Não há como contornar os factos: por muito que se tenha tentado por todos os meios desvalorizar a força do Chega – ou precisamente por causa disso –, André Ventura foi o grande vencedor destas legislativas. Todos os esforços e todo o trabalho da AD, e particularmente de Luís Montenegro, não chegaram para anular oito anos de uma governação socialista que pacientemente foi construindo não apenas uma enorme dependência do Estado como uma narrativa de que o PS tem o exclusivo da preocupação social e do empenho em contas públicas equilibradas.

É de rir, mas num país com fraca memória e ainda mais débil literacia – política, económica, cultural –, a coisa pegou. O costismo e o recentemente estreado pedronunismo fizeram vingar a ideia de que à direita só há papões de reformas de velhinhos indefesos, implacáveis defensores do capitalismo selvagem, inimigos das mulheres e dos pobrezinhos e estroinas que, na primeira oportunidade, vão deitar por terra o esforço hercúleo para pôr em ordem as contas públicas. O discurso repetido até se crer ser verdade.

Ninguém se recorda das três bancarrotas socialistas que deixaram o país no charco ou das afirmações do novo líder do PS – “não pagamos!” e “até tremem as pernas aos alemães”. Poucos têm noção de que os portugueses são diariamente espoliados para alimentar os cofres públicos – entre uma inflação descontrolada que rendeu milhares de milhões a Medina e a maior carga fiscal de sempre, com dois recordes batidos na governação de Costa – sem efeito que se veja nos cada vez mais desgraçados serviços públicos. Ou que o dinheiro repetidamente anunciado para resolver os problemas da saúde, da habitação, da agricultura, nunca chega ao destino e, quando chegam algumas parcelas, não é capaz de trazer soluções para a degradação e desprezo a que foram votados os serviços públicos, para alterar os efeitos de oito anos de ausência de vontade de resolver o que está cada vez pior na vida dos portugueses.

Ainda menos veem que só o salário mínimo tem subido e que o elevador social está parado na cave há anos, com um sistema educativo em falência técnica, sem professores e sem respeito por quem forma as gerações futuras, fruto de uma governação muito mais concentrada na sexualidade das crianças e em parecer moderninha a pôr casas de banho mistas nas C+S do que preocupada com a construção de uma escola capaz de dar às novas gerações armas para chegar mais longe do que os pais conseguiram.

Quase ninguém quer saber que o maior envelope financeiro europeu de sempre tenha sido quase todo entregue ao Estado (75%) e que mesmo assim apenas 18% dos 22,2 mil milhões de euros do PRR (mais de um terço já pagos por Bruxelas a Portugal) tenham sido usados para dar gás aos investimentos contratualizados. E já nem se fala do investimento público a zeros, da ferrovia atrasada em muitos anos, do aeroporto por decidir, da TAP comprada com dinheiro dos contribuintes para a tornar a vender a privados e de todas as escandaleiras e faltas de respeito declaradas a que assistimos desde 2015.

Apesar de ter governado durante oito anos, o PS conseguiu convencer 28% dos que foram votar que o que está mal ainda é culpa dos que vieram antes – o que é notável, mesmo que Passos Coelho tenha conseguido, depois dos difíceis anos da troika, vencer as legislativas com 39% dos votos – e que só o PS pode melhorar a vida dos portugueses, ainda que não o tenha feito nem com geringonça nem com maioria absoluta.

Entre a narrativa que convenceu alguns e o medo espalhado noutros, os socialistas conseguiram, depois de uma das piores governações e legados deixados ao país, quase a mesma votação do que a alternativa proposta pela AD. E isso também é mérito de um PS que pôs no mesmo saco da radicalização AD, Liberais e Chega, pouco se ralando – na tradição iniciada por António Costa – que isso servisse apenas para alimentar os que já não acreditam no “sistema”. Votar AD é que não, antes André Ventura! Só faltava dizeram-no assim, com todas as letras. E muitos seguiram e fizeram ecoar a mensagem.

Agora, o Chega sentará meia centena de deputados na Assembleia, pouco aquém dos menos de 80 da AD e do PS. E André Ventura, cujos méritos não podem ser menosprezados nos resultados de domingo, reclama os mínimos: que se respeite e oiça os 1,1 milhões que lhe entregaram o voto (nem AD nem PS chegaram a 2 milhões), que se conte com ele na formação de soluções.

Agora, ou Montenegro tem a arte de ir navegando à vista de pequenas vitórias, fazendo aprovar medidas com o ocasional apoio da esquerda e da direita, ou é derrubado mesmo antes de cumprir uma só das suas propostas para levantar o país. Quase certo é que vamos ter novas eleições antes do prazo normal da legislatura. E não, a culpa não é da Procuradora-Geral da República, nem do Presidente Marcelo. É do PS, de António Costa e da maioria dos que passaram pelos seus executivos e apoiaram os seus governos.

O que o PS fez, uma vez mais, foi pôr os interesses partidários e a vontade de se eternizar no poder à frente do futuro do país.

Diretora