Estamos ambas em dia de comer peixe e O Madeirense nunca desilude na frescura do espada, que vem acompanhado de grelos salteados e delicioso esparregado da casa. Com a “operação verão” em curso, ficamos pela água e não ficamos nada mal, que os pratos da casa têm sabor para dar e vender. E sempre cedemos ao bolo do caco com manteiga de alho a derreter, que ali nunca falha.

A sorrir com os olhos, Ana Trigo Morais arranca na conversa e não é difícil engrenar. Acabada de ver renovado o seu mandato à frente da Sociedade Ponto Verde, é dessa mais recente – mas já antiga – paixão que me vai falando, explicando o muito que há por fazer na área da sustentabilidade e o quanto gostaria de contribuir, além do que já faz, para desenvolver esse desígnio de ascender ao patamar alemão da inovação e desenvolvimento no sector dos resíduos. “Há imenso caminho pela frente e as metas de Bruxelas vão apertar”, avisa. Entusiasma-se com o tema: “Este sector é riquíssimo, a reciclagem tem um lado importante de mudança de comportamentos, a biodiversidade que é preciso cuidar… E há imensa inovação a acontecer nesta área, coisas incríveis estão a ser feitas por toda a Europa.” Ri-se com o próprio interesse, a que os filhos tantas vezes torcem o nariz. “Até o lixo tem encanto quando nos comprometemos. Eu sou apaixonada – as ineficiências do Estado é que me põem doente.”

Ana é um portento de energia e simpatia, a conversa flui com facilidade e o entusiasmo pelo que faz não precisava de legenda. Tem tanto de descontração e sentido de humor quanto é aguerrida nas suas causas.

Filha do meio de um militar feito comerciante e de uma “menina de bem” que falava línguas e trabalhava como secretária no Porto, nasceu em Leça da Palmeira e conta que teve uma infância muito livre e feliz à beira-mar. “A minha família tem ascendência nos cristãos-novos transmontanos e temos primos padres e freiras, daqueles superdivertidos, nada formais. Quando estávamos todos, éramos 17! Eram tempos muito bem passados”, recorda, ainda que assuma que a mãe lhe temperava a energia com condições de empenho nos estudos e hábitos de leitura, que a contagiaram.

Talvez venha dessa educação pelo sentido de propósito a sua exigência – com os demais e com ela própria. E a vontade de construir, de deixar marca no mundo. “Em tudo quanto faço tem de haver sentido de entrega, só me meto em coisas nas quais possa acrescentar”, confessa-me, assumindo que aos 57 anos reconhece aquilo que sempre negou: a ideia de que uma mulher gere de forma diferente. “Hoje vejo claramente esse toque feminino, eu lidero com empenho, detalhe, entusiasmo, caring… Mas também com pulso e determinação, com todos os Valentins Loureiros que tenho dentro!” Ri-se e faz-me rir com a espontaneidade e desprendimento que traz nas palavras e nos gestos. Quem faz a diferença não tem de se preocupar muito com parecer que faz. E Ana Trigo Morais é um excelente exemplo.

Conseguir fazer, transformar, “ajudar a atingir conseguimentos” é o seu desejo. E isso levou-a a arregaçar as mangas desde cedo, trabalhando enquanto tirava Direito. “Já em miúda ajudava o meu pai, gostava de pôr mãos à obra. E depois de acabar o liceu em Matosinhos e entrar para a Católica, foram aparecendo coisas, e eu agarrava tudo”, conta. Fez o que as miúdas novas faziam, desde ser hospedeira em eventos a um part-time no Aeroporto Sá Carneiro que lhe permitia cruzar-se diariamente com gente de todo o mundo. “Parecia-me uma vida de sonho. Foram tempos gloriosos!” E não fosse a insistência dos pais em que se focasse na licenciatura, talvez tivesse tido uma vida diferente. Mas aproveitou tudo quanto recebeu. “Esses trabalhos deram-me muita experiência, foram muito enriquecedores.”

Ana não desaproveita nada do que a vida lhe traz. Atenta desde muito nova às conversas à sua volta, ganhou fascínio por Sá Carneiro e interesse em perceber o que a rodeava, entrava nas discussões políticas e de ideias, em casa e na faculdade, acabando por se meter num grupo de reflexão que organizava tertúlias e conferências a que foram os mais ilustres convidados, de Cavaco Silva a Freitas do Amaral. “Eu tinha 17 anos e era minha tarefa fazer os cartazes – costumo dizer que nasci para trabalhar, sou mais feliz como formiga do que como cigarra”, ri-se. O direito trouxe-lhe a sensibilidade política e a noção de que gostava muito mais da parte dessa atividade que não se prendia a partidos e por isso nunca cedeu aos convites, nem mesmo para liderar uma secretaria de Estado. “A minha paixão é gerir recursos ao serviço de causas.”

Por vezes, isso trouxe-lhe desilusões, mas sempre se aprende. “Eu achava a advocacia uma coisa linda, de filme, mas quando comecei a trabalhar em tribunais fiquei chocada porque não era nada do que imaginava – aquilo era assustador, com os escrivães, a deferência para com os juízes, os casos oficiosos… Eu era uma miudita e tinha de defender pessoas nos casos das FP25, sem qualquer maturidade.” Porque não é de ficar parada, virou-se para o que a levaria à parte da política que a apaixona: ajudar a construir uma sociedade melhor, contribuindo para agilizar políticas públicas e conciliar vontades entre os diversos atores. Uma formação em marketing e comunicação levá-la-ia ao seu amor maior, a cultura, e por seu intermédio a monumentos como o Teatro Nacional de São Carlos e o CCB. Mas foi em Serralves que tudo começou.

A cultura apaixonante
O Estado tinha acabado de comprar o museu e uma grande amiga que ali fazia formações em áreas artísticas e culturais convenceu-a a avançar. Durante o estágio da Ordem dos Advogados, já tinha construído um projeto para jovens técnicos, na Associação Industrial Portuguesa (AIP), e à noite cumpria a avença no Teatro de São João, a ajudar o diretor nos textos, na relação com a tutela, em tudo quanto houvesse que fazer. “O que eu gostava era da criatividade”, revela Ana Trigo Morais, que entretanto se via com essa experiência acumulada de malas feitas para Lisboa – o hoje ex-marido estava na indústria discográfica e enquanto ele fazia carreira na Warner, ela seguia caminho na AIP, agora na estrutura de missões empresariais. “Gostei imenso do mundo das empresas. Foram tempos incríveis: estava a lançar-se o PEDIP, era Mira Amaral ministro e Ludgero Marques presidente da AIP, e construía-se um país novo, o Portugal de esperança, recém-entrado na CEE”, recorda.

Dois anos depois de se instalar na capital, onde chegou em 1994, estreava-se como mãe, enquanto vivia “a oportunidade incrível de criar o departamento de comunicação e marketing da Fundação do São Carlos. Era presidida pelo prof. Machado de Macedo e estava num processo de integração da Companhia Nacional de Bailado e da Orquestra Sinfónica Portuguesa, a renascer das cinzas, e foi tão duro quanto rico.” Coube-lhe angariar mecenas para garantir a vida e criatividade dos “110 instrumentistas, 70 músicos, 400 funcionários”, lembra ainda com detalhe. “Foi uma boa escola.” Mas pouco depois de nascer Francisco – hoje formado na Escola de Hotelaria do Estoril e em Les Roches, diretor de F&B do grupo Parque, de Nuno Santana, e a um mês de se casar –, Ana seria chamada a outro desafio. E claro que não podia recusar: “Fui coordenar a rede de infodesks europeus para ajudar artistas a concorrer a financiamentos comunitários em projetos culturais.”

Saiu quando veio novo ministro para a pasta e o regresso ao São Carlos já não correria bem, por isso atirou-se a uma formação em arts management. “Acho que os artistas têm de criar, não de andar a gerir patrocínios, e eu adoro a cultura mas não sei criar, mas podia ajudar a gerir, a organizar.” Essa noção, a par da preparação, levou-a, já com o segundo filho nascido – João acaba de licenciar-se em Direito e encaminha-se para uma carreira diplomática, como “politicão que é” –, a ser convidada para a Fundação CCB. “Fui muito feliz ali, era fã do Mega Ferreira; era uma pessoa fantástica”, lembra, com saudade. O “ali” materializava-se num cargo de administradora com o pelouro administrativo e financeiro, da gestão de espaços comerciais e instalações, da área jurídica e do mecenato. Aos 36 anos.

Diz que “o ciclo se esgotou” quando começou a discutir-se mais financiamento do que projetos artísticos – é um tema que vê como bem português, esta tendência a centrar todo o debate no dinheiro em lugar de se debaterem metas, estratégias e objetivos e então fazer as contas. Ainda pensou voltar à advocacia, mas os escritórios eram demasiado aborrecidos para a cor e a alegria que Ana traz a qualquer sala e acabou a fazer uma pós-graduação na AESE Business School, em Alta Direção de Empresas. Estava de férias no Algarve, como é hábito, quando recebeu a chamada de um head hunter: queriam-na a revolucionar a Associação das Empresas de Distribuição. “Toda a gente acha que fui para a APED porque conhecia gente na Sonae, mas não foi nada disso.”

Já tinha reorganizado o São Carlos, reestruturado o CCB, e agora pediam-lhe que transformasse a associação numa estrutura que refletisse as melhores práticas das empresas representadas. E foi o que fez. “Fiz imenso trabalho de terreno, visitei criadores de vacas, porcos, coelhos, falei com agricultores e fornecedores, trabalhei a reputação do sector.” E estudou e forçou mudanças, pelo diálogo firme que a carateriza.

Foi então que se cruzou com os temas da sustentabilidade e reconheceu a importância do sector a que hoje se dedica de alma e coração. Ainda hesitou ao receber o convite, trocaria um contrato sólido por uma posição disruptiva e um trabalho hercúleo, como todos os que implicam mudança de mentalidades. Mas como sempre, o tamanho do desafio revelou-se diretamente proporcional à sua vontade de o enfrentar. E conta vitórias no currículo, como a negociação do fim dos sacos descartáveis nos supermercados, que permitiu reduzir a brutalidade de plástico com um efeito muito positivo para o ambiente (e para os distribuidores, porque o que era custo passou a negócio).

Negócios sustentáveis
Hoje sabe em detalhe o que é preciso fazer, incluindo o que ninguém quer mas será necessário. Conhece a inovação e a tecnologia de ponta que marcam território a nível europeu – e tornam flagrantes as falhas nacionais.

Com os cafés – e o vinho Madeira e bolo de mel, cortesia do anfitrião Manuel Fernandes – na mesa, explica que a limpeza urbana é responsabilidade do Estado, mas depois de um arranque significativo pouco se evoluiu, em 30 anos de recolha e tratamento de recicláveis. E é preciso acelerar, porque as metas de Bruxelas vão crescer para 60%, 75%, 90%.

“Desde que a Europa impôs o princípio do poluidor-pagador que as empresas têm de pagar o tratamento em fim de vida das suas embalagens, mas o consumidor também paga pelos resíduos que produz – e não sabe, porque vai diluído na conta da água. Mas o financiamento ao sistema vai ter de aumentar para se cumprirem as metas; isso obriga a fiscalizar, a processos transparentes, a educar os cidadãos, a criar accountability. Por isso digo que gostava que me deixassem criar um regulador a sério, com altos padrões de exigência.”

O tema apaixona-a. “Isto é policy, é o lado da política de que gosto, e requer coragem e capacidade de fazer, em parceria: uns contra os outros, não funciona.” Já em 2024, virá um grande desafio: Bruxelas obriga a que se separe o tratamento de resíduos da fatura da água. E Ana Trigo Morais vê aí a grande oportunidade de pôr todos no mesmo barco, o da sustentabilidade. “No momento em que a câmara mandar uma nota na fatura aos consumidores, explicando que pagam X pelo tratamento dos seus resíduos indiferenciados, mas podiam poupar se tivessem posto plásticos, metais, papel, etc. nos ecopontos devidos, as pessoas vão começar a fazer.”

As novas metas, acredita, vão também obrigar a abrir o sector a novos atores, a criar camadas adicionais sem roubar competências ou créditos aos municípios. “É preciso chamar empresas à ação, privatizar o setor”, resume. E antes de nos despedirmos, partilha o seu sonho: “Conduzir um camião de lixo. Será sinal de que consegui acabar com o monopólio.”