Despedimo-nos do verão e da euforia extasiante que nos trazia e fazemos as pazes com as tardes de letargia dos domingos de outono. Começamos a procurar sonoridades mais melancólicas, na ânsia de encontrar algo que descreva este sentimento indistinto, mas primal, que parece atingir-nos a todos quando o primeiro friozinho se levanta.

Acredito que quem que me lê já teve algum um destes momentos singulares: recebeu uma recomendação de algum álbum ou artista e, ao ouvir passivamente a música nos seus headphones enquanto que verifica a sua caixa de correio, capta alguma letra em particular que o deixa prostrado de incredulidade – como é que alguém, sem semelhanças ao meu percurso de vida, captou alguma vivência que (ou até agora o achava ser) me era tão idiossincrática? – e fica hipnotizado por esse artista para sempre.

É neste ponto que, para mim, Chappell Roan entra em cena. O álbum The Rise and Fall of a Midwest Princess é fantástico, mas desta vez gostaria de me afastar do registo de crítica cultural, e aproximar-me do registo do desabafo. Em particular, partilhar o meu momento com uma música em particular do álbum: California.

I stretched myself across four states
New lands, west coast, where my dreams lay

A sua voz começa por preencher, retumbar numa sala vazia de acordes, marcando o tom sombrio do desapontamento que irá arrastar-se durante o resto da música. O associar de um espaço físico com o lugar mental para onde fugíamos quando tudo era tão inalcançável. “Quando eu estiver lá, então finalmente irão ver-me e perceber-me e perceber o meu génio, porque no sítio onde as pessoas são iguais a mim não há possibilidade senão a de suceder, ao contrário do sítio esquecível de onde venho”.

E a inevitável confrontação que a cidade é só isso – uma cidade –, onde ninguém te deve as promessas que fizeste ao teu eu mais novo. Where my dreams lay: a inevitável confrontação que, para onde fujas, não foges de quem carrega os teus sonhos e a responsabilidade de não os conseguir realizar – tu próprio. Onde eu diria Porto, outra pessoa diria Lisboa e Chappell Roan diz Los Angeles. O meu assombro começa a assomar.

‘Cause I was never told that I wasn’t gonna get
The things
Iwantthe most
But people
always say, “Ifit hasn’t happened yet
Then maybe you should go

Os vintes são caracterizados pela euforia e o caos de, pela primeira vez, sermos confrontados com o livre-arbítrio, e de conseguirmos fazer algo sobre ele: o acumular de sonhos e planos, que, com a maioridade, parecem finalmente estar ao nosso alcance. O que não nos disseram foi que com o livre arbítrio vem o choque de não ser do nosso direito, mas da nossa chance, os nossos sonhos. É daquelas coisas que nos avisam – As coisas não te vão ser dadas de mão beijada!, já dizia a minha mãe –, mas entra num ouvido e sai pelo outro, porque é daquelas coisas que nunca nos aconteceria a nós… certo?

Chappell Roan tem um percurso de vida com que é impossível não empatizar. Chappell escreveu a música durante o confinamento, em 2020, após um desenrolar de acontecimentos em que, quando o seu single Pink Pony Club em 2020, não atendeu às expectativas e a sua gravadora desistiu do contrato assinado, foi obrigada a desistir temporariamente da sua carreira na Califórnia e a regressar à sua terra natal no Midwest rural. Não deixa de ser um espelho para alguns de nós que, a tentar, sentem o arrastar perigoso do tempo e um objetivo que parece cada vez mais longe, quando engrossam as fileiras dos que com a nossa idade já fizeram algo maior, algo melhor.

Come get me out of California
No leaves are brown
I miss the seasons in Missouri
My dying town
Thought I’d be cool in California
I’d make you proud
To think I almost had it going
But I let you down

No clímax da música, a batida atinge já um expoente que mostra a urgência do pedido. Come get me out! Come get me out! Noutra vida, seríamos livres de sonhos gigantes e assombrosos, livres de um fardo psicológico de provar aos outros – mas, acima de tudo, às vozes na nossa cabeça – que estamos à altura das metas que estabelecemos. No entanto, por vezes parece tão doce assumir a derrota perante a marcha inexorável do tempo. Às vezes parece tão doce assumir o comodismo morno do sítio de onde viemos, um sítio (de novo, não apenas físico) com o qual já fizemos as pazes.

Saem hoje as nomeações para os Grammys 2025, onde The Rise and Fall of a Midwest Princess é uma das principais apostas para a categoria Album of the Year, e Chappell Roan na categoria Best New Artist.

Levando o papel dos Grammys no reconhecimento da influência da obra de artistas cum grano salis – ou não fosse uma das cerimónias com menos credibilidade na indústria do entretenimento –, o sucesso massivo que Chappell Roan acumulou em poucos meses já é uma prova de reconhecimento popular.

Num cenário onde a cultura pop parece de alguma forma dominada por um fenómeno de utilitarismo emocional, este álbum e a persona de Chappell Roan parecem liderar uma contra-corrente onde se estabelece um diálogo mais franco, mais bruto sobre fenómenos universais da experiência humana. Ou não fosse o desapontamento em tentar e falhar uma das coisas mais assustadoras de falar, num momento da cultura em que todos os falhanços têm o horrível potencial transformador em histórias de superação. Às vezes só queremos desleixar-nos um pouco e deixarmo-nos emocionar por uma história de falhanço. Quantas vezes nos permitimos a essas?

Estudante de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto