A novela da aprovação do Orçamento de Estado para 2025 foi uma boa fonte de entretenimento durante os últimos meses. As constantes piruetas da extrema-direita – com ameaças, nunca concretizadas, de divulgar provas de alegados convites para cargos executivos – foram sendo intercaladas com as linhas cada vez menos vermelhas do PS. A este cenário, juntou-se um presidente com demasiada vontade de intervir precocemente no espaço público, o que aumentou desnecessariamente a pressão sobre o processo.

Mas a história terminou sem drama. Os atores, em nome da estabilidade e não das convicções, anunciaram a viabilização do Orçamento do Estado para 2025 e, considerando as limitações à dissolução do parlamento que as próximas presidenciais impõem, a governação da AD vai prolongar-se até, pelo menos, ao debate orçamental para 2027. Significa que temos a primeira proposta orçamental para a Saúde do novo Governo, exercício que merece, sem dúvida, a nossa análise atenta.

O que salta imediatamente à vista é a autoavaliação dos primeiros meses de governação. E o que é apresentado não dá muita confiança. Segundo o próprio Governo, as medidas emblemáticas concluídas na saúde são a Linha SNS 24 para grávidas e o programa de vacinação contra a gripe e a covid-19. Não é caso para celebração, eram respostas que, apesar de terem sido ligeiramente ajustadas, já existiam e com historial de bom funcionamento. É dificil compreender tanta satisfação com tão pouco.

O Orçamento para a saúde aumenta cerca de 8%. Mas o Orçamento atribuído ao SNS não chega sequer aos 3% de aumento, ou seja, inferior à inflação registada em 2023 e ao mesmo nível da projeção para 2024! Pela primeira vez desde a Troika, Portugal tem um Governo que vai descapitalizar o serviço público de saúde, retirando-lhe capacidade de atuação e colocando em risco todas e todos nós.

O investimento anunciado no SNS é de 852 milhões de euros. Pode parecer muito, mas está em linha com o dos últimos anos. O cenário fica mais carregado quando se sabe que, desde 2013 e com a exceção de 2023, o investimento executado rondou sempre os 50% do anunciado e que o Governo se prepara para reforçar a política de cativações. Fica desde já uma previsão, que terei todo o gosto de revisitar daqui por um ano: 2025 não será diferente. O aumento do Orçamento do SNS é pequeno, as despesas correntes vão precisar de reforço, que, inevitavelmente, terão de vir desta rubrica. Este será mais um ano perdido de investimento na saúde.

O próprio Governo assumiu que o seu programa de combate às listas de espera cirúrgica na área oncológica só foi um sucesso graças ao SNS. Poucos meses depois, o reconhecimento traduz-se não em maior investimento no que funciona, fortalecendo o serviço público com mais meios e capacidade para cumprir a sua missão, mas num desviar recursos para o setor privado. É uma opção incompreensível e sem qualquer tipo de racionalidade.

O financiamento dos cuidados de saúde em Portugal não é equitativo. O Estado está pouco presente e demasiado deste ónus recai sobre as famílias. O aumento do Orçamento da saúde, mesmo considerado na sua totalidade, não inverte esta tendência. Continuaremos a ter as famílias a suportar um peso exagerado, muito acima dos nossos parceiros da OCDE.

A equidade no financiamento dos cuidados de saúde é essencial para a construção de uma saúde mais equitativa, que responda às necessidades em saúde com qualidade e que não deixe ninguém para trás. Infelizmente, o caminho escolhido foi outro. A despesa que as famílias têm com os medicamentos não para de aumentar, mas a prioridade do Ministério da Saúde foi garantir benefícios fiscais a seguros privados, o que na prática corresponde a uma transferência de rendimentos dos mais pobres para os menos pobres. Reforçar a parcela do orçamento disponível para alimentar o rentismo privado na saúde é um erro que pagaremos todos com juros.

Enfermeiro da Urgência Pediátrica e coordenador da Unidade de Saúde Pública Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca