Ricardo divide a semana entre Genebra e Lisboa, ainda que o roadshow global em que leva a Inteligência Artificial (IA) aplicada à saúde o tenha feito quase correr mundo nos últimos tempos, com a fundação sem fins lucrativos Health AI, que lidera desde maio, na mala. Em breve estará pela América do Sul, à procura de financiamento. O sucesso da missão que abraçou quando deixou a Assembleia fá-lo sentir-se realizado, mesmo que reconheça o esforço que a nova condição traz a uma família com três rapazes, entre os 7 e os 19 anos. “Eu tinha definido um tempo de dez anos para a minha vida na política partidária, cujo fim foi sendo adiado por sucessivos convites que não tinha como recusar, mas chegou a altura de me dedicar a outros temas”, explica, quando lhe pergunto porque decidiu mudar. O futuro não passa pelo regresso à vida clínica porque a infecciologia tem de ser exercida em pleno e exige constante autorização e estudo. “Sinto que consigo ser mais útil no que agora faço”, diz, ainda que ocasionalmente se veja impelido a regressar, como aconteceu em covid, quando se voluntariou para ajudar no Hospital de Cascais todos os fins de semana, ou quando rebentou a guerra na Ucrânia e embarcou como voluntário para o Hospital de Lviv.
Conta que não faz grandes planos porque a vida se tem encarregado de o levar onde tem de estar, mas foca-se ao máximo no que está a fazer a cada momento. E isso terá sempre uma componente de serviço: é o que o deixa feliz. “O propósito de uma causa maior é fundamental; eu não seria feliz apenas a vender sapatos”, ri-se.
Por isso não teve grande hesitação entre escolher um lugar ligado à Comissão, que o obrigava à exclusividade, e a HealthAI, que juntava as suas paixões – a medicina e a tecnologia, por influência do pai – e lhe permitia conjugar esse serviço com real potencial transformativo da sociedade com a academia (dá aulas na Nova) e ainda alguma participação política. “Mas foi uma decisão tomada em família”, diz, assumindo que naturalmente a escolha pesa mais sobre a mulher, Teresa Anjinho – ex-deputada do CDS e ex-provedora adjunta da Justiça, hoje chair do Organismo Anti-Fraude Europeu (OLAF), que fica mais presa às crianças, ainda que os pais de ambos, que vivem bem perto, deem uma boa ajuda. A família alargada é unida na necessidade e no prazer, como as férias na Praia Grande e no Algarve, ou nos jantares de Natal em que se juntam todos e acabam invariavelmente num momento de karaoke em que Ricardo dá largas às suas interpretações de Elvis e Sinatra. “Acabo sempre sozinho, agarrado ao microfone”, ri-se.
À mesa d’O Madeirense – onde se lembra de vir desde criança com o pai, João, hoje presidente da Unicre -, cuidadosamente escolhida pelo sempre amoroso Manuel Fernandes, vai-me contando o seu percurso com a regra e ordem cronológica de uma cabeça iminentemente científica. Optamos pelas lapas grelhadas e pelo caril de gambas acompanhados a Coca-Cola e cerveja e viajamos uma geração, até Angola, onde o pai (e os avós e os bisavós) nasceu, em Benguela, e a mãe cresceu, em Luanda.
Seria na capital angolana, para onde a família se mudou depois de o avião comercial que o avô pilotava ser abatido por engano, que os pais se conheceriam e onde casariam – de outra forma, não poderiam vir juntos para Portugal, fugindo à guerra para estudar. Esse objetivo seria adiado logo em 1975, com o estado de sítio do país a levar os pais para o Canadá, empregando-se ambos numa fábrica de injeção de moldes de assentos de automóvel em Toronto. Mal foi possível, o pai inscreveu-se num curso técnico de ciências computacionais, ficando a mulher a trabalhar enquanto ele estudava, o que o levaria a um emprego como programador, já com Ricardo nascido, e lhe permitiria retribuir, trabalhando agora ele e cuidando do filho enquanto a mãe de Ricardo estudava Contabilidade.
“Lembro-me bem de estar em casa com ele, a brincar com um modem, ele a explicar-me aquilo”, conta. Tinha então 6 anos e já lia sobre programação. Os estudos, claro, fê-los em inglês e se os pais eram quase canadianos, “emigrantes integrados”, como lhes chama, faziam questão de trazer Ricardo às suas raízes como podiam. O que passava por o levar todos os fins de semana à zona conhecida como Little Portugal, onde compravam o Expresso, que ele também lia, alimentando desde cedo o gosto da política e dos jornais. Para o que ajudou o seu primeiro emprego, aos 8 anos.
“Comecei naquela coisa tradicional, de distribuir publicidade, porque me inscrevi – os meus pais nem sabiam… mas entretanto percebi que se ganhava mais com os jornais e apesar de ser só a partir dos 12, inscrevi-me.” Os pais descobriram quando o senhor que lhe foi entregar o trabalho a casa percebeu a idade de Ricardo e foi preciso ele assegurar-se que era responsável e o pai avalizar, mas conseguiu. Às 6.00, aos sábados, recebia as pilhas de suplementos e jornais, encartava-os e depois levava-os pelas casas e recolhia o dinheiro. “E fazia bom dinheiro com aquilo! Só em gorjetas, no Natal, chegava a ganhar 200 dólares”, recorda. Uma visita de estudo ao Parlamento Provincial de Ontário selaria o seu interesse pela política. Ficou fascinado com a ideia de um conjunto de pessoas selecionadas pela comunidade poderem representá-la e fez seu objetivo de vida, ainda nem adolescente, tornar-se num dos jovens que distribuíam copos de água e informações nessas reuniões de parlamentares. “Cheguei até a escrever ao primeiro-ministro, já então a reclamar por causa dos impostos”, conta a rir. A causa era nobre – uma jovem mãe, grávida, não devia pagar tanto – e mereceu resposta do gabinete de Brian Mulroney.
A sua vida, porém, estava prestes a mudar. Os pais queriam que os filhos tivessem em si mais portugalidade e começaram a procurar emprego por cá. Aos 11 anos, Ricardo chegava a Lisboa (a irmã tinha 2) e ficava chocado com os muros que via nas casas, pela separação física mas também por delimitarem a fronteira da preocupação pessoal. “Se o passeio estava estragado à porta de casa, ninguém se preocupava em arranjar; a junta que o fizesse… aquilo chocou-me”, recorda.
Mas as preocupações prioritárias eram outras, a começar pela língua portuguesa, que pouco falara e nunca estudara. O ano de transição no St. Dominics ajudou, bem como a explicadora que o acompanhou até ao 12.º ano – e que muito se terá orgulhado ao vê-lo chegar a deputado, um lugar de tribuno, fazendo-se entender como um nativo do português.
Nos Maristas, Ricardo Baptista Leite cumpriu os estudos e escolheu racionalmente seguir Medicina – estava dividido já pela atração pela política, mas sabia que podia ser político sendo médico, mas não a inversa. Fez o curso todo na Nova, no tempo regulamentar, mas sem prescindir do resto, antes envolvendo-se crescentemente nas atividades partidárias, depois de ter lido os manifestos partidários todos disponíveis e se apaixonar pelo discurso de Sá Carneiro. Identificava-se como social-democrata e disse-o aos pais – e daí surgiu um feliz acaso. A mãe estava numa fila, em Oeiras, quando um recém-saído da liderança do PSD Marcelo Rebelo de Sousa apareceu e, conversa puxa conversa, soube das inclinações de Ricardo. Dias depois, recebia uma carta em casa, com cumprimentos para a mãe e uma ficha já assinada a desafiá-lo a filiar-se – o que fez, até porque o associativismo académico não resultava no impacto que queria.
Na JSD de Cascais, cruzou-se logo com António Capucho candidato à câmara e foi desafiado para as listas e a campanha; escreveu o programa da freguesia, entusiasmou-se e sentiu que podia ter futuro. Chegou a presidente do gabinete de estudos da JSD já com o curso acabado e após ter passado pela Assembleia Municipal fez o internato no Amadora-Sintra, sendo depois colocado em Coimbra para o primeiro ano da especialidade, em Infecciologia. A saúde e a política foram as suas duas pernas – “acho vital manter-se a independência, quando se faz política, é a única forma de não comprometer a ação política e de ter liberdade para dizer não àquilo com que não se concorda” – e em 2007, a trabalhar no Egas Moniz, Capucho chama-o a presidente do PSD Cascais.
Mas vencidas as europeias e as autárquicas, em 2009 achou que tinha de se dedicar mais à profissão, o que o levou a afastar-se um pouco do partido para fazer diversas formações e a um estágio na OMS. Estava em Copenhaga quando o governo de Sócrates caiu e Ricardo era desafiado de novo, agora para deputado. “Tinha uma preocupação enorme com o impacto na saúde dos enormes problemas financeiros que sabíamos que havia e achei que podia dar um contributo, por isso aceitei”, explica. Primeiro suplente por Lisboa, entra na Assembleia em julho, com a renúncia de Fernando Nobre, e dedica-se logo a uma causa – algo que recomenda a todos os deputados ter: a comissão de saúde dedicada aos trabalhos do VIH/Sida, por recomendação de Luís Mendão, ativista e seu doente, e lá se cruzaria com Teresa Caeiro, Maria Antónia Almeida Santos, João Semedo e Bernardino Soares, de quem se tornou amigo até hoje. Juntos, construíram uma visão a dez anos para VIH, aprovada em plena troika e que perdurou. Um orgulho.
A vida parlamentar, em que se manteve até maio de 2022 – mantendo-se em cargos relevantes mesmo depois de Montenegro substituir Rui Rio na liderança do PSD -, trouxe-lhe mais do que o cumprimento da veia política. Trouxe-lhe amizades e jogos semanais de basquete (ainda tem um cesto em casa, no pátio) com Bernardino Soares, outros deputados, funcionários da Assembleia, polícias e até diplomatas. E trouxe-lhe Teresa Anjinho, ao lado de quem se sentava na Assembleia, na coligação PàF, ele na fronteira da bancada do PSD, ela na fronteira da bancada do CDS. E porque a Medicina não se podia exercer a fundo fazendo aquele trabalho é nunca quis dedicar-se apenas à política, trouxe-lhe a opção da vida académica, que mantém até hoje. E a fundação de uma ONG em 2017, a Unite (que conseguiu da ONU, na Cimeira Mundial de Saúde, em Berlim, o seu primeiro financiamento) que junta já mais de 500 parlamentares na área da saúde, de mais de 100 países, e trabalha com a OMS a apoiá-los na criação de políticas públicas de saúde assentes em ciência.
Já com os cafés na mesa, diz-se feliz e realizado com uma vida bem preenchida, que ainda lhe deixa tempo para a vida na paróquia e as corridas diárias – a natação, que chegou a fazer em competição quando criança, alimentando o sonho dos Jogos Olímpicos, ficou para trás. Agora com menor exposição pública, para felicidade da família – chegou a ser insultado na rua à frente dos miúdos -, consegue até organizar-se para voltar à peregrinação anual a Fátima, com o habitual grupo de jesuítas. E está já a planear mais uma viagem em família: o regresso a Luanda, onde quer que os filhos vejam o que ele viu quando ali fez regressar o pai, que o apresentou a um passado que não conhecia. “Preenchi, nessa viagem pelos sítios da infância do meu pai, um vazio que não sabia que tinha. E quero fazer o mesmo com os meus filhos”, diz.
Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 24 de fevereiro