A cadeia de eventos que, qual bola de neve, precedeu a grande final da Eurovisão, gerou em mim uma renovada reflexão sobre o que significa ser “apolítico”. Apesar de este texto não ser sobre a Eurovisão, os erros sucessivos cometidos pela organização são um exemplo simples de como o “apolítico” é, em si próprio, uma atitude política, que, levada às últimas consequências, conduz a uma censura fascizante.
Num sumário que se cinge ao essencial, a Eurovisão tem uma política histórica de ser um festival de música “apolítico”, no sentido negativo da palavra, pela ausência forçada de bandeiras, objetos, palavras aos quais se possam atribuir conotações políticas, sob a pena de pesada sanção pela EBU (European Broadcasting Union, organizadora da Eurovisão).
No entanto, ser apolítico é, em si, uma escolha política. Pode não ser óbvia em tempos de paz, já que não somos confrontados com questões existenciais, como o lado da História queremos ficar. Mas em tempos de guerra vê-se a atitude apolítica tal e qual como é: grotesca. As consequências desta atitude chegaram a níveis absurdos na Eurovisão.
Ao contrário da expulsão pacífica da Rússia do festival desde a invasão à Ucrânia, a opinião pública (europeia) sobre Israel não é tão consensual, o que levou a uma atitude ingénua (ou não) da organização de manter Israel a competir este ano.
Estava-se mesmo a ver: Israel tomou de assalto as redes sociais numa tentativa de, ao ganhar o concurso, legitimar a sua conduta na faixa de Gaza. Houve uma mobilização massiva de sionistas que levou a que, apesar de Israel não ganhar o concurso, ser um dos países com mais votos do público.
Como pôde ver-se, a atitude “apolítica” da organização levou a uma campanha gigantesca e inorgânica de tentativa de legitimação de uma ocupação genocida. Mas claro, e como de costume, o outro lado do conflito foi absolutamente marginalizado e não teve sequer a oportunidade de se fazer valer na guerra da legitimação mediática. Não será este mais um sinal que deixou de ser (ou nunca chegou a tal) um conflito, mas sim uma aniquilação?
É preciso alertarmo-nos para o fascismo do “apolítico”, dos movimentos de “não defendo nem um nem o outro, sou pela paz”. OK, “paz”. Que bonito, hein? Nunca vi ninguém a não ser pela paz. “Paz” é uma palavra universal, e é por isso que é frouxa. A verdadeira paz nunca foi alcançada sem o tomar de um lado, sempre foi conquistada a ferro e fogo, numa defesa irredutível e sem cedências.
Claro que, quando se dizem “defensores da paz” não precisam de desenvolver nenhum raciocínio sobre o que defendem, porque não defendem nada. É uma ausência de opinião e, no mundo global de hoje, não me convencem que não é intencional. Quem se recusa a participar no discurso dos valores fundamentais que queremos preservar em tempos de guerra faz um favor ao statu quo. Não é difícil perceber qual é o statu quo no conflito Israel-Hamas, entre uma insurreição atabalhoada e desesperada que teve como consequência uma retaliação esmagadora e genocida.
Com as premissas que levanto a consequência lógica é que o afastamento intencional da questão mais essencial de todas – a paz e autodeterminação dos povos – é cobarde. E a cobardia nunca esteve do lado certo da História.
Contra a cobardia, informem-se. Contra a cobardia, desconfiem do “apolítico”. Contra a cobardia, Palestina livre.
Estudante de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto