O ar que nos chega aos pulmões vem carregado de sabores de longe. Entre os prédios que conservam nas fachadas a Lisboa do final do século XIX e dos primeiros anos de 1900, impõe-se a herança dos descobridores da canela e do caril, da pimenta e da noz moscada. As caras sucedem-se numa paleta completa de traços, lábios pálidos sobre sardas, carapinhas orgulhosas e mãos desenhadas a hena sob a explosão de tecidos estampados, debruados a lantejoulas e sobrepostos em camadas cruzam-se placidamente ao longo dos 2,8 quilómetros que levam a Almirante Reis do Martim Moniz ao Areeiro. Espalham-se pelos bairros Andrade, Inglaterra, dos Açores e das Colónias, que dali sobem em múltiplas direções. Mesmo cedo, ainda com a maioria das lojas a ressacar do movimento da noite anterior, já sobejam nos passeios – mesmo os que não se estreitaram com obras de recuperação ou do Plano de Drenagem de Lisboa – os que ali chegaram para viver, para trabalhar ou apenas visitar, seguindo recomendações tão credíveis como os elogios do The New York Times ou da Time Out, que elegeram Arroios como o bairro que os turistas de Lisboa não podem perder.
Não é o que vemos na Disney, com trajes típicos, é um small world pela medida real, com pessoas de 92 nacionalidades a cruzar-se diariamente nas tarefas a que o quotidiano obriga, mesmo quando é vivido a milhares de quilómetros de casa, numa Babel de dialetos mais ou menos reconhecíveis, culturas e religiões que fazem as delícias dos que tudo querem absorver a partir da mesa de esplanada da esquina para contar aos amigos no regresso a casa.
Nos dois quilómetros quadrados que fazem Arroios – uma ida e volta a Sintra, traduz a presidente da Junta entre cumprimentos distribuídos em português e inglês -, vivem 40 mil pessoas, formando uma vizinhança improvável de velhinhas que arrastam atrás os carrinhos para as compras e bengalis a caminho de lojas que vendem tudo a 1 euro. Na leitaria da esquina há homens de manga cava a discutir futebol com canecas de cerveja a fazer de pequeno-almoço e mulheres de shayla a comer pastéis de nata. Um grupo de estudantes troca impressões animadas numa língua eslava, enquanto arrisca um escaldão à varanda do segundo andar do edifício bem conservado, quase em frente à Igreja dos Anjos, a cujo jardim voltaram as tendas de pessoas sem-abrigo que depois da habitual operação de limpeza do local, todas as quartas-feiras, já não encontraram lugar nas arcadas mais acima – para lá da antiga Portugália, entre a cervejaria e o decadente centro comercial, que está em vias de dar lugar a um novo quarteirão com bons apartamentos, um hotel a estrear, estacionamento subterrâneo e novo comércio.
Poderá então mudar o retrato daquela zona que já foi nobre e hoje junta o mundo inteiro. Mas hoje as ruas que saem da Almirante Reis em redor são bem ilustrativas das mais recentes vagas de imigração. Nos últimos cinco anos, Portugal viu duplicar o número de asiáticos residentes. Há sobretudo indianos (35 mil), nepaleses (24 mil) e chineses (22 mil) entre os 124 mil registados como imigrantes, que compreendem também muitos bengalis e paquistaneses. O total já rivaliza com os que chegam da África lusófona (124,2 mil) e representa metade dos brasileiros que escolheram viver em Portugal.
Ajudar à integração
Com a cabeça ainda meio dentro da loja indiana onde acaba de cumprimentar mais um freguês, agora em inglês, Madalena Natividade vai pondo legendas no que apresenta da sua freguesia.
Explica como Sunil está a ajudar a comunidade hindu a conhecer-se e integrar-se, com atividades que apelam à participação de todos na comunidade de Arroios e projetos de educação. Como as barbearias tradicionais se voluntariam a barbear os que vivem na rua. Os agradecimentos que destes recebe pela limpeza regular do chão onde dormem. Mas também conta como trouxe ao Mercado de Arroios uma nova vida por três dias, com a Feira do Livro Independente, por onde passaram no fim de setembro convidados ilustres e heterogéneos, de Jaime Nogueira Pinto a Hugo van der Ding, de José Pacheco Pereira a Rui Reininho – para delícia das vendedoras da praça e moradores, “que ainda se entusiasmam a contar o que ouviram nas conversas feitas à volta de livros”.
É também, mas não só, de livros que se faz um dos maiores sucessos do bairro. Ali mesmo na Almirante Reis, paredes meias com uma Igreja da Cientologia, a Kingpin Books – nascida em 2002 num cochicho do Centro Comercial São João de Deus – materializa o paraíso dos amantes de BD em 215 metros quadrados. “Só de área comercial”, frisa Mário Freitas, o criador e impulsionador do conceito que vai muito além dos milhares de livros de banda desenhada de todo o mundo, incluindo os mais raros, que rivalizam com prateleiras cheias de Funko Pop Figures ou posters icónicos dos universos das personagens mais famosas, do Manga ao Homem-Aranha.
Especiarias e turistas
Entre o inesperado e a miséria humana, entre os antigos, os imigrantes e os turistas jovens ou nem tanto, o mundo inteiro cabe em Arroios. E o mundo inteiro se cria em Arroios, em movimentos culturais exóticos para quem ali nasceu há mais de meio século, graffiti que ajudam a matar saudades de paisagens que por aqui não se vê e chamadas à oração que tornam intransitável – às vezes mesmo não aconselhável – a Rua do Benformoso que já se conhece como Little Bangladesh. No Martim Moniz nasceu uma Chinatown. Em espaços exíguos não se adivinha a existência de lojas como o Cebate, onde se vende mate com o preceito uruguaio que Maite e Claudio trouxeram para Portugal há mais de dez anos. Em plena Rua Carlos Mardel, a francesa Ophelia instalou um pólo do movimento Emaús, onde se amontoam móveis, candeeiros, loiças e todo o tipo de berloques em segunda-mão para a casa. Adiante, um corredor escuro faz pouca justiça às capulanas coloridas que os africanos compram para as mulheres.
Às 10.00, ainda há muito comércio fechado, mas o mercado madrugador já se esvaziou dos primeiros clientes e ensaia um ato de fé pela chegada de outros que vejam as virtudes dos legumes e frutas perfumadas. “Vai-se andando… Temos pouco movimento”, queixam-se as vendedoras atrás dos aventais e batas que já só se encontra naquelas lojas onde as avós compravam atoalhados – e que ali ao lado misteriosamente resistem à passagem do tempo, com os preços de saldo ainda fixados aos tecidos em quadradinhos de papel escrito a feltro e presos a alfinete. Os peixes trazem a frescura nos olhos, o cheiro do pão denuncia a cozedura recente a pedir manteiga a derreter, mas há muito quem venda e pouco quem compre, mesmo que o produto seja do melhor, como há de confirmar Joaquim Saragga Leal, que ali se abastece de tudo o que leva para Os Papagaios.
Do lado de lá da bancada a transbordar de alfaces viçosas, pimentos coloridos, tomate coração de boi e courgettes, Luísa não se conforma com a falta de pessoas – o universo que se anima lá fora prefere procurar os seus sabores em balcões que vendem um bocadinho de casa em pacotes improvisados e os turistas enchem os cafés e encantam-se com os bares antes de regressarem aos hotéis que agora se encostam às antigas residenciais, erguidos onde antes da era Ikea se fazia negócio a vender móveis – “very typical, very quaint” -, mas não vão à praça. Deliciam-se com o brunch do Infame, no impecavelmente reabilitado Hotel 1908, no Largo do Intendente; fazem uma paragem na lanchonete brasileira, arriscam misturar-se com os clientes habituais do Shisha Bar, mas certamente não levam sacos de fruta ou leguminosas para o quarto do Hotel Dos Reis – Beautique.
Luísa quer trazer de volta os momentos de show cooking do Chefs on fire mas perdeu o contacto que tinha na televisão. Explica que o outro mercado, o 31 de Janeiro, está bem servido de celebridades “e aquelas pessoas mais bem instaladas vão lá todas, os chefs conhecidos compram lá tudo”. “Aqui, a gente precisa de trazer quem nos veja e quem nos mostre, a ver se vendemos um bocado mais”, explica, oferecendo-se para ajudar Madalena Natividade a encontrar como dinamizar o espaço. A presidente da junta até já tem um projeto na manga e dá-lhe esperança com a parceria que espera fechar em breve com Rui Miguel Nabeiro para ali instalar um espaço Nãm Urban Farm, apostando que despertará a curiosidade de miúdos e graúdos quando uma das paredes do Mercado de Arroios se cobrir de cogumelos produzidos em borras de café Delta. Conta-me depois que o problema é trazer clientes às bancas que ali permanecem há 82 anos. Nas lojas que abriram nas montras do mercado, em vias de ganhar uma vida sustentável com painéis fotovoltaicos a garantir-lhe a quase independência energética, há animação de sobra.
A Zaytouna – Mercearia Árabe tem sempre clientes; aos vinis da discoteca Flur, arrancada aos anos 80, não faltam pretendentes – que também apreciam o antiquário vizinho; e ao fim da tarde o restaurante Mezze, onde cozinha e mesas são a nova vida de refugiados do Médio Oriente, enche-se de clientes, nem todos ali levados por motivos maiores do que a boa comida e ambiente. Até para os menos afoitos há motivos de visita, entre a aposta segura no frango assado da churrascaria e a Tasca do Mercado, que entre os petiscos clássicos reinventados e o cartoon de Nuno Saraiva que cobre toda a parede, não deixa escapar portugueses e turistas.
O mundo à mesa
De volta às ruas do bairro, as mesquitas estão agora fechadas, após a oração da manhã – há meia dúzia delas bem identificadas, mas muito mais informais, ocasionais, à medida de comunidades e fações que não se misturam mesmo que partilhem a religião. Algumas ficam mesmo ao lado de igrejas católicas. A do antigo convento de Arroios foi afeta ao culto ortodoxo na viragem do século, para acolher a comunidade ucraniana de Arroios – na qual se inclui Svitlana Kuziv, florista que aqui chegou há 20 anos com três filhos e dá conta de que a família que a guerra levou de volta a Lviv “está bem, as coisas estão mais ou menos calmas”.
Lá fora, um grupo de argelinos debate um tema incompreensível; falam alto, gesticulam, mas interrompem-se à chamada de atenção de um mais atento que faz sinal para deixar passar, contagiando o sorriso envergonhado e um “bom dia” dito em português correto, antes de regressarem ao debate em menor grau de exaltação.
Onde tantas culturas se misturam, há muito por onde escolher quando os aromas começam a libertar-se das cozinhas e chamam a casa os velhotes de boné que, da Caverna, juram que o tempo passa mais depressa a olhar as jovens que sobem a rua de bicicleta, as ruivas que conversam animadamente noutra mesa de plástico, o casal de tailandeses que acaba de se juntar.
No número 13 da Rua Lucinda Simões, o jovem nepalês sai a chamar o “patrão” Joaquim, que foi dar recado às suas fornecedoras. “Compro-lhes tudo o que vendo aqui na Taberna; os produtos são muito frescos e é uma maneira de as ajudar e ao Mercado de Arroios, de cumprir a proximidade”, diz à chegada, antes de apresentar o restaurante que recupera a Lisboa dos anos 50 que está nas origens d’Os Papagaios, originalmente famoso pelas sandes de carne assada e hoje garantia de servir aos clientes os melhores petiscos típicos portugueses. Há fígados de pato, iscas de coelho e rabo de boi, há escabeche de carapau, raia alhada, jaquinzinhos, doces conventuais e o que mais os produtos do dia tornem possível, numa seleção diária escrita no quadro de giz e atualizada com a ajuda de fita adesiva.
Tudo é servido em loiça portuguesa, tirada de loiceiros de madeira e trazida às mesas de tábua corrida onde se sentam desconhecidos lado a lado, com vista para a parede de azulejo enfeitada com couves de Bordalo, tachos de esmalte e jarros de barro. É a Lisboa mais alfacinha que também tem lugar entre tantas culturas que também na casa de Joaquim se juntam, à mesa e na cozinha.
Na rua, um sikh e um irlandês que carrega uma encomenda da Amazon desviam-se de um grupo de miúdas de calções que levam os olhos no ar e as malas a rolar pelo chão. Perto da Praça do Chile, uma barbearia publicita serviços de tatuagem na cave. Ao lado vendem-se souvenirs e cartões de telefone, além um talho halal e a frutaria Pali Baba fazem negócio e um nepalês paciente aguarda quem queira enviar dinheiro para casa.
Na Rua António Pedro, 117, come-se “a melhor cachupa da cidade”, jura Madalena Natividade, apontando o Fox Coffee, que se usa do epíteto de rei do prato típico cabo-verdiano.
No número 6 da Rua Rosa Damasceno, o Costa do Malabar apresenta-se como o melhor restaurante de comida do sul da Índia. O anfitrião, Sunil, pede desculpa, antes de fazer uma pose orgulhosa para o retrato. “Não estou muito bem vestido, acabei de chegar do projeto que estou a montar com a comunidade indiana no Parque das Nações”, explica. É uma horta comunitária, uma das muitas atividades em que mergulha para envolver a sua comunidade e trazer-lhe pontos de ligação à Lisboa que agora a acolhe. Tem outros em marcha, explica, num inglês pontuado a palavras em português. Trabalha sobretudo para sensibilizar as mulheres para questões de saúde, para dar literacia e informação a outros imigrantes sobre o que deles espera a comunidade que os acolhe e para os ajudar a resolver dificuldades. Agora prepara-se para os almoços – a qualquer momento começará a enchente.
Um aglomerado diferente forma-se à porta da Santa Casa da Misericórdia, para a sopa dos pobres. Hão de voltar ao anoitecer para pôr alguma coisa no estômago antes de recolherem às tendas.
No Jardim do Caracol da Penha, um jovem casal de bengalis chegados há um par de meses quase passa despercebido. Trazem esperança de construir aqui a vida que não podiam sonhar em casa, mais ainda agora, com a recém-nascida Melina que o pai segura com o cuidado que requer um bebé de sete dias, na rara sombra do espaço que ainda não se converteu totalmente do projeto de parque de estacionamento que devia ter sido, feito jardim com hortas comunitárias por força do orçamento participativo do ano passado.
Não longe de locais como este, inaugurado em julho, há marcas de outra época que permanecem como prova viva da Lisboa em que nasceu a freguesia de Arroios, que agora se faz de um multiculturalismo onde convivem exposições como a Tundé Ku Ginga Katé Ku Mulemba de Lino Damião, a arte urbana de AkaCorleone e Studio BoaHora e concertos de música clássica na Igreja dos Anjos. Desse tempo mais que centenário dá provas a Biblioteca de São Lázaro, na Rua do Saco, a mais antiga de Lisboa e que preserva ainda publicações dos séculos XVII a XXI. Lá em baixo, no Martim Moniz, ouve-se mandarim e vende-se de tudo nos quatro pisos do Centro Comercial da Mouraria. No extremo oposto, da Colina de Santo André, vê-se toda a cidade do Miradouro do Monte Agudo, no centro do Bairro das Colónias. A toponímia premonitória traz em placas as origens de muitas das pessoas que hoje fazem de Arroios a freguesia mais multicultural do país. E que está a atrair não só cada vez mais turistas como jovens europeus, que se encantam por ali encontrar o mundo.