Na semana passada num longo artigo no jornal Público, Roberto Merril e Pedro Silva contrapuseram a ideia de que o IRS elevado era um fator de injustiça social porque trava a mobilidade social. Tentarei neste texto, responder a cada um dos argumentos.

Primeiro, os autores reconhecem o argumento de que quem não herda, quem começa do zero, apenas depende do seu trabalho para subir na vida. É inegável. Mas, partindo desse argumento, defendem a solução pela negativa, ou seja, a taxação sobre as heranças e o património. Se há uma diferença entre quem herda e quem não herda, os autores defendem que ela deve ser corrigida pela negativa, ou seja, nivelando todos por baixo. Não me parece, de todo, que a prioridade devesse ser essa. Deixando de lado essa diferença que me parece mais ideológica do que técnica, passemos ao segundo problema dessa ideia. Em teoria, os impostos sobre heranças e património têm menos efeitos de distorção na economia do que os impostos sobre o rendimento. Mesmo de uma perspetiva moral de defesa do direito de propriedade, não se pode dizer que taxar uma propriedade existente (uma casa ou uma herança) seja mais imoral do que uma propriedade recente (o salário). Portanto, não havendo diferenças de princípio, os menores efeitos de distorção da economia, poderiam levar-me a desejar que os impostos sobre a propriedade substituíssem os impostos sobre o rendimento no mix de receitas fiscais. Mas há dois problemas com isto. Os impostos sobre propriedade são muito mais difíceis de cobrar porque muito património não é líquido, ao contrário dos rendimentos que são 100% líquidos. Em segundo lugar, a avaliação da base tributável é muito mais complicada no caso do património, exigindo recursos imensos para o fazer de forma justa (basta ver a diferença entre os preços de mercado das casas e a avaliação para efeitos de IMI). Estes problemas de cobrança fazem com que o peso os impostos sobre património e heranças seja sempre insignificante, mesmo nos países onde esses impostos pesam mais. Já o rendimento (e o consumo) é facilmente calculável e resulta num fluxo, tornando mais fácil a cobrança. Não é por acaso que os impostos sobre o rendimento e o consumo são as principais fontes de receita em quase todos os países desenvolvidos.

Os autores depois seguem com uma evidência estatística: a mobilidade de rendimentos é mais fácil onde a desigualdade de rendimentos é menor. Não era necessário grande estudo para antecipar isto. Se uma escada só tiver três degraus, será muito mais fácil passar do mais baixo para o mais alto do que se a escada tiver 20 degraus. Vamos imaginar que, por extremo, o IRS era de 100% para salários acima de 1.200 euros e toda a gente recebia 1.000 euros quer trabalhasse, quer não. Num mundo assim, todas as pessoas receberiam entre 1.000 e 1.200 euros. A mobilidade social seria relativamente fácil. Qualquer pessoa que passasse do desemprego para um emprego remunerado a 1.200 euros, passaria do fundo para o topo da pirâmide de rendimentos. Só que essa mobilidade teria pouco significado prático. Este é um exemplo extremo só para demonstrar que a relação entre desigualdade de rendimentos e mobilidade de rendimentos é tautológica e, portanto, com pouco significado.

Os autores prosseguem colocando em causa a própria benevolência do conceito de mobilidade social, considerando que não é um bem em si mesmo. Defendem essa posição com o argumento de que as pessoas têm preferências diferentes e podem, por isso, optar por um caminho profissional que lhes dê menos mobilidade social. Não podia concordar mais. Conheci imensas pessoas assim, especialmente na Academia. Conheci pessoas absolutamente geniais que poderiam ter tido carreiras muito bem pagas fora das universidades, mas que optaram por uma vida mais relaxada e, da sua perspetiva, mais intelectualmente estimulante. Eu próprio, a certa altura da minha vida, tomei a opção de deixar uma carreira que teria feito de mim milionário. Pegando neste argumento, os autores prosseguem: “Uma teoria da justiça liberal deve respeitar as preferências dos indivíduos nas suas escolhas de planos de vida”. Também concordo. E é precisamente por concordar que as pessoas têm escolhas diferentes e o liberalismo deve respeitar essas preferência que considero a possibilidade de mobilidade social uma questão de justiça social. Se há pessoas que optam por ter uma vida mais calma, abdicando de mobilidade social em prol de outros benefícios (saúde, mais tempo para o lazer, etc), não fará sentido que quem assume uma opção diferente possa também beneficiar dessa opção? É justo que alguém que abdicou de alguns aspectos da sua vida para poder ter mobilidade social não a possa ter, apenas porque outros, legitimamente, tomaram uma opção de vida diferente?

Os autores terminam defendendo os efeitos redistributivos do IRS deixando no ar a acusação habitual de que quem defende descidas do IRS quer é mais desigualdade social. Ao maniqueísmo não vale a pena responder porque é o argumento típico de quem não tem argumentos lógicos. À questão crucial já vale a pena responder com um exemplo: a Irlanda. A Irlanda tem um esquema de taxas menos progressivo do que o português. Apesar disso, as suas despesas em educação, saúde e benefícios sociais per capita são superiores a Portugal em termos absolutos. Porque é que a Irlanda pode gastar mais do que Portugal nos aspectos da despesa pública que permitem aos menos afortunados viver melhor? Porque produz mais e parte da razão para produzir mais passa por ter um regime fiscal atrativo para quem investe e trabalha.