Durante meses, sem pudor, e sobretudo submetendo uma análise séria às crenças e às querenças pessoais, optou-se por digestões simplistas de coisinhas e apontamentos laterais, desfocando da mensagem e da vontade manifesta dos portugueses — pior, tentando influenciá-la à custa de lhes pôr orelhas de burro sempre que se reduzia os candidatos eleitorais da direita a maus alunos no banco de escola primária, insultando-os e achincalhando-os, bem como aos que neles pudessem votar. Quase fazendo crer que só a esquerda tem legitimidade para ser eleita e para governar. E qualquer resultado diferente deve ser amachucado e deitado para o lixo.

Durante meses, tentou-se por todos os meios desvalorizar aquilo que era óbvio e atirar areia às pazadas para os olhos dos eleitores, querendo influenciar-lhes a vontade de quebrar com o que não podia de forma nenhuma satisfazê-los — por muito que se repita que Portugal está fantástico, poucos, se alguns, sentem melhorias num país cujos serviços públicos rebentaram por dentro, cujos funcionários, forças de segurança e agentes económicos sofreram durante anos com o desprezo dos decisores políticos, de cujos jovens e muitos já não tão jovens vão desistindo todos os dias.

E ouvir ao PS, que atirou o país para três bancarrotas, recomendar contenção nas contas públicas é só de rir. É verdade que aprenderam – e há mérito de Medina em nunca ter cedido à pressão socialista para empenhar em aumentos incomportáveis e novas esmolinhas os fundos sem precedentes (que permitiram aos governos socialistas que passasse despercebida a ausência de investimento público) e uma tão elevada como imprevisível receita fiscal, conseguida à boleia da carga fiscal mais alta de sempre e de uma inflação recorde. Mas o rumo das contas certas foi estabelecido anos antes de Costa se sentar ao volante — e aliás contra a vontade dos socialistas, atual líder incluído (lembra-se dos alemães a quem “até tremem as pernas se não pagarmos a dívida”?), e do resto da esquerda –, foi encetado com o governo de Passos Coelho e as dolorosas medidas que foi obrigado a tomar por um acordo assinado entre o PS e a troika e dado o estado miserável em que encontrou o país e os cofres públicos.

Mas nas legislativas de ontem, claro, ganharam todos. Apesar de os portugueses se terem revoltado contra o atestado de estupidez que diariamente lhes empurravam goela abaixo e terem virado os seus votos esmagadoramente para a direita, a esquerda ganhou toda. Foi mais difícil do que é costume, mas lá se foi conseguindo encontrar argumentos para a vitória do BE e do PCP (“conseguimos mais votos”, disseram, apesar de se manterem reduzidos ao que os próprios apelidaram de “partido do táxi”), para a vitória do PAN (“alargou a votação em todo o país”, apesar de ter estado quase até ao fim da noite eleitoral a rezar aos santinhos dos animais domésticos para conseguir manter a sua deputada única), e até a derrota do PS (por muito pouco, mas representando uma queda aos infernos por comparação com as votações dos anteriores), dignamente assumida por Pedro Nuno Santos, se transformou numa vitória. Porque “era o melhor que lhe podia ter acontecido”, dizem agora os mesmos que nunca duvidaram do êxito do já não tão jovem turco.

A verdade é que, numa eleição que teve a maior participação das últimas décadas — comprovando a desilusão ativa dos portugueses e a sua vontade de virar a agulha da governação com um nível de abstenção tão baixo como não se via desde as maiorias absolutas de Cavaco Silva, o último tempo em que Portugal cresceu e as vidas das pessoas verdadeiramente melhoraram –, Rui Tavares foi o único dos líderes à esquerda que cantou vitória merecidamente, ficando empatado com o PCP.

Mas se a direita foi, contra tudo e contra todos, a inquestionável vencedora destas legislativas, também aqui houve derrotas. Desde logo da IL, que não descolou dos oito deputados que conseguira já em 2022, mas também da AD, fruto de um erro de principiante: à boleia dos votos que voaram para o ADN porque ninguém se lembrou de fazer soar as campainhas antes de ser tarde demais, terá perdido até cinco deputados — o suficiente para poder conseguir destacar-se de quaisquer combinações de esquerda e até mesmo da direita, para governar com outra tranquilidade.

Vencedor incontestável, ontem, houve mesmo só um: André Ventura conseguiu capitalizar muita da insatisfação generalizada e crescente ao longo dos últimos oito anos, mas sobretudo tornou-se a voz de classes sociais ignoradas há demasiado tempo (forças de segurança, meio rural, jovens…) por uma Assembleia cada vez mais distante do Portugal real e autista em relação às vontades e aos problemas da vida dos portugueses. Sozinho e acossado, André Ventura conseguiu a inédita conquista de um distrito (desde 1991, só PS e PSD haviam conseguido esse nível de representação), o Algarve, e contradisse com factos a opinião dos mui letrados que já lhe antecipavam uma vitória de Pirro (“nas últimas sondagens, o Chega até está a recuar”, lembra-se?), quadruplicando o número de deputados no Parlamento.

E pode ainda subir dos 48 para os 50 assentos parlamentares se, como alguns acreditam, conseguir assegurar um deputado por cada um dos círculos eleitorais da emigração (Europa e resto do mundo). A bem da perspetiva: PS e AD não chegam a ter 80 cada um.

O que impõe que se retire algumas conclusões. Em primeiro lugar, o Chega não é já um partido de protesto, é (ironicamente) um partido do sistema, que mais de 1 milhão de portugueses considera que os representa. Segundo, não é possível virar costas a quase 20% dos eleitores portugueses (numa votação com enorme participação, sublinhe-se) — a vontade popular tem de ser respeitada, qualquer que seja a forma como se exprime. Terceiro, finalmente a maioria dos portugueses (pelo menos 53%) não tem vergonha de se dizer de direita, curou-se dos traumas, viu e sentiu na pele a falência das políticas de esquerda e já não engole a narrativa que se conseguiu impor durante 50 anos e à qual alguns continuam a agarrar-se com unhas e dentes, cada vez mais distanciados daquela que é a realidade.

E o que se faz com isto? Governa-se como antes se governava, com menos conversa mole e mais sentido de Estado, com menos promessas eleitoralistas bacocas e mais responsabilidade e responsabilização, visando resultados para o país, e não para promover os próprios interesses. Governa-se com diálogo que acrescente, com seriedade, com compromisso e com trabalho empenhado em melhorias consistentes e de longo prazo, em lugar de se persistir na imbecilidade de pôr pensos rápidos em feridas abertas e infetadas, de espoliar os portugueses para ter como lhes distribuir esmolas.

É este o desafio que se apresenta a Luís Montenegro — que ontem teve, em nome próprio e contra uma parte do seu próprio partido, a primeira vitória. Se conseguir cumpri-lo — no contexto mais difícil que alguma vez um governo enfrentou em Portugal, não apenas pela nova equação parlamentar mas também pela necessidade de cumprir investimentos e reformas exigentes e urgentes num curto período, num enquadramento internacional de arrefecimento económico e sem descurar as contas públicas –, o líder social-democrata será o derradeiro vencedor destas legislativas.

Diretora