“Eu acima de tudo gosto de comer bem”, adverte Pedro Cabrita Reis antes de me pedir conselho e optar, depois de selecionar um fantástico Quinta do Crasto para nos acompanhar, pelas pataniscas de bacalhau, “bem fininhas e tostadinhas”, diz, depois de saber que as pode ter como prefere. Eu fico pelo habitual filete de espada com limão, molho de manteiga. É um estreante n’O Madeirense e revela a agradável surpresa de encontrar um restaurante assim, acolhedor, num centro comercial. O anfitrião Manuel Fernandes há de dar-lhe, durante o nosso encontro, boas razões para voltar. É assim a arte de bem receber. E Pedro, na naturalidade radical que muitos interpretam como exotismo ou sobranceria – a vaidade, essa assume-a, com propriedade -, sabe apreciar esses gestos.

Não é que se leve muito a sério – há de desafiar-me a atender-lhe o telefone e informar quem nos interrompe que “não está, foi à casa de banho” -, não tem é grande paciência para quem se constrói de artifícios. Nas mãos traz os vestígios da arte, em pinceladas verdes e azuis que teimaram em não desaprecer, mas parecem quase propositada combinação com a roupa.

Foram precisas semanas para combseguirmos sentar-nos. Pedro está permanentemente em trânsito – no último mês teve exposições em Londres e Lisboa, em Palma de Maiorca, e está a caminho da Alemanha. Mas pretende encontrar brevemente tempo para “estacionar”, para dar vida ao muito que traz na cabeça. “Sou obcecado. O trabalho é uma grande fonte de prazer; eu não faço nada sob pressão, mas ponho nele muita intensidade”, diz. “Não faço senão trabalhar, nem sei o que são hobbies, nem férias.”

Não é só por ser apaixonado, é que o que faz é uma extensão dele, é ele próprio. E o seu dia também se faz de praia, passeios com os cães e boas temporadas no campo algarvio, que o entusiasma. “Esta chuva foi excelente, já podemos avançar com a apanha da azeitona!” Fala da quinta na serra de Tavira, com vista sobre o mar que se estende a 15 minutos dali e pela imensidão do horizonte. O monte de terra e pedras que ao longo de cinco anos foi transformando num refúgio de casas e oliveiras, laranjeiras e medronho, figueiras e alfarrobeiras que lhe permitem ter vinho, aguardente, azeite e outros produtos para deleite próprio e dos amigos que ali vai recebendo. Eles, os que gostam de ir ao mercado, preparar, cozinhar, fazem o menu e Pedro vai distribuindo cocktails, negronis e gins enquanto cumpre tarefas à sua ordem, como descasca batatas.

“É inevitável que lá vão aparecendo e temos de ter a generosidade de os receber, mas eles respeitam o meu espaço. Até porque, sei que não parece, mas não sou de todo uma pessoa social. Sou um grande profissional e essa parte é inerente, mas há uma fissura entre o que sei que tenho de fazer e o que gosto, que é estar como sou.” Esse prazer, colhe-o antes a comer sozinho nos restaurantes, a entreter-se à mesa em conversas com os empregados ou a analisar a linguagem corporal e a ouvir conversas várias alheias ao mesmo tempo. “Dá-me um prazer que dá volta ao estômago”, confessa.

Ri-se. Põe-se sério quando o tema é outra parte dele, o trabalho, para dizer que o que gosta mesmo é do que ainda não fez. “A minha memória é o futuro, entendendo-a na dimensão do tempo, o que há de vir. O atelier é um desafio, um campo de combate, de alegrias, de nada, de vitórias, de frustrações.”

Interrompe-se para dar uma volta ao vinho no decanter, toma atenção aos copos e deteta-lhe diferenças – “o seu é melhor”, diz-me. Depois retoma ao interminável movimentar dos trabalhos que faz e ao momento de construir uma exposição, quando as obras se encontram apesar da sua heterodoxia. “Nesse momento, esse corpo já não é meu. Diz-se que as obras nunca são de quem as compra, mas não é bem assim.” Confessa alguma dificuldade em deixar partir os seus trabalhos e como depois se vinga de elas o terem abandonado. Ri-se com a ideia que ele próprio materializou.

Confessa que já recusou várias vezes entregá-las, por não ver no comprador ou no local onde ficará a morar a natureza certa. “Faço questão de saber para onde vão; o artista tem de ter rigor no como, para onde, para quem vai a obra. Mais importante do que vender é saber como se vende.” É um rasto de reputação, digo eu – e ele gosta do conceito. “Escolher como se entrega a obra é uma decisão política, determina o reforço da presença”, resume.

A fuga de casa
Nesta altura já se mete com a Cláudia, que traz o sal grosso pedido, já me trata por tu e eu sigo-o – é fácil ganhar essa ligação quando a conversa se embrenha em intimidade intelectual. Descreve o permanente processo criativo que é a sua forma de estar em consciência. “Não tenho fragilidades e estados de alma – nem alma tenho; tudo flui sem fricções na vida quotidiana; se não estou a trabalhar é porque decidi ir passear, mas estou sempre atento a informação, sons, imagens que possa vir a usar. Quem tem de parar para trabalhar não é artista, é praticante das Belas-Artes.” Ele, apenas faz. Há uma continuidade na criatividade – uma curiosidade filosófica sobre o que o rodeia complementada com o ato de a transpor para a tela, seja um olhar, uma sombra, uma conversa… “Tudo isso te determina e diz que precisa de ti. Faz-se do teu caminho.”

Diz que sempre foi artista, desde que é gente, e porque gosta de fado chama-lhe destino. Na atual exposição do MAAT dedicada a Maria João Carmona e Costa, há uma sala que lhe é dedicada com uma série de desenhos seus: o mais antigo, fê-lo aos 15 anos. Pedro nasceu em setembro de 1956 e nunca quis ser médico ou bombeiro ou advogado. Cresceu com a mãe, de Trás-os-Montes, dona de casa, a irmã mais nova e o pai, algarvio, empregado da Nestlé, em Campo de Ourique (Rua Tenente Fereira Durão, 12, 1.º direito, especifica). E nas primeiras memórias que tem está a mãe a esticar-lhe telas. Nunca se opuseram a que fosse artista. “Há esta coisa do começo difícil dos artistas – eu não faço parte desse grupo.” Por isso foi fácil, depois de sair das mãos da D. Isabel e da D. Inácia, cumprido o liceu no Pedro Nunes – era um dos rapazitos do bairro entre os da classe económica folgada que ali dominavam o ambiente de então – embarcasse nas Belas Artes. Entrou com um Desenho de Estátua do fauno dos bosques feito em meia hora. Mas levou dez anos a fazer o que devia ter em cinco. É que o 25 de Abril trouxe-lhe a idependência, à boleia de uma saída de casa sem avisar ninguém.

Aos 17 anos, convencido o pai a assinar-lhe a ordem de soltura para se inscrever nos para-quedistas, desapareceu. Foi viver com amigos e a namorada – “não estava ali a fazer nada”, justifica. Só voltou a ver os pais no dia da recruta para a tropa, chamado pelo nome na parada para ir explicar aos pais, que ali estavam, porque tinha fugido. Com eles vinha a namorada a quem recorreu como argumento suplementar: “Vou viver com ela, que suspeito já deve estar grávida.”

Até à eternidade
Vem queijo da serra com marmelada e banana, e um extra de mel. Conta que então se casou com Rosa Carvalho, pintora com quem partilhou quase duas décadas de vida e uma filha, Margarida. Trabalhavam, na Faculdade de Ciências de Lisboa, ele como jardineiro – não havia trabalho para artistas -, a bebé ia no cesto. E sempre pintar desesperadamente.

Assim que cumpriu o bacharelato, começou a dar aulas, tal como a mulher, e para não sofrer as agruras de Lisboa mudaram-se para o Algarve passando dos 300 escudos de jardineiro paraos mil e tal de professor. A vida era boa, os alunos adoravam-no – os pai nem tanto; os seus jeans não combinavam com as gravatas docentes. Viria para Lisboa para dar mundo à filha e depois de 1986 passaria a viver só da sua arte. O momento de mudança? Em 1985, depois de ter feito a decoração do Frágil a convite de Manuel Reis – conhecera-lhe o trabalho e na ArCo, reza o mito -, foi contratado para intervir numa boite numa casa na Quinta da Marinha. Calculou o que queria com base no que recebia num ano e percebeu que pedira pouco… aprendeu. Aí nasceu uma relação, passou a aconselhá-lo nas compras de arte, e veio até a ser padrinho do neto de António Pinto da Fonseca.

E já chegou ao auge? “Percebi que o tudo não me chega, quero o absoluto. A eternidade.” Explica que em Varsóvia, levado a passear por um taxista, este lhe apontou “um edifício à Picasso” – era um Frank Gehry. “Isso é eternidade, é nem saberem quem eu fui ou o que fiz e identificarem algo como à Cabrita. O resto é dinheiro para a sopa e os charutos. Mais do que ter, é ser tudo.” Por isso os mauis importantes mueus do mundo, onde já tem nome firmado, não chegam. “Só se conhece o privilégio da eternidade quando se chega lá”, diz-me, já com cafés e um whiskey à frente, antes de contar que se casou de novo em 1992, com Patrícia Santos Garrido, com quem teve outro filho. “Independente do que possam ser, adoro a Margarida e o António por igual; sou autoritário, mas sem fazer julgamentos.”

O que mais prazer lhe dá? “Não fazer nada, sou especialista encartado em sentar-sme ao sol sem fazer nada. Apresento-me como cultivador do fare niente.” Ri-se antes de dizer que também gosta de partilhar conhecimento no seu atelier, trabalha com 40 pessoas à volta. E viajar? “Reivindico-me pessoano: vejo o mundo a partir da Rua dos Douradores.”