No outro dia apanhei-me a torcer a cara ao acompanhar um dos debates televisivos para as próximas eleições europeias, no dia 9 de junho. Apesar do novo normal no debate político ser o ultrajante, naquele preciso momento, o debate decorria pacificamente. O que me captou a atenção foi precisamente uma questão colocada pelo jornalista: sobre a democracia iliberal.
É hora do jantar. No preciso momento em que o candidato ao Parlamento Europeu é obrigado a apresentar o seu plano de contenção da democracia iliberal no seio da União Europeia, o espetador estaria passivamente a ouvir o debate, como som de fundo para os afazeres da vida normal- a pensar nas contas para pagar, com a leve sensação que se esqueceu do aniversário de alguém, simultaneamente a lidar com a urgência que ouve na voz do filho a pedir-lhe para lhe ir comprar cartolina para o projeto de Educação Visual do dia a seguir. Mas sim, refletir sobre democracia iliberal. Sendo um conceito profundamente abstrato que não se coaduna com as urgências do português comum, este conceito fugidio e estrangeiro passa pelos crivos da comunicação social. E, portanto, lá continua o candidato, como som de fundo na sala de jantar, a utilizar o discurso cansado do costume, mas que funciona sempre: “não toleramos violações aos direitos humanos, mas a União Europeia é feita de divergências.”. Isto não significa absolutamente nada, mas em questões abstratas (apesar de existenciais para o modo de vida europeu) nunca exigimos dimensão das palavras que ouvimos, porque não têm realização prática na vida diária dos que votam.
Infelizmente, sou o alvo perfeito para este tipo de questão: e nesse momento torci a cara. O debate sobre o Estado de Direito e a democracia “iliberal” está em estado de crise, quando nos contentamos com respostas vagas. Não me atribuo mérito suficiente para revolucionar o estado do debate, mas proponho-me a abaná-lo trazendo uma abordagem nova sobre a democracia iliberal – a abordagem de viver nela.
Vivi em Budapeste o tempo suficiente para observar a cidade mais profundamente do que um turista; mas não o tempo suficiente para sentir que fazia parte dela. Tal como no filme “Lost in Translation” de Sofia Coppola, encontrei-me na cidade e predispus-me a nela ser estrangeira. Assim passei 4 meses de Erasmus na Hungria. Precisamente por a mim me interessarem as questões inúteis, achei por bem, de entre todos os destinos à minha disponibilidade, ir precisamente para a Hungria. À parte das festas (mas talvez falar da quantidade ridícula de festas a que fui em Budapeste não seria por bem num texto sério sobre o estado de saúde da democracia europeia) é genuíno quando digo que sentia uma urgência em mim de sentir as dimensões palpáveis desse conceito estranho- democracia iliberal.
Quando me mudei para a Hungria, ia mentalmente preparada: tinha consciência do Relatório Tavares sobre a violação dos direitos fundamentais na Hungria, tinha perceção da atitude terrorista do governo Orbán nas instituições europeias. Portanto, mais atenta que a grande maioria da população. Observava a vida da cidade e a vida dos húngaros: a cidade é limpa e funciona, as discotecas são lugares seguros para fazer figuras tristes, nunca me senti minimamente intimidada enquanto mulher ou estrangeira. Procurei incessantemente sinais da democracia iliberal e da extrema-direita na rua. Foi aí que entendi a parte mais assustadora de viver numa democracia iliberal: não sabes que vives nela porque a democracia iliberal não dá sinais. O único sinal de alarme é precisamente esse. Durante 4 meses, não vi um único panfleto político colado nas fachadas, nenhum graffiti revolucionário, nenhuma manifestação de rua, nenhum outdoor de apoio a Viktor Orbán, e todos os húngaros com quem me cruzei recusavam cordialmente partilhar opiniões políticas. Foi um silêncio político sepulcral estranho, vindo de uma portuguesa habituada a ver a rua cheíssima de cartazes políticos e uma comunicação social cheia de tudólogos.
Esta experiência pessoal mudou profundamente a minha perspetiva sobre a “democracia iliberal”, e deixaram de me satisfazer as respostas medíocres dos meus representantes. O debate tem de começar a partir destes exemplos concretos da vida real, ou o debate estará para sempre viciado, por não elucidar aqueles a quem se dirige. E tendo isto em conta, não se esqueçam: dia 9 de junho, votem nas eleições europeias.