A lançar aquilo que chama de uma biografia de Portugal e o Futuro, o autor explica esta viagem nos 50 anos da Revolução em que algumas coisas ficaram por cumprir, reconhecendo alguma desilusão pelo que faltou conquistar.

Nos 50 anos do 25 de Abril, esta é uma abordagem diferente e até provocadora… porque fazê-la e como está a ser recebida?
Esta abordagem não surgiu com intenção de ser provocadora no que respeita ao que se pensa sobre a Revolução ao fim de 50 anos, no entanto a reconstituição daqueles tempos acaba por aí ir desembocar, pois confirma que sem o livro de Spínola, Portugal e o Futuro, o pronunciamento militar dos Capitães poderia não ter sido tão bem sucedido como o que se verificou no dia 25 de abril de 1974. Os militares estavam cansados da guerra em África ao fim de 13 anos de conflito e, inspirados por Spínola, duvidavam da viabilidade do conflito para manter o império ultramarino português, mas são questões corporativas que dão origem ao posicionamento crítico.

Sem Spínola, seria mais difícil…
Sem as afirmações polémicas que Spínola faz no livro, o pressuposto ideológico com que posteriormente se olha para o golpe militar não existiria como o conhecemos, porque é o general mais prestigiado e com provas dadas em Angola e na Guiné que declara em seis palavras apenas o fim dessa guerra ao afirmar: “A vitória exclusivamente política é inviável.”

O que significou então Spínola para os Capitães?
Até ao fim do dia 25 de abril, significou tudo, pois foi ao general que deixaram receber o poder das mãos de Marcello Caetano e permitiram suavizar o programa do MFA antes de o tornarem presidente da Junta de Salvação Nacional. Sem Spínola, que transformou a Guiné num território para experiências de um pós-império, onde permitiu aos Capitães de Abril participarem num curso acelerado de rebelião contra a política ultramarina e lhes insuflou a ideia de que o debate ideológico poderia existir entre os seus oficiais, a história do 25 de Abril teria sido diferente. O livro Portugal e o Futuro, que começara a escrever antes das lutas corporativas dos militares, confirma que quando os Capitães apanharam o comboio, Spínola já estava na última estação.

Como é que se conta com originalidade uma história já tantas vezes relatada e muitas delas até com algum embelezamento, natural do decorrer do tempo?
Enquanto estiverem vivos muitos protagonistas daqueles tempos, há a possibilidade de se poder recolher memórias e outras opiniões que não a dos Capitães vitoriosos, principalmente porque a narrativa dos vencidos perdeu o seu lugar na História. Num dos testemunhos recolhidos, o de Ramalho Eanes, o general considera que o livro de Spínola foi “enclausurado” em vez de ser debatido e estudado como devia. O que fiz foi escutar tanto os que foram silenciados como os que venceram e trazer para a atualidade das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril uma reflexão sobre acontecimentos que têm sido marginalizados. A proposta foi fazer a biografia de Portugal e o Futuro e dessa forma mostrar como o regime foi incapaz de proibir uma verdadeira declaração de guerra ao imobilismo que os portugueses e as instituições viviam, até porque o livro do general ia repescar teses sobre uma Comunidade Lusíada que o próprio Caetano defendera em 1962. Spínola jamais pretendeu destruir o regime que durante décadas serviu, antes desejava com o seu livro impulsionar uma renovação do legado salazarista e de uma Primavera Marcelista falhada, contudo não foi esse o entendimento de Caetano, dos ultras do regime e do Presidente Tomás, que logo rebatizou o livro com o título Portugal Sem Futuro. Com o livro de Spínola, o impasse na governação transformou-se num pesadelo ainda maior – que os oficiais em rebelião aproveitaram muito bem.

50 anos depois, esta viagem aos bastidores da Revolução mostra o quanto mudou em meio século. Mas há alguma desilusão quanto ao que se julgava ser possível fazer em 1974 e que nunca aconteceu?
Os Capitães de Abril serão responsáveis por muito da deriva no pós-25 de Abril por terem voltado atrás na intenção de regressar aos quartéis. Que foi o pensamento de, por exemplo, Salgueiro Maia, e até do próprio Otelo Saraiva de Carvalho, no início; mas o povo português também os levou nesse sentido logo às primeiras horas da manhã do dia 25, vindo para a rua e transformado um golpe militar numa revolução. Cinquenta anos depois, poucos serão os que não ficaram desiludidos com a mudança que o 25 de Abril deveria ter conseguido para Portugal.
Basta ver o estado em que o país se encontra, designadamente a imensa corrupção de que os populistas se aproveitam para apagar qualquer remota “conquista de Abril”. Certo é que nunca mais houve um livro que tivesse um efeito tão gigantesco na sociedade civil e nos militares como o Portugal e o Futuro. Que só viu a luz do dia pelo receio de Caetano de o proibir e por via de um parecer de Costa Gomes que foi usado como desculpa por todos os responsáveis do regime. Os dias que seguiram à publicação do livro e a cinco edições sucessivas em dois meses, num total de 230 mil exemplares, foram como os de um funeral anunciado. Tanto que nem a PIDE e todos os que deviam ter defendido o regime a 25 de abril o fizeram, já que Portugal e o Futuro mostrara de forma clara o estertor do regime.

SÚMULA DE CAPÍTULOS: O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães

A operação Portugal e o Futuro
Esta é a história da maior operação editorial jamais concebida em Portugal, a do livro Portugal e o Futuro, lançado no dia 22 de fevereiro de 1974 e que no mês que se seguiu fez rodar as rotativas a alta velocidade em sucessivas reimpressões, com vendas nunca vistas e uma repercussão social e política inédita. O autor era o general António de Spínola (1910-1996), que, com a sua reflexão sobre a guerra colonial e a contestação à política ultramarina em curso, derrubou de imediato a total credibilidade do governo de Marcello Caetano e obrigou-o a pedir a demissão – recusada pelo Presidente da República com o argumento de que não era “altura de abandonar o barco e ninguém sai. Se for ao fundo, vai tudo, vamos todos” – e em poucos dias alterou a perceção dos muitos milhares de portugueses que compraram ou leram o livro ao terem conhecimento das propostas do prestigiado militar.

Esta é também a história de um país cansado de uma guerra em África desde 1961 e que nesse dia descobriu com Portugal e o Futuro que o Estado Novo era incapaz de apresentar soluções para o grave impasse político e militar em que o país estava mergulhado em três frentes dos territórios ultramarinos, tendo o livro convencido também os militares renitentes a apoiar o Movimento dos Capitães, que pretendia protagonizar uma revolta que apeasse o governo. Bastou-lhes ler o que o mais respeitado general das Forças Armadas portuguesas e o derradeiro e poderoso cabo de guerra europeu sentenciara para mudarem de opinião. Spínola decretara para sempre e da forma mais inesperada ser impossível uma vitória militar que mantivesse um império ultramarino português de vários séculos. O efeito nacional de Portugal e o Futuro foi tão devastador para o regime, abalando-o de alto a baixo e unindo militares desunidos, que deixou o sistema político feito à medida de Salazar e que Marcello herdara totalmente exposto ao golpe militar do 25 de Abril de 1974, sem capacidade de reagir ao cerco a Lisboa.

O general Spínola não estava só na “operação” que ludibriou o ministro da Defesa e o presidente do Conselho para que Portugal e o Futuro chegasse às livrarias de todo o país sem que os superiores hierárquicos, bem como a ativa censura da polícia política, tivessem aprovado a publicação de um livro que era um verdadeiro golpe de Estado em 248 páginas. Primeiro, escondeu o conteúdo do livro de todos os que o poderiam impedir de ser publicado, com a grande cumplicidade de um parecer do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o general Costa Gomes; em seguida, assegurou, num contrato milionário, a colaboração de um editor que teve a coragem de desafiar o regime, bem como de imprimir uma quantidade de exemplares nunca vista, 50 mil, numa primeira edição que inundaria o país como a vaga gigante de um tsunami, impossível de ser travada. Fruto de uma estratégia planeada ao milímetro, própria de um general que se destacara no feroz campo de batalha da Guiné até há poucos meses, o lançamento correu ainda melhor do que seria seu desejo e o impacto foi, como confirmam 50 anos depois várias testemunhas, o de uma verdadeira “bomba”. A enorme explosão que provocou, concordam também, iria ser o “detonador” da Revolução de Abril.

Se Spínola conseguira que o livro ultrapassasse em toda a linha o crivo censório do Estado Novo através de uma teia de enganos com que iludira as altas autoridades de que dependia, sem o segundo estratego da operação Portugal e o Futuro, a “bomba” poderia não ter chegado às várias gráficas onde foi impresso em simultâneo – se fosse apreendido, seriam vendidos clandestinamente os livros que se salvassem -, nem ter-se evitado a apreensão do manuscrito. O autor-general teve no editor da Arcádia, Paradela de Abreu, o parceiro ideal e capaz de levar a bom termo um desafio editorial inédito durante todo o Estado Novo, concretizado à vista de todos e imparável. O seu perfeito plano de ação fez algo impossível à época e os milhares de exemplares impressos chegaram às livrarias naquele dia 22 de fevereiro. Não foi por acaso que o editor se empenhou na aventura de publicar o conjunto de cinco propostas que, justifica Spínola na introdução, resultavam de um “imperativo moral de quem não pode conter-se”. Paradela de Abreu estava ciente de que o ensaio do vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas não seria apenas o imenso sucesso comercial por que tanto lutara e para o que utilizara todo o género de expedientes de forma a seduzir o general a confiar-lhe o original, mas que o livro tinha outro importante significado: o fim do regime.

Portugal e o Futuro foi nesses dias o tema que dominou de norte a sul, e nas províncias ultramarinas, todas as conversas de café, o debate político e as intrigas políticas internas e da oposição realizadas sempre às escondidas, durante as várias semanas até ao golpe militar, provocando uma quebra de confiança nunca vista durante o regime criado por Salazar quase cinco décadas antes. Apesar das várias crises a que o longo reinado do Estado Novo não escapara, jamais o governo se confrontara com um terramoto de tal dimensão, nem com as réplicas sucessivas que o livro continuou a provocar. E a principal causa deste abalo era a afirmação que se sobrepunha a todas as outras no livro e que colocava em causa a manutenção a todo o custo da guerra colonial: “Podemos assim chegar à conclusão de que, em qualquer guerra deste tipo, a vitória exclusivamente militar é inviável.” E ainda se ia na página 45!

O esquema para proteger o livro
O receio de a publicação de Portugal e o Futuro poder ser travada era grande e Paradela de Abreu estabelecera um “esquema” para o evitar. Manobras de ocultação que o general Spínola já conseguira levar a bom termo através de um verdadeiro ato de magia hierárquica e muitos enganos, de forma a ultrapassar a censura e a não aprovação sem parecer positivo do chefe do governo e do ministro da Defesa, contornado pela opinião favorável do general Costa Gomes para com a obra do seu vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Após as manobras de diversão de Spínola, o grande obstáculo estaria na ação da PIDE-DGS, tendo Paradela de Abreu montado uma verdadeira operação de encobrimento dos trabalhos de preparação editorial de Portugal e o Futuro. António Valdemar recorda como tudo foi feito: “Pouco depois deixei de ter o livro em casa. O Paradela alugou um andar por cima do Apolo 70 para se trabalhar o livro e evitar que se a PIDE fosse a minha casa o pudesse ver. Não tinha manuscrito nem provas em casa, estava tudo nesse apartamento.” Depois de ele e o Carlos Eurico da Costa terem lido o livro, “passa-se tudo com enorme rapidez”, acrescenta. “O problema foi quando soube que o Paradela de Abreu decidira entregar o livro à gráfica e temi que todo um segredo tão bem guardado pudesse estar em causa. Quatro dias depois, quando fomos almoçar a um restaurante na Rua de Santa Justa, o Paradela revelara: ‘O livro está na tipografia!’ Perguntei-lhe qual era a tipografia e respondeu ‘Livros Horizonte, no Arco do Carvalhão’. Aí eu disse-lhe: ‘Ó Paradela, o Rogério dos Livros Horizonte é do PC. Neste momento o PC já tem a coisa toda.’” Recorda a resposta do editor: “Escapou-me essa trapalhada.” António Valdemar diz, tantos anos depois, que desconhece “se o proprietário da gráfica guardou a confidencialidade”.

Poucas semanas antes de o livro chegar às livrarias (a data escolhida fora 22 de fevereiro), dá-se um encontro secreto entre Paradela de Abreu e Carlos Eurico da Costa para organizar o lançamento. Que precisava de ser espetacular o suficiente para evitar a apreensão dos exemplares pelas autoridades como para gerar grande procura imediata por parte dos leitores. António Valdemar participa nessa reunião secreta, desconhecida tanto de Spínola como de qualquer outro elemento da editora, e considera-a fundamental para o sucesso do lançamento. Relembra as várias fases que se seguiriam: “O aparecimento do livro teria de coincidir com notícias nos jornais República e Expresso; em simultâneo, o comandante Ferreira, da TAP, levaria dezenas de exemplares para entregar a jornais e livrarias de Angola e Moçambique.” No mesmo apartamento alugado para fazer a revisão final de Portugal e o Futuro, Valdemar ocupou -se então da redação dos textos que explicariam a jornalistas portugueses e estrangeiros o teor do livro: “Fizeram-se várias sínteses, três mais curtas e uma maior; esta foi enviada, disseram-me, a alguém que era da CIA e que a entregaria ao Expresso. Não tive nenhuma participação nisso, foi tudo feito pelo Paradela.”

A gestão do lançamento foi minuciosa e elaborada: “Era necessário que a notícia saísse primeiro no República. Ou seja, o general teria de ir à redação entregar um exemplar ao diretor Raul Rêgo. E assim acontece: o general vai formalmente oferecer o livro logo pelas 9.00. Segundo o Carlos Eurico da Costa, teria de ser por essa hora, antes da balbúrdia provocada pela censura. Entretanto, ele já entregara a José Ribeiro dos Santos um dos primeiros exemplares e um dos meus resumos do livro, que este entregaria ao Rêgo, bem como a notícia do livro devidamente redigida. Tal como se previa, Rêgo aceitou e entregou o texto ao diretor-adjunto, Vítor Direito, para enviar para a tipografia. Era essa a estratégia montada.”

Se o plano funcionou perfeitamente, houve um acrescento inesperado que potenciou o texto redigido por António Valdemar: “O Rêgo vai almoçar à Casa da Índia, na Rua do Loreto, com Vítor Direito; enquanto isso, o Álvaro Guerra, que era quem fazia o fecho do jornal, ao ler a notícia apercebe-se da importância de Portugal e o Futuro, muda a matéria de lugar e faz um título para a primeira página, devastador: “‘A guerra está perdida’, afirma o general Spínola, no livro Portugal e o Futuro, publicado hoje.” Quando Rêgo e Direito regressam, já com o jornal na rua, têm uma premonição: ‘O República vai ser suspenso.’ Para ambos, era impossível fugirem a todas as retaliações. Mesmo que fosse visível que o regime caía aos bocados, o medo perdurava e como a censura fora ultrapassada tudo poderia acontecer. Olharam, estupefactos, para a primeira página. Ralharam com o Álvaro Guerra, mas o livro já estava à venda em sítios estratégicos, escolhidos pelo Paradela de Abreu, e no domingo de manhã já se vendia em Luanda. Foi uma coisa tremenda! No República sai numa sexta-feira e no sábado é a vez de o Expresso o divulgar, naquilo que Marcelo Rebelo de Sousa e Pinto Balsemão transformaram em várias páginas. Depois, foi uma bola de neve.”

O falso monócolo
A vaidade de Spínola é constantemente assinalada por todos os que conviveram com o general. O que se pode comprovar, por exemplo, em duas das fotografias que a revista brasileira Manchete escolheu para a reportagem de várias páginas sobre o 25 de Abril de 1974, com o general em grande destaque na capa, e que têm como legenda: “Horas antes de tomar posse como presidente da Junta de Salvação Nacional, o general Spínola foi ao barbeiro para ficar bem apessoado.” O cuidado com a imagem pública era habitual em Spínola e desde cedo podia ver -se o seu aprumo, como na fotografia em adolescente no Colégio Militar, tendo ao longo da vida construído a sua personagem como se fosse um ator de teatro preocupado em compô-la com todos os acessórios para ser identificado no papel que pretendia representar. Daí o uso de luvas de pelica em circunstâncias inesperadas, como nas visitas de inspeção ao mato, apoiar -se sem necessidade no pingalim e, principalmente, o famoso monóculo. Esta peça está sempre na memória de quem o conheceu e nas imagens que correram mundo, como a ilustração de capa da revista Time dedicada à Revolução em Portugal.

O capitão Jorge Golias faz esta descrição do general: “Spínola cultivava uma figura que ficou célebre e lhe marcou forte carisma. Para isso usava botas altas, de cavaleiro, uma boina farta e descaída, luvas de pele, pingalim e a inevitável luneta de um só vidro, que lhe granjearia [na Guiné] a alcunha de Caco, ou com a marca local Caco Baldé.” A alcunha Caco Baldé não surge por acaso, tem muito que ver com a realidade guineense, como explicam vários militares que se confrontaram com Spínola no território e, décadas depois, relembram essas memórias – e os receios – que o general e o seu monóculo lhes provocaram.

Há mais histórias sobre Spínola e o seu monóculo, como a do capitão Carlos Matos Gomes ao tomar conhecimento de uma particularidade do famoso artefacto com que o general filtrava o olhar e descobriu o inesperado: “Não tinha graduação!” Conta o que soube sobre a peça decorativa por outro conhecido: “Um dia, Spínola pediu a alguém que veio a Portugal de férias para ir a um oculista que lhe fornecia os monóculos e levar de volta à Guiné uma caixa com vários que tinha encomendado. O oficial fez-lhe o favor, mas não resistiu à curiosidade e experimentou um, apercebendo -se logo que não tinha graduação. Era um monóculo verdadeiro em todos os aspetos, redondo e com saliências dentadas para ajustar ao olho, mas sem préstimo para ver. Quando precisava mesmo de ajuda, usava óculos graduados. Tinha essas coisas que o faziam sentir-se importante.”

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 17 de fevereiro