João Barbosa, DJ e produtor conhecido como Branko, celebra este ano vinte anos de carreira. Além da profícua carreira enquanto produtor, foi um dos fundadores de Buraka Som Sistema, um dos maiores fenómenos musicais a nível nacional e internacional. Nesta conversa vamos fazer uma viagem ao passado, falar do presente e olhar para aquilo que pode ser o futuro do Branko e da música.
Quando aparecem os Buraka Som Sistema, já não eras propriamente um novato. Tinhas a bagagem dos Cooltrain Project e 1Uik-Project… Como é que estes projetos te prepararam, digamos assim, para fundar este que foi um supergrupo?
Eu acho que todos os projetos e toda a música que fiz, até 2006, um pouco o início de Buraka Som Sistema, ajudaram a perceber criativamente e a nível do processo criativo e a nível de construção musical, mas muito também a nível daquilo que é o hustle da música. Como é que consegues levar, na cabeça de um rapaz de vinte e tal anos, ficar a pensar “OK, pensar isto é o que eu quero fazer até ao final da minha vida” e “Como é que eu me consigo organizar para que não tenha que fazer música foleira e que consiga fazer a música que eu gosto até ao final da vida”… Acho que essa para mim foi a lição e todo e todo o know how que conseguimos apanhar até ao momento. Quando estávamos a preparar o projeto Buraka Som Sistema, que nasceu dentro desta comunidade de Lisboa musical cultural que havia na altura, nasceu como uma noite num espaço chamado Clube de Mercado. Antes de ser sequer um grupo, era uma noite com dois DJ, vários MC, em que várias pessoas decidiam saltar para cima do palco e dançar por iniciativa própria. Eram umas noites que foram ficando lendárias… A primeira foi um bocado o início de uma explosão de comunicação que fez com que, na segunda noite, já estava uma fila de quase 500 metros e, na terceira, já era impossível entrar dez minutos ou meia hora depois de a porta estar aberta. Foi meio como um boca a boca incrível. Nessa altura conseguimos perceber que era o momento em que, finalmente, toda essa aprendizagem, todo esse caminho, vai poder ser posto em prática e vamos conseguir, de alguma forma, usar os contactos, as pessoas que pensam e com quem nos identificamos e conseguir colocar aqui uma máquina a tentar trabalhar para levar um projeto mais à frente. Foi um bocadinho por aí: tentar manter as coisas emocionantes. A primeira edição tinha uma capa especial, porque foi toda impressa em caixas de diversos produtos que tinham sido deitadas fora e foi tudo impresso no verso. Muitos dos CD tinham por dentro, óleo para bebé, outros tinham várias coisas… Quando abrias a caixa eram todos diferentes, porque eram todos um recorte um bocadinho diferente. Fizemos 500 cópias, colocámos na Fnac, desapareceram numa semana, assim uma coisa mais rápida. Conseguimos fazer mais uma edição, mas acabámos por perceber que tínhamos que ir para um formato um bocadinho superior e acabámos por fazer esse primeiro EP, reedita-lo com a Sony, com algumas músicas extra…
Em álbum, já…
Sim, num mini álbum, por assim dizer… Acho que ao From Buraka To The World vou sempre chamar EP, talvez porque, na minha cabeça, foi pensado como um EP. Essa foi um bocadinho a aprendizagem e a bagagem que trouxemos dos outros sítios. Uma rede de contactos, pessoas, designers, pessoas interessadas, pessoas interessantes, que era essencial, porque, se nós fossemos simplesmente fazer parte de uma agência genérica, de um management genérico… Na altura, em 2006, não tinhas sequer uma compreensão da diferença de um projeto se apresentar em formato DJ Set, em concerto ou o que quer que seja. Todos esses conceitos existiam num Bristol longínquo ou numa Londres longínqua, que não se aplicava muito àquilo que era o mercado ou a indústria musical possível que tínhamos em Portugal. Então foi um bocado necessário construir essa base e usar essa rede de contactos para montarmos as coisas como nós tínhamos em mente.
Apesar de terem Buraka no nome, nenhum de vocês é de lá. De onde surgiu o nome?
Somos todos vizinhos. Eu sou da Venteira, o Rui é da Reboleira, o Condutor é de Queluz… Estávamos um bocadinho todos a circular na linha de Sintra e achámos que Buraca era a freguesia com o nome foneticamente mais interessante para darmos o nome ao projeto que estávamos a desenvolver e à noite que estávamos a criar. No fundo era mais um soundsystem para uma noite, para ser aplicado a uma noite, que inevitavelmente se transformou numa banda. Sem querer.
Já conhecias o Rui e o Kalaf. Como foi encontrar os restantes membros: o Andro, a Petty, na altura, o Fred… Como selecionaram estas pessoas?
Isto é uma coisa que já tocámos em entrevistas que tivemos anos, em anos e anos de entrevistas com Buraka Som Sistema… Inicialmente Buraka Som Sistema era um projeto de produção. Era um projeto de três produtores que estava a pensar, se calhar, naquele formato que ouvíamos durante os anos 1990. Coisas como Massive Attack, coisas assim… Um projeto de produção com vários vocalistas convidados, que poderiam ou não fazer parte dos concertos, etc.. Mas, criativamente, era um projeto de produção de beats, de criar beats e de perceber depois o que se conseguiria fazer com esses beats. Então, obviamente que o Kalaf sempre esteve envolvido, não sendo propriamente ele um produtor que agarra e produz os seus próprios beats, mas muito a nível conceptual, a nível do próprio design de todo o projeto. Mas a coisa passou muito por aí. O Andro foi mesmo uma pessoa que… Éramos fãs do trabalho dele e tinha lançado um disco muito bom com um coletivo de rappers angolanos chamado Conjunto Ngonguenha. Sentimos que a energia que ele estava a colocar nesse disco podia ser útil para este núcleo de trabalho que viria a ser Buraka Som Sistema. A Petty foi uma vocalista convidada, que gravou em três temas de Buraka Som Sistema, e acabou por juntar-se também a um bocado como a front woman dos concertos todos. Tinha 16 anos, era filha de uma amiga do Andro e acabou por ser um bocadinho a mistura perfeita para causar uma explosão em palco. Se calhar nem estávamos muito à espera que a coisa acontecesse assim. Mesmo o próprio lugar que cada um acabou ocupar no grupo vem muito definido destas noites do Clube Mercado que eu estou a falar, porque as coisas já aconteciam… Ninguém planeou nada. Ninguém achou “Tu vais ser isto e tu vais ser aquilo…” Não. As coisas foram acontecendo e foi preciso criar soluções para que as coisas corressem bem. A Petty entrava, cantou o Yah e rebentou. Entravam um dançarino e dançava; esse próprio dançarino também veio em tour connosco. O casting aconteceu ali em direto e ao vivo. Depois o chamar o Fred, por exemplo, para se juntar a nós, na bateria, nos concertos, foi muito mais uma coisa de “sto são só duas pessoas com dois CDJ e um computador e umas pessoas com microfone, mas se vamos…” Quando nos chamaram para um palco como o palco principal do Sudoeste, por exemplo, achámos que tínhamos de…
Encher…
De encher um bocado mais a coisa… (risos) Víamos outras bandas e tínhamos um bocado de noção que era difícil, se calhar, encher um palco com uma mesa pequenininha ali no meio e três pessoas a passarem aqui à frente. Sentimos que tínhamos que levar a coisa para outro nível. Então chamámos um percussionista, o Mick Trovoada, e o Fred, a tocar bateria, para conseguirmos colocar ainda mais ritmo nas produções. Depois acabou por fazer tanto sentido o que o Fred trazia às músicas que acabou por ficar um membro do projeto e dos concertos ao vivo.
Em 2006 lançaram o From Buraka To The the World, como já falámos, primeiro EP depois um EP Extended, com mais alguns temas, mas não foi fácil encontrar uma editora… Foi aqui que surgiu a ideia de criar a Enchufada?
Exatamente. Aliás, já o próprio 1Uik-Project tinha sido um projeto que foi lançado com o selo Enchufada. Na altura foi uma parceria com o Movie Play, a Enchufada ainda não era uma empresa, não era nada sério, não pagava impostos, não fazia nada. Era simplesmente um logótipo, porque nós, de alguma forma, já sentíamos que queríamos colocar ali uma marca nossa que depois pudéssemos e que sabíamos que iríamos desenvolver. Desde essa altura, ainda antes do From Buraka To The World, ainda chegou a ser um álbum do Melo-D também, o Chega de Saudade, que também saiu na Enchufada. Foram os dois projetos que antecederam o From Buraka To The World. Nessa altura, ou seja, na criação do From Buraka To The World, criámos a Enchufada… Depois, noutros projetos e se calhar já com editoras majors a trabalharem connosco, continuámos a usar a Enchufada como o núcleo de trabalho que depois licenciava… Sempre fomos um grupo independente, que sempre foi dono da sua própria música, sempre fez o que quis. Não tinha ninguém a dizer que a música tinha que ser mais curta, mais comprida, mais rápida, mais lenta, com mais voz, com menos voz. Quando chegámos a qualquer um desses núcleos, já tínhamos a nossa estrutura e a nossa audiência e a coisa acabou por ser relativamente simples.
Estavam à espera de terem sido tão revolucionários com este EP como foram na cena musical portuguesa?
Acho que há sempre uma surpresa de sobre os passos que tu dás, não é? Não acordas e pensas “Epá, tenho aqui uma ideia espetacular que vai correr mesmo bem, de certeza absoluta”. Todo mundo é um bocado mais vulnerável e nem sempre é fácil ter esse tipo de abordagem. Mas deu para perceber, com a energia que sentimos em torno do projeto no início, que realmente tínhamos conseguido chegar a um equilíbrio muito especial musical, em termos de coletivo, de pessoas… Em termos de várias coisas. Deu para perceber que iria haver pernas para andar. Quando começámos a receber telefonemas da M.I.A., do Diplo ou de pessoas de cenas internacionais, aí meio que foi a confirmação. O dia da confirmação foi estar no top oito da M.I.A. do MySpace… Isto em 2007 para aí. Mas sim, acho que deu para perceber que era um bocado inevitável que haveria pelo menos caminho para fazer e que, s nós o fizéssemos bem feito, iríamos conseguir chegar com o projeto a algum lado.
Entre o primeiro e segundo álbum trocaram de vocalista, da Petty para a Pongo. Foi uma escolha natural?
Acho que, depois do que expliquei, que era um projeto de produção, nós não tínhamos uma vocalista, nunca tivemos uma vocalista. É um bocado uma ideia, um bocado, sei lá… Achas que o Horance Andy é o vocalista dos Massive Attack? É um convidado que vai cantar em alguns concertos. Essa sempre foi um bocadinho a nossa abordagem. Então, na nossa cabeça, não trocámos de vocalista. Isso nunca aconteceu. Apenas acabámos por ir trabalhar com outras pessoas e o tempo acabou por ia passando e, conforme o projeto ia crescendo, íamos percebendo que tínhamos necessidade de explorar outras vozes, outras texturas, outras ideias de letras, etc.. A Pongo também apareceu um pouco como a Petty e acabámos por criar também dois temas, que entraram no Black Diamond, o Kalemba (Wegue Wegue) e o IC 19, que foi meio que um sample que acabámos por fazer de uma gravação da voz dela e isso acabou por refletir-se um bocadinho também no concerto, etc., e ela veio cantar em alguns concertos… Sempre trabalhámos muito também esse lado desse núcleo duro de produção que não é… A Pongo foi mais uma convidada no Black Diamond, porque tínhamos M.I.A., Puto Prata, Bruno M. Tínhamos um rol de convidados relativamente grande.
Depois do Pongo, tiveram a Blaya. De que maneira cada uma delas influenciou a vossa maneira de fazer música?
São pessoas diferentes, que têm características diferentes e que faziam parte do núcleo de trabalho. Obviamente que as coisas vão sendo desenvolvidas com as pessoas que estão à frente e super influenciam,. Basta teres uma pessoa diferente a agarrar no microfone, a cantar de forma diferente. A Blaya acabou por… Se calhar, numa fase mais avançada, acabámos por oficializar que a Blaya era a vocalista de Buraka Som Sistema. Isso foi se calhar a alteração quando se passou de ser um núcleo de produção para um grupo mais completo nesse sentido. Ela fazia parte dos concertos todos, obviamente. Foi uma passagem mais ou menos orgânica do momento de concerto, que ela começou como dançarina… Foi uma coisa relativamente orgânica essa passagem depois do concerto para a cabine para gravar voz. Ela já tinha um historial, já cantava, já rimava, já tinha um historial do lado musical também. Acabou por se construir esse lado. Eu acho que sempre acábamos por fazer a música que tínhamos que fazer e tentar colaborar e criar o máximo de universos possíveis para todas as pessoas com quem estivéssemos a colaborar. Acho que as várias vocalistas acabaram por ser mais umas pessoas desse rol de colaboradores.
Os Buraka abriram-te portas enquanto produtor para trabalhar com nomes como o Diplo, M.I.A., DJ Zenóbia. Alguma vez imaginaste, quando estavas no teu sótão e o Rui na marquise deles, que iam trabalhar com eles?
Acho que aí estávamos a uma distância relativamente grande ainda de imaginar o que quer que seja. Tínhamos outras referências na altura até. Não eram nomes que estavam sequer cimentados, não consigo criar um paralelismo entre o Diplo e eu e o Rui a produzirmos beats na marquise em 1997. Mas é um pouco o que já tinha dito: desde o início de Buraka Som Sistema que sentimos que havia uma energia em torno do projeto que era diferente e mais intensa. A partir do momento em que sentimos isso, meio que sentimos que tudo era possível.
O concerto no Coachella foi memorável para quem lá esteve e para quem ainda hoje vê esses vídeos. Como foi tocar num dos maiores festivais do mundo?
Olha, acho que, na altura, eu nem sabia o que era o Coachella. Nenhum de nós sabia o que era o Coachella. Não havia esse hype em torno do Coachella. Foi um festival que ainda demorou alguns anos até se cimentar nessa posição de um dos maiores festivais do mundo. Mas para nós era incrível viajar até L.A., depois apanhar um carro até Palm Springs e tocar. E deu para perceber, quando estávamos no festival, que era um festival diferente e especial e com algumas características assim bastante marcadas, que vieram, se calhar, a generalizar-se numa série de festivais a seguir. Algumas coisas e a forma como os palcos eram pensados, o próprio formato backstage, as pessoas com que te cruzavas… Sentias que estavas num ambiente bem mais Hollywood, se calhar, do que algum festival diferente. Isso para nós foi obviamente super emocionante. Estávamos a lançar o Black Diamond, foi a tour do Black Diamond, foi um concerto numa tour de umas dez ou quinze datas pelos Estados Unidos, foi mesmo a primeira data de todas… Na manhã do mesmo dia gravámos um espetáculo para a KCRW, um programa do Jason Bentley chamado Morning Becomes Ecletic, onde também já tinham passado uma série de músicos que nós admirávamos. Acho que, nesse dia, isso foi quase mais o highlight do dia do que propriamente do concerto num festival. O concerto no festival acabou por se revelar incrível. Chegámos um bocado atrasados e, em vez de 60 minutos, só conseguimos tocar 40 minutos, porque tivemos que usar ainda algum tempo do concerto para fazer line check e para conseguir ter tudo pronto e montado para conseguirmos arrancar com a atuação. Mas sim, foi altamente memorável. Foi em 2010, se não me engano.
Dezoito anos depois do From Buraka To the World e oito anos depois do último concerto, na Torre de Belém, que reflexão fazes quando olhas para estes dez anos de Buraka?
Acho que foi um projeto que abriu muitas portas e que desbravou bastante caminho a nível de criar e de conseguir plantar uma semente. Uma série de músicos, DJ, produtores da cidade de Lisboa, no sentido de indicar que havia caminhos possíveis e que havia formas possíveis. Ninguém que cresceu como nós crescemos achava que era possível que este caminho se fosse abrir e fosse ser revelado. Acho que ninguém, nos anos 1990, da minha geração, achava que isto era uma coisa que daria para montar. Sinto que, olhando para trás, para estes dez anos… Sinto que, acima de tudo, foram muito um desbravar de terreno e aquilo que é uma criação e desenvolvimento de um projeto que nunca parou, nunca deixou de inovar, nunca deixou de tentar fazer a melhor música possível. Tentar tocar nos melhores sítios possíveis e, no fundo, dar tudo todos os dias para que isso acontecesse. Acho que esse legado é importante… Acho que é importante mostrar que, com o trabalho e com a música certa, é possível. Consegues fazer qualquer caminho, independentemente de se tiveres a sair da Reboleira ou da Serra da Estrela ou de Chaves, o quer que seja. Acho que isso talvez seja o ponto mais relevante quando olho para trás.
Veja aqui a segunda parte da entrevista:
Branko assinala os vinte anos de carreira com um concerto no Coliseu de Lisboa esta quinta-feira, dia 28 de novembro, com Carlão e Dino d’Santiago entre os convidados. Os bilhetes podem ser comprados na BOL e nos lugares habituais.