Uma socialista livre, fã incondicional de Bruce Springsteen

Esteve sete anos no governo, primeiro na educação, depois na Modernização, mas Alexandra Leitão talvez se tenha notabilizado mais por recusar o lugar de destaque que Costa lhe propôs quando deixou de ser ministra. Fala com uma liberdade pouco comum, mas a sua vida política ainda tem certamente muito caminho pela frente.

Acaba de chegar de férias, mas já está em plena atividade. Em vésperas de arrancar o novo ano letivo na Clássica de Direito, onde dá aulas de Mestrado e Doutoramento, e de reabrir o Parlamento, que acumula com colunas de opinião semanais e uma participação como comentadora na CNN, Alexandra Leitão encontra-se comigo na “casa” de Manuel Fernandes, entre dois compromissos profissionais. Nada que lhe traga pressas.

A antiga secretária de Estado da Educação e ex-ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública – que recusou a António Costa assumir um lugar de maior protagonismo por sentir que não estava preparada para as funções de líder parlamentar – é uma pessoa tranquila. E muito bem resolvida, graças à atitude livre que pauta o seu discurso e ações, mais geridos pela consciência individual do que por agendas externas e ímpetos de partidarite aguda. Características pouco adequadas a um tempo em que se privilegia a saliência e se recompensa a ambição pessoal acima da capacidade e talento. Estes, tem ela de sobra. É uma mulher calma e inteligente. De sorriso tímido e gargalhada honesta. E sobretudo livre.

Se não fosse assim, talvez a sua carreira política a levasse mais longe, mais depressa, mas Alexandra Leitão não é pessoa de dispensar princípios em nome da ambição, muito menos de papaguear ideias alheias se não se sente confortável com a sua defesa.

Foi isso que a afastou da carreira diplomática em que na primeira juventude acreditava querer fazer caminho. “Em seis meses de curso de Direito já tinha desistido dessa ideia. Um diplomata tem de implementar, a cada momento, as políticas de quem governa no seu país. Eu teria imensa dificuldade em defender políticas com as quais não concordo. Não era para mim, não iria conseguir cumprir a missão. Além disso, eu sou muito próxima da minha família e um bocado mãe-galinha… e odeio andar de avião”, confessa, na primeira de muitas gargalhadas que lhe dão vida às sardas, como ao olhar.

Mãe de Leonor e Catarina, de 21 e 18 anos, é notório que o que mais lhe custou nesse tempo passado no governo foi não estar tão presente quanto desejaria na vida das filhas, durante sete anos determinantes. Mas mesmo com todas as obrigações e imprevistos, conta-me, fazia questão de ter ao menos um dia de exclusividade para elas.

Pedimos pastéis de bacalhau com arroz de grelos – Alexandra confessa-se mais peixívora e a escolha revela-se acertada – e vamo-nos entretendo com a conversa e os salgadinhos apetitosos que compõem as entradinhas d’O Madeirense, onde nunca falta o tradicional e guloso bolo do caco com manteiga de alho a derreter. Imperdível.

Alexandra conta-me que a sua vida política começou cedo, ainda que o protagonismo só tenha vindo com o convite de Tiago Brandão Rodrigues, amigo de décadas, para integrar o Ministério da Educação no primeiro governo de António Costa. “Eu filiei-me no PS muito cedo, aos 17 anos. Sempre fui daquela área – a minha família é de esquerda, mas não comunista, e quando cheguei à faculdade achei que era altura de ter uma intervenção mais séria.” Os astros alinhavam-se para isso. Era colega de Sérgio Sousa Pinto, João Tiago Silveira, Marcos Perestrelo, João Miranda – filho do constitucionalista Jorge Miranda, que viria a ser seu marido – e juntos avançaram com uma candidatura à Associação Académica de Direito. “Aliás, perdedora”, ri-se. Esse seria o primeiro passo para fundar o núcleo de estudantes socialistas, que viria a coordenar, acompanhando depois Sérgio Sousa Pinto na JS.

Então veio o tempo de se concentrar na carreira, que ainda assume como sendo a de professora – aquilo que a preenche e entusiasma, a sua vocação.

Nascida em Alvalade e com o liceu feito em Carcavelos, onde cresceu, a Universidade de Lisboa fez-se sua casa na licenciatura, em que se apaixonou pelo Direito Público, consolidou-se no Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas e no Doutoramento. E depois de cumprido o estágio num escritório de advogados, confirmou as já fortíssimas suspeitas de que queria ensinar, concorreu e fez-se Professora Auxiliar.

Até hoje, fala dessas funções com o entusiasmo de quem se mantém apaixonado pelo que faz. “Gosto imenso de dar aulas. Quando fui para o governo foi mesmo o que mais me custou: deixar os alunos – ainda recebia, nos primeiros tempos de governo, imensos mails deles.”

Voltou assim que pôde, ainda que tenha precisado de se readaptar, após o não tão breve interregno do período de funções governativas. “Assim que soube que não ficaria, reativei a carreira universitária – em mestrado e doutoramento porque podia compatibilizar com as funções de deputada. Mas quando voltei, custou-me imenso apanhar o comboio… até a plataforma da faculdade era diferente!”, ri-se, recordando as dificuldades, que acabou por vencer num par de meses.

Ainda assim, o bichinho da política não morreu – nem sequer se pode dizer que esteja adormecido. Isso é óbvio quando defende políticas públicas capazes de incentivar o crescimento e o valor acrescentado além do turismo – “É ótimo termos turismo, mas custa-me que estejamos tão confortáveis apenas suportados nele” –, quando diz que os salários têm de subir e o Estado deve dar o exemplo. Mas também quando repete elogios a Pedro Nuno Santos, a quem adivinha um futuro no PS. “Acredito que ele tem vontade e está disponível até para a travessia do deserto que possa vir depois de Costa. E tem boas hipóteses de ganhar o PS e até colher algumas simpatias noutras esferas, porque ele é capaz de entrar numa sala e marcar, de mudar em seu favor um ambiente hostil.”

Também a ela é fácil adivinhar que a vida política volte a abrir portas. Em que funções, está por saber, mas há de confessar que gostaria de voltar a ter funções governativas. Talvez por não ter tido muito tempo para executar os seus projetos enquanto ministra. “Por isso é que gostei mais de ser secretária de Estado. Fui ministra no tempo da covid… não havia muito que se pudesse fazer nessa altura”, admite, para logo juntar que as reformas que preparara para a Administração Pública estão agora a acontecer, “como o SIADAP”, exemplifica.

Assume que sempre foi seguindo, à distância, o universo político nacional e internacional, mas ganhou especial interesse e atenção no período pré-troika, nas movimentações de uma Europa em convulsão, da Grécia a Portugal. Até ao auge em 2015, quando nasceu a geringonça. “Era uma ideia que eu sempre alimentara como interessante, sendo eu deste PS mais de esquerda. E com o convite – aliás surpreendente – que recebi do Tiago Brandão Rodrigues, tive a oportunidade de o viver. Numa pasta muito técnica, é certo, mas as pastas são o que delas fazemos.”

Aos 50 anos, Alexandra Leitão garante que está confortável na sua pele – “sempre me senti professora, é o que sou, independentemente de outras coisas que vá fazendo. Quando se interrompe uma carreira durante sete anos, o ajuste é difícil, tudo muda, a vida é muito diferente. Mas reencontrei o rumo com alguma rapidez, Tive sorte e encontrei o meu espaço.”

Depois, assume que governar não é uma gaveta fechada. “Nunca escondi o meu interesse por cargos executivos e claro que mantenho isso em cima da mesa. Mas não condiciono a minha atuação, os passos que dou e os comentários que faço por isso. Eu planeei ser professora da faculdade, trabalhei para isso e consegui. Mas planear ser ministra é impossível.”

E se lhe propusessem um lugar autárquico? Entusiama-se de imediato, brilham-lhe os olhos. “Deve ser super interessante. Porque é mais executivo, permite ver ação e mudança em quatro anos – o que a nível nacional não se consegue.” Encarreira a descrever o que mais prazer lhe deu enquanto governante: a obra feita. Um pavilhão de uma escola, a Escola Portuguesa de Cabo Verde – “fiz três viagens de avião, sempre a sofrer!”. “São coisas básicas, simples, mas fui eu que fiz.”

Pedimos cafés e a conversa segue o seu rumo para outros temas que a apaixonam e conta-me como foi um acaso que a levou a um dos momentos mais entusiasmantes da sua vida: o concerto de Bruce Springsteen em Monza, Itália, há um mês. “Sou superfã e quando fiz a Vichyssoise, do Observador, a sobremesa que propus foi a minha canção preferida do meu cantor preferido, The River. Dias depois, recebo no correio do deputado um mail de um senhor a avisar que havia uma tour europeia a caminho.” Ri-se a recordar como um perfeito estranho, que até fez questão de se dizer nos antípodas políticos do pensamento da ex-ministra, a levou a viver uma experiência que recordará para sempre. E como depois trocaram mails com as impressões do concerto, sem nunca se terem visto ou conhecido. Conhecendo Alexandra Leitão, não é difícil perceber essa simplicidade e abertura. Ou adivinhar que a sua história ainda tem muito por escrever.