei com essa coisa das duas Espanhas, criei uma classe média e acabei com os abismos entre os muito ricos e os muito pobres que também levaram à guerra civil. Portanto, Espanha vai ser uma democracia, o que não sei se será bom para o povo espanhol, mas é o que vocês querem.” E de facto Franco controlou a passagem do seu regime, que seria impossível manter após a sua morte, a outro. Deixou as instituições, assegurou a reinstauração da monarquia e as coisas funcionaram.

Agora estão a quebrar?
Estão a desfuncionar, porque Espanha tem um problema – que nós não temos – que são os separatismos. Nós tínhamos os territórios ultramarinos e tivemos a descolonização – que Espanha também tinha tido, a terminar à força em 1898 com os domínios das Filipinas e Cuba, o que causou uma grande tensão e trauma. E levou ao surgimento desses sentimentos separatistas, que se configuram muito no início do século XX e que vêm sobretudo das elites – os grandes representantes, como Sabino Araña no País Basco – queixam-se muito de que o povo não lhes liga.

Mas como vê a situação atual?
Houve muitos protestos contra a amnistia, mas não creio que vá dar grande coisa; já os referendos e uma possível secessão será muito complicado… Admito que Sánchez, uma vez no poder, vai adiar tudo. Vai fazer um jogo ambíguo. Até porque sabe bem que tem muita oposição, até dentro do partido: grandes figuras do PSOE, como Alfonso Guerra ou Felipe Gonzalez, têm sido críticos desta posição, veem que ele, para se conservar no poder, está a brincar com assuntos seríssimos, com a unidade de Espanha. Na Europa há outros movimentos deste tipo – quer Itália quer a Alemanha, dois estados tardios, e Espanha já existiam como nação quando, no século XIX, se fez a unidade do Estado. Normalmente é ao contrário: a nação portuguesa começa com D. Afonso Henriques e tem a sua prova de fogo na crise de 1383-1385, em que parte dos portugueses – o povo e algumas elites – escolhe não ficar com o rei de Castela. É uma coisa muito curiosa, aliás: na crise de 83-85, na alta nobreza, os chefes das casas ficam com Castela e os segundos filhos e os bastardos ficam com o Mestre – o que tem tanto de convicção como de interesses. E em 1640 dá-se uma coisa parecida, até porque Filipe IV tinha levado parte da nobreza portuguesa para Castela; nessa altura, tivemos a sorte de o rei e o primeiro-ministro Olivares terem priorizado dominar a Catalunha, o que nos deu quatro anos muito importantes para a preparação militar e para consolidar apoios e alianças na Europa, com Inglaterra, Holanda, França, os inimigos de Espanha.

E que pode dar gás à extrema-direita?
Hoje a Europa está numa vaga que quem não gosta chama de populista ou de extrema-direita mas que é sobretudo uma resposta, desde logo ao fenómeno do globalismo e da desindustrialização. É muito interessante. Em França, as pessoas da minha geração recordam-se de o Partido Comunista ser um grande partido dos anos 50 e 60, com 30% dos eleitores, mas hoje não existe, tem 2% e está metido naquela coligação do Mélenchon. E o que restava passou para o Rassemblement National, ainda no tempo do pai Le Pen e do Front National. É o mesmo fenómeno que, em 2016, deu a vitória a Trump nas zonas industrializadas da América. O automóvel, que era a grande indústria em Detroit, a siderurgia e tudo isso, com a desindustrialização pós-Guerra Fria, perdeu e essas classes trabalhadoras industriais tiveram um declínio enorme na sua renda. Há uma perceção de que se voltou àquele capitalismo selvagem de que falava o Marx e que ainda é a grande atração das ideias da esquerda radical e socialista, que vem de um sentimento de profunda injustiça de pessoas que não eram propriamente proletárias, como Marx ou Engels (que era muito rico).
Só que a solução que eles lhe deram também não funcionou – não consta que essas classes trabalhadoras tenham ficado melhor na União Soviética ou em Cuba… A certa altura, fazia-se viagens à União Soviética e os comboios iam parando e os trabalhadores ferroviários, operários, não só falavam em inglês como até tinham lido Shakespeare, eram cultos – é claro que tinha sido ali postos para mostrar e depois outros intelectuais demonstraram isso. O que sabemos – e até em Portugal se contava – é que a partir de determinada altura aquelas visitas tinham parado, porque eram contraproducentes.
Acho que aí há um fenómeno de mimetismo nas classes dirigentes ou dominantes, que acabam por ficar todas iguais. E isso choca a opinião pública. A arrogância do poder pode passar para uma classe de apparatchiks do PS, que em Portugal é relativamente tranquila, mas que pode ser igual na sua arrogância a uma classe dirigente do antigo regime. Aquela ideia de “nós somos diferentes, somos melhores e sabemos o que é melhor para vocês”.

Que acontece porquê?
Filosoficamente, é a continuidade da natureza humana. E isso, para mim, distingue a direita da esquerda: a esquerda alega acreditar na mudança da natureza humana e a direita não, aceita que a natureza humana é uma continuidade e não é melhorada por retórica e imposições. A União Soviética durou 70 anos: o homo sovieticus ficou diferente? Não.

 

 

 

Voltando à Europa atual, como vê as eleições que se aproximam?
Vão trazer mudanças. Em França, até agora, o candidato que se opusesse na segunda volta a Marine Le Pen ganhava, mas agora não sei; na última eleição já foi 42% vs. 58%… Mas lá está, a direita é sempre conhecida através da esquerda, mas a direita tem tantas famílias quanto a esquerda, ainda que hoje pareça ou que se queira fazer parecer que só há extrema-direita. O discurso só admite a direita da esquerda, a direitinha. Há na Europa duas grandes famílias: uma nacional-conservadora, que tem preocupações de costumes, da família, da religião; e identitária popular tipo Rassemblement National que não liga muito a essas questões e está muito nos temas populares do emprego, da segurança. É uma direita diferente, mais identitária, de certo modo até mais próxima do que eram as direitas fascistas, que não eram conservadoras – e daí terem tido tanto sucesso. A diferença é que os fascismos eram anti-eleições e estes movimentos querem as eleições. Depois há umas sínteses, como a Itália de Giorgia Meloni, que vem da Frente da Juventude (ala juvenil do Movimento Social Italiano), um partido neofascista a partir do fim dos anos 40, mas que tem hoje uma agenda nacional-conservadora. A Lega começou por ser um partido separatista no norte de Itália e reconverteu-se num partido nacional. E há o Forza Italia, do Berlusconi, um fenómeno também muito pessoal e que não sei se existirá depois dele.

Mas que fez caminho.
De certo modo, Berlusconi foi um percussor de Trump, era um homem de negócios – com muito mais sucesso… Berlusconi, Trump, Bolsonaro e até este Milei, que venceu agora as eleições na Argentina, são figuras de antítese. As pessoas não querem o que está e votam nestes caudilhos que estão muito fora das regras da política e de todo o respeito e retórica, que aparecem com uma certa brutalidade e às vezes perdem por isso. Creio que Trump e Bolsonaro perderam pela forma leviana como trataram a covid, um eleitorado de gente mais velha que seria deles ficou chocado e magoado com aquela ideia de que era uma gripezinha, e eles acabaram por perder por um excesso de húbris. Mas as figuras de liderança mudaram completamente – há ainda algumas, como o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, que equilibra o lado emocional e popular com a leitura, há um dia na semana em que ele só lê livros (o que é importante).

Mas o que está a conduzir essa mudança?
O que tem levado a esta mudança nacional, identitária e que vamos ver para o ano nas europeias são várias questões. Algumas comuns aos países, como a imigração, especificamente a imigração culturalmente não integrável – que é sobretudo a segunda geração das imigrações muçulmanas. As primeiras gerações, até pela sua natureza, integravam-se; nas segundas é complicado porque nem são dos países de origem da sua família nem se sentem dos países para onde vieram, estão numa espécie de no man’s land e não se identificam. Há aqui um choque cultural muito grande, que também temos de entender: um jovem magrebino na Rue de la Paix olha para uma montra e nem que trabalhe toda a vida consegue comprar o que vê.
São fenómenos interessantes: a enciclopédia completa de Alembert (do século XVIII), nem que a classe popular trabalhasse toda a vida conseguiria comprá-la – portanto, há uma revolução feita através das classes dirigentes e dominantes que são convertidas às novas ideias ou ficam com um complexo de culpa em relação às ideias que justificam o seu poder, o estar no poder. Isso viu-se muito na França revolucionária e até na Rússia: a obra de Tolstoi é a obra de um aristocrata que permanentemente põe em causa as razões da sua classe, de ter mais do que os outros. Isso faria todo o sentido e seria até evangélico, se o que veio depois fosse bom, mas não é. As pessoas mudam com o poder.
Nas primeiras fases não. A União Soviética é um bom exemplo: ali até 28, nos primeiros dez anos, até há uma certa liberdade e criatividade no cinema, na poesia, mas depois muda com Estaline. E os comunistas sempre foram muito hábeis nisso, para guardar a pureza das suas ideias, atribuem a homens maus a perversão do sistema. O homem mau tinha de aparecer e se não fosse Estaline seria qualquer outro, para proteger o regime. E quando apareceu alguém que era menos mau do que os outros, Gorbatchov, aquilo caiu. Porque um regime brutal como era o comunismo soviético precisava também de gente brutal. Até porque a letra da lei, a Constituição de 36, de Estaline, está cheia de direitos, liberdades e garantias individuais. Mas quem pensasse pedir alguma, a viúva já ia a caminho da Sibéria…
Agora, vê-se aparecer de novo pessoas com essas ideias e ninguém reage, é como se nunca tivesse havido essas experiências. Essa é uma das grandes forças da esquerda: é que as ideias que deram poder a esses sistemas horríveis que mataram milhões de pessoas voltam a ser invocadas e é como se fosse a primeira vez.

Mas isso não é verdade à esquerda e à direita?
A direita tem muito mau nome…

Isso não a tem impedido de ascender.
Porque as pessoas estão fartas. E é no povo, porque o povo é hoje menos controlado pelo discurso intelectual. Alguns eleitores em França dizem: eu estou mal, já agora vou ver como é a Le Pen, que esta nunca experimentei. Os comunistas marxistas usaram uma expressão para explicar essas pessoas: lúmpen, um proletariado que não era consciente. Nisso foram brilhantes, tinham soluções para tudo. Aliás eu sempre achei Marx um pensador brilhante com conceitos muito importantes, como o conceito de classe, no sentido que o Sorel chamava “cânones de interpretação da realidade”, ou seja, o conceito de classe ajuda-me a interpretar. Agora, dizer que há só duas classes, burguesia e proletariado… então e a classe média? É por isso que odeiam a classe média. Mas o comunismo, o marxismo-leninismo está hoje muito subalternizado, dá-me ideia que hoje a esquerda, mesmo a pensante, não quer saber das classes trabalhadoras, está acantonada no woke e arranja agressões e micro-agressões por todo o lado. Esta correção dos livros revolta-me profundamente, porque se levarmos isto a sério, a literatura desaparece. Toda! O Dante, com os seus círculos  do Inferno, maltrata muitas minorias. E Shakespeare, Gil Vicente, Camões. Se fizermos uma leitura à luz desses “valores” politicamente corretos, destrói-se tudo.

Mas o que justifica isso?
Se procurarmos uma ideia de perfeição da natureza humana, podemos começar a pensar coitado daquele cão que levou um pontapé do dono – a maioria dos donos de cães até os trata muito bem, mas se houver um movimento de interiorização de tudo o que está mal, de toda a gente que pode sentir-se ofendida, não saímos de casa. Eu só cristão e sou crente – não obrigo ninguém a sê-lo, mas acho que posso salvar-me e perder-me todos os dias, acho que isso está na minha mão. Mas mesmo do ponto de vista de uma certa racionalidade humana, o mal, a aceitação de que temos de conviver com isso importa. Pascal tinha isso bem definido: se queremos ser anjos, acabamos em demónios. Porque ao tentarmos chegar à perfeição muitas vezes criamos demónios da retidão. Essas pessoas muito retas acabam muitas vezes num fariseísmo de efeitos perversos. Há um autor polaco, inicialmente comunista, de que gosto muito, o Kolakovsi, que diz que uma das coisas interessantes da História é examinar as consequências perversas das boas reformas e até das boas ações. Porque há uma quantidade de coisas que ficam pelo caminho quando se quer chegar ao bem absoluto na terra. É a história do Sermão da Montanha, um modelo cristão para uma sociedade perfeita que gerou grande discussão entre os padres sobre a quem devia aplicar-se; e Santo Agostinho, muito sabiamente, disse que aquilo era só para a elite. E vê-se, onde é que há sociedades comunistas? Em ordens religiosas que o realizam, para onde as pessoas vão voluntariamente e que nós admiramos, como as carmelitas, os missionários ou pessoas que vão pelo mundo para ajudar, mesmo não sendo religiosas. Mas sobretudo não são obrigadas àquilo. Porque a natureza humana é assim, nós somos mais depressa inclinados para o mal do que para o bem. Aquela coisa dos móveis da ação humana: medo, glória e cobiça, está bem visto – nós fazemos muita coisa por medo, porque há leis e tememos ser castigados; a glória leva-nos a fazer o que achamos que nos leva a ser bons, superiores; e depois queremos dinheiro, bem-estar. O que há é pessoas excecionais, que renunciam a tudo, até a ter família, para tratar dos outros.

 

Como vê as eleições nos EUA?
Bem, uma eleição Trump-Biden, não digo que seja diabólica, mas é um sinal de profunda crise. Até pela geração das pessoas: Biden fez agora 81 anos, Trump tem 77. Pode até haver uma mudança de última hora no Partido Democrata, porque neste momento as sondagens dão-no como derrotado. Eu nunca vi os EUA tão divididos politicamente, intelectualmente, com ideias opostas e sem capacidade de contacto, em guerra permanente, o que pode dar ideias à China… Apesar de tudo, porém, nós já não estamos num mundo bipolar, estamos num mundo multipolar, onde há potências de segunda linha, como a Turquia, que têm políticas totalmente independentes e não querem saber dos maiores, nem dos EUA nem da China. Israel é outro caso, a Rússia. Portanto o mundo é multipolar e já não vai deixar de ser – até porque já não há o fator do monopólio nuclear. E há outra coisa: a ideia de independência nacional é tão forte nas nações antigas como nas mais recentes. No Leste – Polónia, Hungria, todos esses países que estiveram dominados muito tempo, agora que se tornaram independentes querem guardar essa independência – seja em relação à Rússia seja em relação à União Europeia. E mesmo países novos de África querem a sua independência. A globalização é uma coisa diferente – de máquinas, económica, há sítios e alturas onde funciona melhor ou pior; mas o globalismo, esta ideia de uma humanidade só, acabou-se. Tirando as tais elites muito isoladas. Poderosíssimas mas que vivem isoladas, porque o povo não quer.

E que efeitos tem isto na UE?
Os partidos nacionalistas ou identitários vão crescer em toda a parte nas próximas europeias. E se a UE chatear muito, saem, porque já viram com o brexit que não “morrem”.

Não é mais provável que a UE se altere pela maior representação dessas ideias?
Sim, pode haver uma UE de geometria variável, que conceda mais a uns do que a outros. Mas não sei se a burocracia de Bruxelas iria muito nisso, porque se habituou a um certo poder regulatório. Acho que depois das europeias vão ficar três grandes grupos, ainda com o centro dominante, mas muitas divisões. O PPE é já um partido dividido…Mas o chamado centrão, que tinha duas fações – os socialistas relativamente moderados e os conservadores também relativamente moderados – foi completamente ultrapassado pelas novas questões da imigração, da nação, da religião. Não se adaptou. E como estamos em sociedades democráticas e representativas, apareceram novos partidos, que não são fruto de uma conspiração terrível, mas resultado de as pessoas não se verem representadas nos partidos que existiam. Por uma questão de protesto e depois de convicção, aderiram a eles. E esta revolução das redes sociais, que à partida é caótica, também acabou com o monopólio que existia de certas ideias.

 

E como vê a situação política em Portugal?
Já se viu que o Chega é incontornável para uma maioria fora da esquerda. Pode ter 10%, 15%, 17%, mas está nessa faixa e o PSD vai tendo uma hemorragia lenta. Seis meses depois do 25 de Abril, ironicamente, havia mais gente na cadeia por motivos políticos do que antes; só no 28 de Setembro prenderam uns 200 – fora os que não apanharam, como eu – e os partidos de direita que apareceram, como o Partido do Progresso, onde estavam as pessoas das novas gerações, foram proibidos; os eleitores da direita tiveram de se resignar a votar nos partidos do centro. Mas isso foi há 50 anos. E como esses partidos e as suas classes dirigentes não souberam ir-se pondo a par destes movimentos, perderam representatividade. Nós não temos movimentos anti-imigração, não temos separatismos, não temos as razões que levaram esses partidos na Europa a ter o apoio popular que têm. Mas há um cansaço com o regime e a situação péssima em que vivem muitas pessoas. Hoje, os filhos vivem pior do que os pais.

E isso pode potenciar mais o Chega?
Não sei… o Chega ainda está muito naquela fase de protesto e tem um défice de quadros médios. É preciso que comece a ter ideias pela positiva – e há temas em que um partido como o Chega podia pegar, como a desnacionalização da economia. Portugal não tem hoje um banco (exceto a CGD), um grande grupo industrial, não restou nada daquilo que era nobre na economia. Isso é um tema importante. Não se pode ser só do contra, o Chega tem de construir. Não se pode estar sempre zangado.

E o centrão acabou?
Pode haver um cenário muito interessante de reconstrução… Nas eleições de 10 de março, ficarmos na tal impossível maioria e haver no PS e no PSD a tentação de fazer um bloco central – que lhes pode sair caro a médio prazo, mas terem um reflexo Sánchez e deixarem as consequências para o dia seguinte. E o PSD pode jogar também, deixando ao Chega o ónus de o apoiar sem estar no governo, dizendo que se não for assim a esquerda vai continuar a governar por culpa do Chega. Acho que farão isso.

Artigo publicado na edição do NOVO de dia 25 de novembro