Se alguém dissesse a um delegado especialista hospitalar que tinha tido a sorte da vida ao ser despedido, na crise de 2013, dificilmente ele acreditaria. Mas o fado que obrigou Rodrigo Castelo a desistir da carreira farmacêutica revelou-se mesmo na oportunidade de uma vida. Nesta terça-feira, no Algarve, o engenheiro de Produção Alimentar que há uma década se fez chef teve não uma mas duas coroas de glória, ao ver o seu Ó Balcão premiado com uma estrela Michelin e mais uma estrela verde (são já cinco no país), que distingue as cada vez mais valorizadas propostas gastronómicas sustentáveis de alta qualidade. No seu restaurante, em Santarém, de onde nunca quis sair, trabalha “quase exclusivamente os produtos da região e da época” preparando-os em operação de alquimista – da vaca curada na Agrária de Santarém sob sua supervisão ao Coscorão do Rio até ao Mar (cone em massa de coscorão salgada que encerra uma pirâmide de creme de camarão de rio com lúcia-lima, a que se sobrepõe uma dupla de peixes de rio, fataça, e de mar, atum, coroada por espuma de camarinhas). E se agora leva duas estrelas ao peito a comprovar que o que faz está ao nível do melhor do mundo, não será por isso que abrandará esforços. “Eu hei de aprender sempre. Até ao último dia da minha vida não vou estar satisfeito.”

A emoção de Rodrigo Castelo na primeira noite de gala Michelin exclusivamente dedicada aos chefs, mas sobretudo à comida e aos ingredientes portugueses, não foi porém exclusiva deste chef escalabitano. No palco montado no Hotel Nau Salgados, no Algarve, desfilaram mais novas estrelas, com destaque para a dupla Vítor Matos e Francisco Quintas (2Monkeys, em Lisboa), João Sá (SÁLA, Lisboa) e o madeirense Octávio Freitas (Desarma, no Funchal), que fez questão de lembrar que “para cumprir o sonho de estar entre os melhores do mundo não é preciso sair de ‘casa’, antes aproveitar o melhor que a terra nos dá, trabalhar muito, mas sobretudo nunca perder de vista o que é mais importante: divertirmo-nos enquanto fazemos o nosso melhor”.

“A estrela verde está a ganhar protagonismo a nível mundial e dar esta distinção a um restaurante é para nós muitíssimo relevante, porque se trata de distinguir casas que consideramos exemplares na gestão para a sustentabilidade, no aproveitamento dos ingredientes de época, etc.”, diz ao NOVO Mónica Rius, diretora de comunicação da Michelin para Portugal e Espanha. “Há outros restaurantes com um trabalho interessante a este nível, mas os que conseguem chegar a este patamar queremos que sejam uma montra para todos. E isto já move muitos foodies a nível mundial”, assegura.

Prémios especiais para profissionais singulares
Às quatro novas estrelas únicas para restaurantes portugueses, juntou-se uma promoção, com o chef Vítor Matos a conseguir dose dupla, ao ver o seu Antiquum, no Porto, subir à categoria dos agora oito restaurantes do país com lugar no firmamento das duas estrelas Michelin. E se este e os demais chefs que mantiveram as distinções (consulte todas as estrelas no final do texto) estão no topo da lista, a gala que marcou a criação de um Guia Michelin exclusivamente dedicado a Portugal teve ainda outros momentos especiais, como os prémios surpresa para distinguir o trabalho de três profissionais de mão cheia: a jovem Rita Magro (do incrível Blind, no Porto) foi reconhecida como Jovem Chef, Pedro Marques (do The Yeatman, também na Invicta) pelo Serviço de Sala e Leonel Nunes levou para o Funchal (Il Gallo d’Oro) o Prémio Sommelier Michelin 2024.

A festa ficou completa com mais oito restaurantes na lista Bib Gourmand (que premeiam a relação qualidade/preço), num total já de 32 casas, e um rol de 96 com recomendação no guia mais famoso do mundo.

“Apesar de estarmos juntos na Península Ibérica, os ingredientes e sobretudo a forma de os preparar e cozinhar distinguem o que comemos de cada um dos lados da fronteira. Portugal tem uma marca própria na oferta gastronómica, nas regiões e nos próprios restaurantes e faz-nos sentido que o turismo gastronómico atinja aqui um nível muito mais alto, juntando-se aos 40 destinos a que dedicamos publicações”, confirma Mónica Rius, reconhecendo a visibilidade que estes “óscares da gastronomia” trazem. “São 15 mil referências numa lista que é a mais reputada do mundo e onde damos não uma imagem de hoje, mas um retrato que perdura no tempo”, sublinha a responsável, adiantando que a preparação da próxima gala já avança a pleno vapor, ainda que a cidade anfitriã não tenha sido definida.

A noite em que a terceira estrela não veio
Numa noite em que Catarina Furtado fez as honras da casa e Cuca Roseta encantou com dois momentos musicais, com a voz do fado a arrepiar a sala, ficou, porém, algum amargos de boca. Em primeiro lugar, a lista de estrelas continua a ser o “clube do Bolinha” – com o próprio diretor internacional do Guia Michelin a reconhecer a “infeliz” falta de mulheres. Gwendal Poullennec recusa, ainda assim, a ideia de “distorcer classificações” em nome da paridade de género.

Depois, a desilusão chegou porque ainda não foi desta que Portugal viu chegar a terceira estrela, uma evolução que os mais reputados chefs esperavam que acontecesse nesta gala. “Todos temos as nossas opiniões e podemos ter experiências incríveis em restaurantes, que consideramos estarem ao nível das três estrelas, mas se não houver unanimidade entre os inspetores, ainda que haja propostas, a estrela não é atribuída”, justifica, ao NOVO, Mónica Rius (na foto).

A diretora de comunicação da Michelin para Portugal e Espanha prefere realçar a valorização do país, que apresenta já uma excelente proposta gastronómica. “Esta foi uma noite para recordar, nem tanto pela nova seleção de estrelas quanto por ser o momento em que os holofotes se viraram para Portugal. Há um caminho que estamos certos de que vai ser feito – e temos dos nossos inspetores essa indicação – de ascensão do país neste universo, fruto de uma aposta madura, da boa formação que garante aos seus profissionais e de propostas gastronómicas que acompanham um alto nível de turismo. Tudo isto justifica que o Guia dê este protagonismo a Portugal”, conclui Mónica Rius, apontando a relevância de incluir a gastronomia como fator-chave para o turismo. E também a esse nível, os dois países ibéricos se distinguem: “A diferença maior é que Portugal tem uma incrível visibilidade mundial, enquanto Espanha parece, talvez pelo regionalismo, não falar a uma só voz na promoção e posicionamento do país.”

E o que recomendaria Mónica Rius aos chefs que hoje sonham conseguir uma estrela? “Que não sonhem com isso. Que trabalhem para os clientes e para as equipas, para oferecer a sua proposta de assinatura pessoal. E se tiver de haver estrela no caminho, ela virá, com consistência e como reconhecimento do trabalho de equipa bem feito e a longo prazo. E que se divirta a fazê-lo.”

Os oito restaurantes com duas estrelas Michelin em Portugal

Vila Joya Albufeira
Dieter Koschina
Il Gallo d’Oro Funchal
Benoît Sinton
Casa de Chá da Boa Nova Leça da Palmeira
Rui Paula
Belcanto Lisboa
José Avillez
Alma Lisboa
Henrique Sá Pessoa
Ocean Porches
Hans Neuner
Antiqvvm (NOVA) Porto
Vítor Matos
The Yeatman V. N. Gaia
Ricardo Costa

Os 31 restaurantes com uma estrela Michelin em Portugal

Gusto by Heinz Beck
Almancil
G Pousada
Bragança
Fortaleza do Guincho
Cascais
Desarma (NOVA)
Funchal – Chef Octávio Freitas
William
Funchal
A Cozinha
Guimarães
Bon Bon
Lagoa
Al Sud Joya
Lagoa
2Monkeys (NOVA)
Lisboa – Chefs Vítor Matos e Francisco Quintas
Encanto
Lisboa
Feitoria
Lisboa
Fifty Seconds
Lisboa
Loco
Lisboa
Kanazawa
Lisboa
100 Maneiras
Lisboa
SÁLA de João Sá (NOVA)
Lisboa – Chef João Sá
Eleven
Lisboa
Kabuki
Lisboa
EPUR
Lisboa
CURA
Lisboa
Mesa de Lemos
Passos de Silgueiros
Vista
Portimão
Euskalduna Studio
Porto
Pedro Lemos
Porto
Le Monument
Porto
Vila Foz
Porto
Herdade do Esporão
Reguengos de Monsaraz
Ó Balcão (NOVA)
Santarém – Chef Rodrigo Castelo
Lab by Sergi Arola
Sintra
Midori
Sintra
A Ver Tavira
Tavira

Artigo publicado na edição do NOVO de sábado, dia 2 de março