Luís Montenegro anunciou, no debate sobre o Programa de Governo, “uma descida das taxas de IRS sobre os rendimentos até ao oitavo escalão, que vai perfazer uma diminuição global de cerca de 1.500 milhões de euros nos impostos do trabalho dos portugueses face ao ano passado”.  O verbo usado foi perfazer, leia-se “acabar de fazer”, e o ponto de comparação era o ano passado e não o Orçamento do Estado de 2024. A medida foi mal comunicada, mas ainda assim o português era possível de entender: aos 1.327 milhões de euros de corte de IRS calculados pelo PS, o PSD iria acrescentar mais 173 milhões, perfazendo um corte de 1.500 milhões em relação a 2023. Tão possível de entender que, no mesmo debate, os 173 milhões de diferença foram imediatamente mencionados por Bernardo Blanco.

Será então o valor de 1.500 milhões de euros de corte no IRS para 2024 verdadeiro? Não. A falsidade existiu, mas não onde os comentadores apontaram. Mais do que o significado do verbo perfazer ou da referência ao ano anterior, onde muitos comentadores falharam foi na razão por que o anúncio dos 1.500 milhões estava errado: o PSD somou 173 milhões a uns falsos 1.327 milhões anunciados pelo anterior Governo.

Comecemos pelo princípio. Portugal tem um sistema fiscal progressivo, em que salários mais altos pagam taxas mais altas de IRS. Quanto mais uma pessoa ganha, maior a percentagem do seu rendimento que é entregue ao Estado.

Imaginemos agora uma pessoa que ganha mil euros. Num determinado ano, os preços duplicaram. Felizmente para essa pessoa, o seu salário também duplicou. Essa pessoa passou a ganhar dois mil euros, mas, como os preços duplicaram, em termos reais ganha o mesmo. Faz, portanto, sentido que continue a pagar a mesma taxa de IRS. Se pagar uma taxa superior, isto significa que a carga fiscal sobre essa pessoa subiu, apesar de o seu salário se manter estagnado em termos reais. Para atingir esta neutralidade, o Ministério das Finanças apenas tem de atualizar os escalões de IRS pelo nível da inflação. Neste caso, teriam de duplicar todos os escalões para manter a neutralidade.

Neste exemplo, para ser mais perceptível, assumi uma inflação de 100%, mas a mesma lógica aplica-se a níveis de inflação mais baixa. Para manter igual a carga fiscal sobre os trabalhadores, é necessário atualizar os escalões de IRS ao nível da inflação. Fazê-lo não significa reduzir impostos. Não o fazer é que significa aumentá-los de forma automática, porque pessoas que ficam a ganhar o mesmo em termos reais passariam a pagar mais. Qualquer aluno de licenciatura de Economia percebe isso, mas não ponho as mãos no fogo pelos bolseiros do CES. Em muitos países, esta atualização dos escalões é automática, medida administrativa em que os políticos têm pouco a dizer.

O PSD no passado chamou a atenção para isto, nomeadamente quando, no Orçamento do Estado de 2023, apesar da elevada inflação de 2022, o Governo optou por não atualizar os escalões. Nessa altura, e bem, o PSD disse que isso seria uma forma encapotada de subir impostos. E foi. No Programa de Governo consta, e bem, que esta atualização passe a ser automática.

No Orçamento de Estado para 2024, o PS decidiu atualizar os escalões à taxa de inflação. Ao fazê-lo, evita que a carga fiscal aumente em 2024 por via da inflação como aconteceu em 2023. É aqui que as palavras contam: a atualização dos escalões pela inflação não é uma redução de IRS. É, apenas, uma forma de impedir que o IRS suba de forma artificial. Apenas contabilizando este não aumento artificial de IRS por via da inflação como se fosse uma descida, o Governo conseguiu apresentar 1.327 milhões de euros de “descida” de IRS. A pequena descida de algumas taxas também apresentada no mesmo Orçamento ficaria muito longe de ter um impacto de 1.327 milhões.

O PSD sabe que uma atualização de escalões de IRS ao nível da inflação não é uma redução de IRS. Sabe isso porque o mencionou várias vezes e até tem no Programa de Governo que essas alterações de escalões pela inflação devem ser automáticas, precisamente por serem neutrais em termos de IRS. No entanto, deu como correto o falso valor apresentado por Costa e Medina no seu Orçamento e somou-lhe os míseros 173 milhões da sua própria medida, anunciando os tais 1.500 milhões de euros de impacto em relação ao ano anterior.

A falsidade do anúncio dos 1.500 milhões não é lexical nem é de hoje: é económica e vem de trás. Ao dar como corretos os 1.327 milhões anunciados por Costa e Medina, Montenegro ajudou a encobrir uma fraude política do anterior Governo. A descida de IRS em relação a 2023 será muito inferior a 1.500 milhões. Os partidos da oposição não têm dados para fazer o cálculo correto, mas dificilmente essa diminuição chegará sequer a metade dos 1.500 milhões anunciados.