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A saúde ou lucro dos acionistas?

Citando Talleryrand, dar prioridade aos lucros de alguns em vez da saúde de todos foi pior que um crime, foi um erro.

Nelson Mandela deixou-nos várias lições. A luta contra o racismo, contra a discriminação, pela liberdade e democracia, mas também pela reconciliação. A paz e o diálogo são sempre os melhores conselheiros. Sem paz e tolerância, que não deixem ninguém para trás, não há verdadeiro desenvolvimento ou a construção de um futuro em comum.

O seu legado também se estende à saúde. Mandela dizia que a saúde é um direito humano fundamental, que não podia ficar dependente do rendimento das pessoas. Ao contrário de tantos outros, as suas opiniões tinham consequências práticas. Sozinho, enfrentou a grande indústria farmacêutica mundial e venceu.

Numa época em que, por dar prioridade aos lucros, a indústria negava aos países do sul global possibilidade de aceder a medicação essencial para responder à epidemia de VIH, a África do Sul emitiu licenças compulsórias para permitir a produção local de medicamentos genéricos, ação que foi essencial para controlar a transmissão do vírus na região. Com o triste apoio da União Europeia e dos Estados Unidos, a indústria farmacêutica colocou o país em tribunal… e perdeu a batalha. A vitória de Mandela inspirou outros países, que seguiram o mesmo caminho. Ficou evidente que as vidas humanas não podiam valer menos que os lucros dos acionistas.

Levantou-se a mesma questão com as vacinas durante a pandemia causada pelo Sars-Cov-2. A desigualdade no acesso a esta medicação essencial e o verdadeiro nacionalismo de vacinas que se instalou prejudicaram-nos a todos, especialmente aos que menos recursos têm. Cientes deste problema e com a experiência de sucessos passados, a África do Sul e a Índia iniciaram um processo para suspensão temporária das patentes, de modo a alavancar a produção das vacinas. Um problema global precisa de uma solução global, que não fique dependente dos interesses de alguns.

A resposta da indústria foi rápida. Desde ameaças a governos – como o famoso caso em que a Janssen ameaçou o primeiro-ministro belga, com a retirada dos investimentos no país caso Bruxelas prosseguisse com a intenção de apoiar a proposta de suspensão das patentes, tendo histórias semelhantes sido relatadas pela Indonésia ou Colômbia – às atividades de lóbi junto da União Europeia.

O portal da transparência do lóbi regista quase 100 reuniões entre a indústria farmacêutica e dirigentes da Comissão Europeia entre janeiro 2020 e setembro 2022. No mesmo período, no Reino Unido, registaram-se 360 encontros, ou seja, um a cada dois dias! Estas são apenas as reuniões ou conversas formais, o portal não regista os telefonemas ou reuniões com assessores. Não admira que tenha sido a Europa a principal opositora mundial da suspensão temporária das patentes. A indústria não utilizou apenas ameaças e reuniões. Mobilizou os seus enormes recursos financeiros. Gastou, só em 2020 e 2021, 35 milhões de euros em atividades de lóbi na Europa, excluindo o Reino Unido.

O combate pelo acesso universal à saúde é desigual. A comunidade de saúde pública, ativistas pela saúde global e organizações conceituadas como os Médicos sem Fronteiras tiveram, no seu conjunto, cerca de metade das reuniões com a Comissão Europeia, comparando com a indústria farmacêutica. No Reino Unido a diferença é abismal. O governo conservador reuniu 15 vezes menos com estes grupos!

Apesar desta enorme pressão, o caminho estava a ser trilhado. Os Estados Unidos mostraram-se disponíveis para discutir o assunto. Num histórico voto, o Parlamento Europeu aprovou, com 355 votos a favor e 263 contra, uma resolução de apoio à suspensão temporária das patentes das vacinas. Apesar dos esforços da Comissão Europeia, países como França, Bélgica, Itália, Holanda, Espanha e Áustria anunciaram publicamente que apoiavam esta medida. Infelizmente, Portugal ficou no lado errado da história.

O que falhou? O que aconteceu para que as vozes dos peritos, da sociedade civil, de várias organizações de saúde e até do Parlamento Europeu fossem ignoradas? Para que a vontade expressa de tantos países não fosse considerada?

A resposta está na pressão que o músculo financeiro e de influência da indústria fez efeito no país chave: a Alemanha. Através de Berlim, Bruxelas estava controlada. Com o controlo de Bruxelas, o impasse na Organização Mundial do Comércio estava garantido. Para acalmar as consciências, o governo alemão propunha aos parceiros europeus dicas de comunicação. Podemos não ter salvo todas as vidas possíveis, mas aprendemos bons argumentos para não o fazer.

O que foi alcançado foi apenas uma autorização temporária e restrita de exportação de vacinas produzidas localmente sob licença compulsória. Demasiado curto e feito à medida dos interesses da indústria e dos países ricos. Prejudicou e atrasou o combate global à pandemia, prejudicando de forma assimétrica, os mais frágeis. Citando Talleryrand, dar prioridade aos lucros de alguns em vez da saúde de todos foi pior que um crime, foi um erro.

Enfermeiro da Urgência Pediátrica e coordenador da Unidade de Saúde Pública Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca


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