O momento Kamala Harris chegou. Justamente quando Donald Trump estava em alta, depois da vitória no debate contra o presidente Joe Biden e da coragem demonstrada a seguir a uma tentativa de assassinato. Com a desistência da corrida do atual presidente democrata Joe Biden, incapaz de esconder mais as fragilidades da idade, o Partido Democrata, a começar por Biden, uniu-se em torno da vice-presidente Kamala Harris para tornar quase garantida a sua nomeação como candidata à presidência americana nas eleições de 5 de novembro.

Uma união em torno de Harris que veio de todos os níveis do partido, do topo, com ex-presidentes, como Bill Clinton e Barack Obama, ex-líderes no Congresso, como Nancy Pelosi, ex-candidatos à presidência como Hillary Clinton, a apoiarem-na numa questão de dias; do meio, com a generalidade dos congressistas, senadores, governadores, etc, a apoiarem-na; e da base, com a grande maioria dos eleitores democratas satisfeitos com a mudança e profundamente energizados com a hipótese de votarem na ex-senadora da Califórnia, 22 anos mais nova que Biden, filha de um imigrante jamaicano e duma imigrante indiana – a vice-presidente Kamala Harris.

Com esta mudança no topo do ticket presidencial, o que mudou na corrida eleitoral? Primeiro, ao recuperar o entusiasmo e energia do lado democrata, e alguns eleitores tentados a votar no antigo presidente republicano, Trump, Harris recuperou a posição dos democratas nas sondagens para as presidenciais para o nível em que eram antes do debate fatídico de 27 de junho entre Biden e Trump. Assim neste momento, Harris está ligeiramente atrás de Trump a nível nacional, um ponto percentual segundo a sondagem da Siena College para o New York Times, recuperando vários pontos em comparação com Biden na sondagem a seguir ao debate. Nos swing states, aqueles estados mais renhidos e prováveis de decidir a eleição, Kamala também recuperou a posição dos democratas, sobretudo nos estados do sudeste ao sudoeste, a chamada Sunbelt, que com Biden como candidato pareciam praticamente perdidos, mas agora voltam a ser competitivos.

Kamala Harris parece ter melhorado muito a posição dos democratas em vários grupos demográficos que até costumam favorecer o partido, mas que agora estavam desmotivados com Biden, e a considerar Trump ou outros candidatos. Harris tem nas sondagens percentagens muito melhores que Biden entre os hispânicos, os negros, os jovens, embora Trump continue mais forte entre as minorias étnicas e os americanos mais jovens do que em 2020. Infelizmente para os democratas, os números das últimas sondagens ainda não são o suficiente para se considerar que a corrida voltou a ser 50-50, ou que Trump estará prestes a perder a vantagem. Entre os mais velhos e os homens brancos, Harris parece ter perdido algum apoio em comparação a Biden, e sendo estes tão numerosos, particularmente nos estados do norte decisivos para a reeleição, faz com que Trump continue claramente favorito a vencer o colégio eleitoral, e consequentemente, a presidência.

Curiosamente o efeito combinado de simpatia por Trump após ter sofrido uma tentativa de assassinato, mais o impulso de energia em torno de Harris, fez com que a popularidade de ambos os candidatos subisse, sendo os dois muito mais bem vistos do que há umas semanas. As idiossincrasias de Harris, como o gosto por dançar, as expressões originais, ou as fortes gargalhadas, agora muito expostas, inclusive de forma crítica pelos republicanos, tem-se revelado populares entre os democratas e até eleitores independentes e alguns republicanos. Kamala Harris também tem carisma, e sobretudo, tem uma energia que já faltava há muitos anos a Joe Biden. Agora, é Trump que tem a idade avançada como fragilidade eleitoral. E os democratas que se sentem mais entusiasmados por votarem.

Trump e a sua equipa, na sua soberba pós debate e pós-atentado, também parecem ter cometido um erro na escolha do candidato a vice-presidente, o jovem senador JD Vance. Demasiado conservador, e com uma personalidade, tiradas e histórias estranhas e até repulsivas para muitos americanos, o senador tem sido atacado e gozado constantemente nos média, nas redes sociais, nos anúncios, e por muitos políticos democratas, inclusive alguns dos que podem vir a ser escolhidos como candidatos a vice-presidente por Kamala Harris. A impopularidade já revelada em várias sondagens de JD Vance, contrasta com a típica favorabilidade dada a outros candidatos à vice-presidente pouco depois de serem anunciados. Terá Trump feito um erro na sua escolha? Fez mal em privilegiar mais o legado do que a tática eleitoral? Os números das sondagens, a quantidade recorde de doações à Harris, a rápida mudança de narrativa após os incríveis momentos de Trump, já fizeram toda a vantagem republicana acumulada nos mercados de previsões após o debate perder-se.

O desafio para Kamala Harris agora é manter o momentum, e para isso tem de escolher bem o candidato a vice-presidente, com o astronauta e senador do Arizona, um swing state, Mark Kelly, e o popular governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, a aparecerem como favoritos. Para além de atacar Trump, Vance, e os republicanos em geral, e manter o entusiasmo da base, Harris também vai ter de conseguir mostrar uma imagem moderada e provavelmente desdizer muitas das afirmações mais à esquerda e mais impopulares que fez nas primárias democratas de 2020. Não basta recuperar os números e entusiasmo entre as minorias ou os jovens, tarefa que ainda está longe de ser fácil ou garantida, Harris tem também de evitar perder muitos eleitores homens, com e sem formação superior, que ao terem virado em prol de Biden nas últimas presidenciais, foram o grupo mais decisivo para tirar Trump da Casa Branca.

Veremos ao longo de agosto, com a escolha do candidato a vice e a Convenção Democrata, como se desenhará a estratégia eleitoral democrata para a reconstrução duma maioria bem distribuída que seja capaz de derrotar o favorito Trump.